Lançando o terceiro exemplar de um projeto iniciado em 2016 – sem que tenha havido um capítulo intermediário –, o cineasta argentino Eduardo Williams faz jus ao título de seu filme, visto que, nas longas conversas e seqüências contidas em “O Auge do Humano 3” (2023), ele prepara-nos para um clímax quase sobre-humano, no desfecho, quando voar é uma atividade corriqueira. Um trabalho genial, que requer imersão por parte do espectador, concedida através de recursos de Realidade Virtual e da filmagem em trezentos e sessenta graus, que engendra efeitos inebriantes desde o primeiro instante de projeção…
Não há letreiros situando o espectador acerca do país em que uma determinada situação está ocorrendo: migramos de Taiwan para o Peru e para o Sri Lanka em poucos segundos, através de uma montagem virtuosística – a cargo do próprio diretor –, que aproveita de forma magistral a expansão do quadro, as linhas de fuga das paisagens urbanas ou rurais dos ambientes em que os jovens protagonistas interagem.
Na seqüência de abertura, percebemos que interessa mais ao realizador os recursos estendidos de imagem e som que os diálogos, não obstante estes serem indispensáveis, em sua profusão quase surrealista. Caminhando por um cenário praiano, um rapaz alega ter visto um corvo vomitando na praia. Seguem andando, até que um deles precisa urinar, e é elogiado por isso: “tu fazes xixi muito bem”. Encontram uma senhora cujo filho está afastado para dedicar-se ao serviço militar. Despedem-se dela e, ao apressar o passo, um deles escorrega. Como sabe que está sendo filmado, exclama “que vergonha!”. É repreendido de imediato: “vergonha é ser um mega-bilionário”!
Situações como esta são repetidas em cenários distintos e as mesmas frases voltam em meio às conversas aparentemente circunstanciais entre amigos. Chama positivamente a nossa atenção a pletora de membros da comunidade LGBTQIA+, naturalizados em suas vivências diuturnas. Um tema recorrente nestas conversas é a necessidade de procurar emprego ou, paradoxalmente, de relaxar durante as jornadas de trabalho que nem sempre são satisfatórias. Um ótimo exemplo: em determinado momento, um rapaz busca outro no restaurante em que trabalha. Este último não parece reconhecê-lo, mas, de qualquer modo, aceita o convite para passearem, subitamente. De repente, o primeiro começa a correr, alegando estar cansado. O conselho lógico: “não corras, então, senão ficarás ainda mais cansado”!
Flagrando os personagens em casas construídas sobre palafitas, à beira-mar ou no meio da floresta, Eduardo Williams estabelece maravilhosos contrastes entre as figuras humanas e as paisagens e cenários ao seu redor. Para tal, a fotografia de Victoria Pereda – que já trabalhara com o diretor no primeiro capítulo deste audacioso projeto – atinge efeitos esplêndidos e alucinantes, por vezes estroboscópicos. Assistir a este filme equivale a experimentar audiovisualmente as sensações compartilhadas por aqueles jovens!
Para quem aprecia os filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul – sobretudo “Eternamente Sua” (2002), uma de suas obras-primas, com muitas similaridades tramáticas em relação ao trabalho multinacional ora resenhado –, “O Auge do Humano 3” serve como uma indicação tão obrigatória quanto balsâmica: trata-se de uma produção que congrega de maneira inteligente e autoral as características audiovisuais – múltiplas, metamórficas e permutáveis, para citar uma famosa classificação do teórico Arlindo Machado [1949-2020] – da contemporaneidade. Vide a inusitada percepção que se instala quando os jovens conversam sobre narrativas de jogos eletrônicos enquanto passeiam por um cenário vasto e montanhoso, próximo ao surpreendente desfecho, em que a câmera é objetificada em sua subjetividade: num átimo, ela parece perder o seu eixo, mas é logo reencontrada, por um dos personagens, e paralisada, no ápice de um movimento. Incrível!
A fim de que o filme seja tão bem-sucedido em suas intenções “instaladoras”, os efeitos visuais idealizados pelo próprio realizador e o trabalho egrégio da equipe responsável pelo desenho de som possuem importância basilar. Tecnicamente, o filme é deslumbrante, possuindo, em suas entrelinhas, críticas pertinentes à poluição e ao desrespeito de algumas pessoas em relação à Natureza. Num dos píncaros espetaculares deste longa-metragem, a placidez sussurrante do mergulho de uma dupla de amigas é prontamente substituída por uma ‘rave’ aquática, onde ouvimos o “Baile do Caos”, de Alada, na banda sonora. Um filmaço mui descritivo acerca do que é o Século XXI, em termos de conjunção entre imagens e sons cinematográficos, mas que também enfatiza a relevância dos encontros entre seres humanos, inclusive em seu viés sexual. Qualquer elogio superlativo é pouco, muito pouco, para metonimizar o impacto desta obra. Um lançamento extraordinário!
Wesley Pereira de Castro.
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