O filme abre com uma citação do cientista italiano Evangelista Torricelli [1608-1647]: "vivemos submersos no fundo de um oceano de ar". É a preparação simbólica para o tipo de sufocamento que aflige os dois protagonistas, Teresa (Ana Luíza Rios) e Antônio (Matheus Nachtergaele), ambos ex-moradores de uma cidade do interior cearense que foi coberta pelas águas de uma represa. Ao regressarem para Jaguaribara, quase no mesmo instante, eles percebem que têm muita coisa em comum, sobretudo na constatação de que já enfrentaram - e continuam a enfrentar - muitas dificuldades financeiras. Porém, o relacionamento entre eles demorará a ser assumido como tal. Até que, de repente, deixa de ser por completo...
Sabemos pouco sobre Teresa: Antônio lembra dela caminhando, quando ainda era estudante de colégio, diante da borracharia onde ele trabalhara, na juventude, mas, muitos anos depois, o que se descobre é que ela "está sozinha no mundo". Seus pais aparentemente morreram e, por algum motivo, ela passa a cuidar de um bebê que encontrou abandonado numa canoa, como se fosse seu. Sobre Antônio, por sua vez, sabemos um pouco mais: ele viajara para o Sudeste, a fim de buscar novas oportunidades de emprego, mas, depois do desgoverno bolsonarista e das conseqüências da Covid-19, fia-se na esperança de poder comercializar caranguejos na Paraíba. Ambos não possuem nada, quando observam-se frente a frente, portanto.
Auxiliados pela cordial Fátima (Sílvia Buarque, extraordinária), Teresa e Antônio passam a viver numa casinha sem mobília, onde deparam-se com os contratempos referentes à obtenção de víveres - principalmente, leite para o bebê, que virá a ser chamado Miguel. "Come-se num determinado dia, mas logo tem-se a necessidade de encontrar algo no dia posterior, e no próximo, e no próximo"... Eis o que lamenta Teresa, antes de submeter-se à prostituição na estrada, quando frustra-se diante da oferta de um subemprego aviltante, no posto de gasolina onde trabalha Letícia (Danny Barbosa). O desfecho trágico é iminente, referendando o sortilégio emulado pelo título.
As paisagens áridas do Ceará são fotografadas de maneira sublime pelo próprio Petrus Cariry, um cineasta cuja filmografia é demarcada pela versatilidade. Não obstante as mazelas cumulativas e inevitáveis do capitalismo, por algum tempo, cremos que Teresa e Antônio serão bem-sucedidos em seu restabelecimento na terra natal, agora modificada pela implantação da represa. A conversa de Antônio com um caminhoneiro (Buda Lira), que requer que ele limpe a carroceria, antes de lhe dar carona, serve como uma espécie de corruptela discursiva sobre as teses engelsianas acerca da importância do trabalho na superação humana de um estágio inicialmente animalesco. Mesmo quando Teresa aceita receber dinheiro para ser observada nua, enquanto se banha, isso é mostrado como se fosse um acordo mútuo - malgrado humilhante para a mulher. Até que a violência irrompe, em coitos posteriores, mediante a confirmação de que "os homens são escrotos": as cenas de sexo à força (e mal remunerado) são árduas de serem assistidas!
A trilha musical de João Victor Barroso oscila entre os acordes provenientes de sintetizadores e a utilização assertiva de canções da banda Cavalo de Pau ("Timidez" e "Brincar de Amar"). No enredo, as condições básicas de sobrevivência: é necessário comer, beber água, dormir - e, se possível, amar. A realidade estraçalha os planos de Antônio, que, numa seqüência sanguinolenta, olhando para a câmera, pergunta porque fazemos aquilo que fazemos. Nossa simpatia pelos personagens - hipertrofiada pelo fato de que eles são magistralmente interpretados - não é suficiente para assegurar-lhes um destino juntos, malogrando a bondade que tanto Teresa quanto Fátima percebem em Antônio. As privações corrompem o indivíduo, afinal?
Wesley Pereira de Castro.
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