Uma das principais funções
do título de um filme é sintetizar as perspectivas que o espectador
buscará naquela obra, seja em termos de identificação seja no que
diz respeito a uma necessária catarse em relação às angústias
cotidianas. Ao escolher um artigo singular definido feminino mais o
substantivo comum mais pronunciado, desde a infância, por qualquer
indivíduo, o diretor Cristiano Burlan sabia do potencial
melodramático do seu título, alavancado pela tragicidade
relacionada ao modo como a sua própria mãe havia falecido
(assassinada a facadas por um companheiro). Num primeiro impulso,
esperamos encontrar neste filme uma estória de abnegação, centrada
no desespero de uma mulher, em busca do filho desaparecido…
Porém, esse mesmo título
evoca utilizações anteriores do poder de síntese. De maneira
imediata, mais de um crítico deve ter associado “A Mãe” ao
título homônimo de um romance do escrito Máximo Gorky [1868-1936],
sobre o desamparo de uma dona de casa, inicialmente alienada, que, ao
saber da prisão política de seu filho, torna-se cada vez mais
consciente das obrigações ativas que a fazem reconhecer que é
parte de uma comunidade. E é basicamente o que acontece aqui!
Rodado no início de 2020, “A
Mãe” enfatiza o relacionamento terno entre uma imigrante
paraibana, chamada Maria (vivida por Marcélia Cartaxo, premiada no
Festival de Gramado por este papel) e o adolescente Valdo (Dunstin
Farias). Ela trabalha como camelô, vendendo óculos escuros
falsificados, enquanto ele costuma faltar às aulas para jogar
futebol e cantar ‘rap’ com seus amigos. Até que, numa noite, ele
não volta para casa, o que faz com que Maria perceba a fragilidade
das relações entre os vizinhos do bairro em que vive, na Zona Leste
paulistana.
Em vez de optar por uma
representação langorosa da perda do filho, já que os dois parentes
tratam-se de maneira mui carinhosa desde o início, o diretor e
roteirista (em parceria com Ana Carolina Marinho) opta por uma
abordagem sóbria, que visa a criticar uma espécie de terrorismo
institucional, financiada pela consideração de que, como diz um dos
personagens, “a
ditadura só vai acabar quando não mais existir Polícia Militar”.
Ainda que Valdo não seja um criminoso – prefere estar com um
microfone nas mãos que com o cano de um revólver, como ele mesmo
canta na letra de “Soldado Romano”, repleto de referências
bíblicas inteligentes –, tudo indica que ele foi assassinado por
policiais, irritados pelo modo não indulgente com que ele reage a
uma abordagem preconceituosa de rotina. Ocorre que isso instaura uma
súbita ruptura entre Maria e seus vizinhos, já que ela passa a ser
tratada com frieza por uma amiga e com desconfiança por um
traficante local, irritado com o comparecimento freqüente da polícia
naquela região, após as denúncias da mãe aflita.
Partindo de um evento também
autobiográfico – o assassinato do próprio irmão – , Cristiano
Burlan utiliza este clímax dramático (o sumiço de um ente querido)
para demonstrar tanto a fragilidade das instituições estatais
quanto a sanha auto-organizadora de indivíduos obrigados a
amadurecerem ideologicamente, de maneira imediata. Num primeiro
momento, Maria age (e é tratada) de maneira ríspida, quando
responsabiliza a secretária de uma escola pela falta de aviso quanto
às faltas recorrentes de Valdo, e agressiva, quando é ignorada ao
denunciar para um escrivão policial o sumiço de seu filho. Mas,
após a conversa atenta com uma mulher que precisou fortalecer-se ao
receber a notícia, via transmissão radiofônica, do assassinato do
filho, ela é dotada de um tipo de força que ressignifica todo o seu
cotidiano – não sendo casual que o ‘rap’ executado durante os
créditos finais, novamente a cargo do intérprete Dunstin Farias,
chame-se justamente “Antígona”.
No percurso errático da
protagonista, em busca de notícias sobre o desaparecimento em pauta
(mesmo suspeitando do que tenha ocorrido), Maria encontra outra
imigrante proveniente do Nordeste (interpretada pela corroteirista
Ana Carolina Marinho), numa das várias viagens de ônibus captadas
pelo filme, o que representa um alento frente aos contínuos
maus-tratos da sociedade sudestina. Diante de um cadáver
desconhecido, no Instituto Médico Legal, ela sorri de maneira
nervosa, ao perceber que aquele não é seu filho. Sem saber como
despejar a sua fúria contra o descaso alheio, ela age de maneira
rude quando a dona de um boteco vende de maneira hiperfaturada a
meia-dúzia de ovos que, apenas uma semana antes, comprara por um
valor menor. “Aumentou”, diz a vendedora, de maneira ressequida.
Maria tem vontade de quebrar tudo, sentindo-se frustrada e solitária.
No fogão, a panela de pressão serve como potente metáfora.
Noutro momento que parece
deslocado, mas é fundamental para o desfecho militante do filme,
Maria interage com a personagem de Helena Ignez sobre o sofrimento
experimentado pelas mães de filhos desaparecidos durante a ditadura
militar no Brasil. Numa imagem derradeira, mulheres seguram um cartaz
das Mães de Maio, à guisa de equiparação histórica acerca do que
é vivenciado pela protagonista. O drama individual é, por dedução,
espelhado socialmente, demonstrando, mais uma vez, que a intimidade é
política, através de sua publicização.
Além do referido prêmio de
interpretação feminina, “A Mãe” também foi laureado nas
categorias Melhor Direção e Melhor Desenho de Som, na edição
deste ano do Festival de Cinema de Gramado. Para quem é acostumado a
assistir aos documentários ensaísticos do realizador, talvez cause
algum estranhamento essa empreitada ficcional, ainda que algumas de
suas obsessões temáticas e reivindicativas possam ser facilmente
reconhecidas. O modo como o local onde Maria mora é apresentado, por
exemplo, de maneira rigorosamente descritiva, sem que as condições
de miserabilidade sejam enfatizadas enquanto justificativas para um
tratamento marginal dos indivíduos, mas, pelo contrário, enquanto
causa desse problema, já que se trata de um reflexo do descaso
estatal.
Num breve descanso em sua
rotina corrida de sobrevivência sob o Capitalismo, Maria conversa
com um pastor-poeta, que lhe recita alguns versos rimados de Patativa
do Assaré [1909-2022], enquanto deixa para a exortação
conscienciosa que acontecerá ao longo do filme. Fica a advertência:
“encontramos em nós uma força que nem sabíamos que tínhamos”,
acrescenta uma mãe depoente. Quantos e quantos dramas que nem este
não acontecem diariamente? Mais que nos conduzir a um choro
tangencialmente reparador, este filme obriga-nos a prestar atenção
duradoura em quem está ao nosso lado em instantes de aflição.
Relembremos o que o título evoca, portanto.
Wesley Pereira de Castro.