Quem nunca assistiu a nenhum filme do nonagenário cineasta Yoji Yamada, encontrará em “O Deus do Cinema” (2021) uma maneira assaz graciosa de ser apresentada ao seu estilo, enciclopedicamente demarcado pela simplicidade. Apesar de ele ter realizado mais de noventa produções antes dessa, há algo de muito sintético no modo como o roteiro apresenta suas afinidades temáticas – sobretudo em relação ao diretor hollywoodiano Frank Capra [1897-1991], mencionado ostensivamente num diálogo entre personagens cinéfilos e na emulação contida no título internacional do seu filme, “It’s a Flickering Life”…
Em sua aplicação da fórmula contida na epígrafe desta resenha, pronunciada pelo protagonista Goh (Kenji Sawada) logo no início do filme, Yoji Yamada chega a adotar algumas soluções muito simplistas no roteiro, visto que ele é apressado no desenvolvimento das relações entre os personagens e nas indicações de que a pandemia da COVID-19 obrigou os produtores a improvisar algumas estratégias para finalizarem adequadamente o filme.
O enredo metalingüístico que justifica o título é obviamente inspirado em “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985, de Woody Allen), e é escrito pelo protagonista Goh (interpretado, na juventude, por Masaki Suda), que tenciona converter-se em diretor de cinema, depois que trabalha como assistente de um deles, e encanta-se pela atriz principal, Sonoko [vivida por Keiko Kitagawa, em homenagem à célebre Setsuko Hara (1920-2015)], sendo correspondido por ela. Entretanto, Goh é alvo do amor platônico da cozinheira Yoshiko (Mei Nagano), que, por sua vez, é pedida em casamento pelo projetor Terashin (Yojiro Noda), melhor amigo de Goh.
A trama de “O Deus do Cinema” possui dois tempos interligados: na atualidade, Goh é um idoso alcoólatra e viciado em apostas, o que faz com que a sua esposa e filha sejam continuamente perseguidas por agiotas. Depois de uma briga com Yoshiko (na maturidade, vivida por Nobuko Miyamoto), Goh resolve esconder-se no cinema de Terashin (interpretado na velhice por Nenji Kobayashi), onde assiste a um filme antigo e revive algumas memórias de juventude, quando descobrimos os dois triângulos amorosos interseccionados.
O tom da narrativa mescla o melodrama capriano com a comédia de costumes, com vistas a uma declaração de amor à Sétima Arte que intenta compensar as decepções do cotidiano. “Na tela, os finais são felizes”, repetem os personagens em mais de um momento, evidenciando o tipo de produção que interessa ao cineasta, conhecido pela simplicidade, conforme já mencionado. Num ‘flashback’ decisivo, o jovem Goh é incompreendido quando tenta enquadrar uma cena de maneira heterodoxa, o que faz com que ele desista do cinema, até ser redescoberto muito tempo depois como um “roteirista promissor”, aos 78 anos de idade. Como não recebeu a mesma atenção por parte dos críticos que vários de seus conterrâneos, mesmo sendo bastante prolífico, é como se Yoji Yamada defendesse o seu próprio ‘modus operandi’, visto que é reconhecido como um hábil artesão, sem a devoção recebida por Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu ou Kenji Mizoguchi…
Alguns desses diretores são também homenageados via pseudônimos e nas descrições de filmagens contidas nas memórias de juventude de Goh, Yoshiko e Terashin. O filme que Goh decide assistir antes de falecer é uma clara referência à obra-prima “Era uma Vez em Tóquio” (1953, de Yasujiro Ozu), o que rende um instante de suma beleza, à guisa de desfecho, num tipo de píncaro emocional bastante distinto do que estava sendo reproduzido na tela.
Co-escrito pelo próprio Yoji Yamada, o roteiro deste filme é baseado num romance da escritora Maha Harada, “Kinema no Kamisama”, publicado em 2011. Coube ao diretor adicionar elementos de nostalgia cinematográfica, a fim de homenagear tanto o estúdio centenário no qual ele trabalhou, o Shochiku, quanto um tipo de ode ao cinema de cariz ocidental. Em meio aos dilemas românticos dos jovens e às crises familiares e econômicas dos mais velhos, momentos de piada pastelão, como quando um porteiro reclama que está ficando careca quando ajuda a chamar uma ambulância para socorrer o jovem Goh, após um acidente, ou quando alguém decide ajudar a então faxineira Yoshiko a limpar algumas privadas e espanta-se com a sujeira. Vale lembrar que Goh atribui as suas inspirações roteirísticas a Buster Keaton e deparamo-nos com cartazes de filmes de Charles Chaplin na sala de projeção de Terashin.
“O Deus do Cinema” é, portanto, um filme muito simpático, que, a despeito de sua longa duração (duas horas e cinco minutos), é sempre entretenedor e repleto de romance. Há algo de muito desconfortável nos comportamentos de Goh enquanto aposentado, tratando a sua esposa de maneira displicente e insistindo que a sua filha Ayumi (Shinobu Terajima) é uma “psicopata”, já que ela convence os seus familiares a não mais pagarem as numerosas dívidas de jogo do seu pai. É nesse sentido que o garoto Yuta (Oshiro Maeda), filho de um casamento desfeito de Ayumi, surge como elo intergeracional, sendo o responsável pela adaptação contemporânea do roteiro esquecido do avô Goh.
Na cena derradeira, todos estão numa sala de cinema, assistindo a um filme clássico, em preto-e-branco. A mensagem conciliadora do cineasta é muito clara: ele acredita que os filmes podem (re)unir as pessoas, providenciando milagres. Desde que eles estejam desprovidos das complicações autorais que muitas vezes desencadeiam insalubres conflitos egocêntricos (vide o chiste envolvendo o perfeccionismo exacerbado de um diretor, que deixa Sonoko desconfortavelmente nervosa ao exigir que ela mexa uma xícara numa quantia mui precisa de vezes). Já que, no letreiro de abertura, um estúdio é reverenciado, o trabalho de equipe é valorizado enquanto extensão familiar e celebração da amizade. Na prática bem-intencionada, procede!
Wesley Pereira de Castro.
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