A afeição que Angelo Defanti nutre pela obra do escritor Luís Fernando Veríssimo – que, em breve, converter-se-á num documentário – explica a extrema desenvoltura no modo como ele adapta o livro homônimo “O Clube dos Anjos”, famoso por pertencer à inventiva série “Plenos Pecados”. Nesse sentido, além da adoção de recursos literários (o modo como é introduzida a narração, através da gravação de fitas de vídeo, do protagonista vivido por Otávio Müller, por exemplo), o cineasta serve-se habilmente de expedientes teatrais, em sua benfazeja adaptação cinematográfica.
Contando com um elenco extraordinário, uma das grandes sacadas do roteiro é a exposição estereotípica dos personagens: a polarização quase redundante entre João (Augusto Madeira) e Pedro (Marco Ricca), respectivamente um comunista culpado e um empresário capitalista; a mania do cozinheiro vivido por Matheus Nachtergaele em fumar enquanto prepara os seus banquetes; a misoginia indisfarçada do mentor Ramos (António Capello), antes de sabermos que ele era homossexual; estes são alguns dos aspectos cartunescos desta obra, advindos diretamente do original literário.
Sendo assim, um relevante problema conceitual apresenta-se desde o início: exceto por ser o narrador, não há muito o que ser dito sobre o protagonista Daniel. Solteiro e não trabalhador, ele parece alguém desprovido de interesse pessoal, o que explica a fetichização excessiva da gula e a teimosia de referir-se em seus amigos como “imprestáveis” (na verdade, ele utiliza um palavrão). A insistência nos julgamentos de mau caratismo depositado sobre os seus convivas demonstra que ele próprio é também um mau caráter, o que não apenas ele não nega como desemboca na conclusão pouco empolgante do filme, em que a adesão dos companheiros de várias décadas à gula compartilhada deixa de estar atrelada à sensação de “sentir prazer no prazer do outro” para converter-se em intenções gananciosas, típicas da conjuntura classista dos personagens.
Devemos acrescentar que a conversão dos prazeres dos amigos de infância em uma organização que visa à concessão de “eutanásias festivas” (ou “retiradas orgiásticas”) para moribundos endinheirados justifica o modo inteligente com que o enredo trabalha com a noção de previsibilidade, nunca frustrando aquilo que imaginamos a partir dos sumiços dos personagens. Trata-se praticamente de um anti-suspense, substituído decepcionantemente pela piada disfuncional do encontro entre Daniel e o consultor Delgado (cujo sobrenome é confundido com a função de um delegado), numa reviravolta tramática que funciona melhor na literatura que na diegese audiovisual. Ao menos, isso contribui para acrescentar alguma ironia à decisão estimulada por Ramos, a de “saber o final do livro”, em sua ode à vida bem aproveitada por quem sabe que padece de uma doença terminal.
Dentre os peculiares recursos cênicos acrescentados como ingredientes fílmicos, dois merecem ser especificamente elogiados: a seqüência em que os intérpretes dos personagens adultos ocupam os lugares dos mesmos quando adolescentes, de maneira que seus traços personalísticos são metonimizados na maneira como eles interagem entre si; e as estratégias de iluminação concernentes às lâmpadas acesas durante a erupção de orgasmos gastronômicos individuais e ao alerta rubro que se instaura quando Tiago (André Abujamra) descontrola-se diante de uma sobremesa de chocolate. Aliás, esta obsessão pelos doces derivados de cacau, junto às múltiplas vezes em que Samuel (Paulo Miklos) chama alguém de “crápula” (no bom ou no mau sentido), são chistes que tornam ambos os personagens muito divertidos, confirmando o que foi dito sobre as vantagens da concepção intencionalmente estereotípica de seus caracteres.
Ainda que não termine tão bem quanto comece – o que chega a ser paradoxal, pois, mais uma vez, confirma o brinde derradeiro de Ramos, que sugere que seus parceiros chorem, depois de se alegrarem com a excelente comida, visto que ali, seria o início do declínio de suas vidas –, este filme demonstra de maneira assertiva uma tendência comum no cinema hollywoodiano: a de que adaptar livros de sucesso é um chamariz interessante de público. Sobretudo porque a adaptação não anula a versão original, ambas as obras convivem harmoniosamente, para além das discrepâncias comparativas entre elas. Nem bem a sessão termina e os espectadores já anseiam por (re)ler o livro em pauta. A fome sempre volta, eis a certeza mais repetida ao longo da projeção!
Wesley Pereira de Castro.
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