Goste-se ou não das esquisitices - eventualmente forçadas e sempre tendentes à misantropia - do grego Yorgos Lanthimos, ele configura-se - também de maneira forçada - como um dos grandes autores cinematográficos contemporâneos. Se, em suas tramas, a lógica da dominação de um personagem (ou grupo de personagens) por alguém com tendências psicóticas é recorrente, na perspectiva visual, os espaços tendem a ser bastante amplos, sufocando, pelo excesso de vazio, os protagonistas atormentados. Para isso, a atual colaboração com o fotógrafo Robbie Ryan é fundamental, seja quando exagera na utilização das câmeras olhos-de-peixe, em obras anteriores, seja quando emula os planos de longo alcance de Thimios Bakatakis, que fotografou a maioria das obras deste cineasta, e cuja influência é assaz evidente neste longa-metragem...
Mais uma vez colaborando roteiristicamente com Efthimis Filippou, parceiro em quase todos os seus trabalhos [exceção sentida em "A Favorita" (2018) e "Pobres Criaturas" (2023)], Yorgos Lanthimos retoma o flerte com o horror que permeava obras que o tornaram internacionalmente conhecido, como "Dente Canino" (2009) e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017). Tal como ocorre nestes filmes, as subtramas independentes abordam os efeitos colaterais de relacionamentos marcados pela excessiva devoção: na primeira das estórias, em âmbito profissional; na segunda, sob o jugo marital; e, na terceira, avaliando o fanatismo religioso/místico. Mesmo quando resvala em alguma verborragia, as quase três horas de duração do filme são bizarramente entretenedoras!
Um hepteto de atores reveza-se, nas três estórias, em papéis completamente diferentes, sendo surpreendente a radical transformação de Jesse Plemons de um segmento para o outro: de um funcionário subjugado, ele torna-se um marido paranóico e termina como um assecla quase impotente. Emma Stone, apesar de fascinante, não varia o tom de suas interpretações, conquanto vivifique alguém meigo no início, servil no meio, e vilanaz no desfecho. O mesmo ocorre nas personificações de Willem Defoe, que surge demoníaco na abertura, volta quase inexpressivo no episódio intermediário, e aparece como um líder lascivo no enredo derradeiro. Hong Chau, Margaret Qualley, Joe Alwyn e Mamoudou Athie completam o grupo principal de intérpretes, deveras competentes em suas funções tangenciais.
Do um modo semelhante ao anjo que rondava o condomínio onde transcorriam os capítulos de "Decálogo" (1988, de Krzysztof Kieslowski), há uma entidade, identificada através da sigla R.M.F. e personificada por Yorgos Stefanakos, que circunda as três tramas, e nomeará os correspondentes segmentos ("A Morte de R.M.F", "R.M.F. Está Voando" e "R.M.F. Come um Sanduíche"): ele não fala, mas observa os personagens de maneira clemente, percebendo que estes não terão direito aos consolos que buscam, dado o sadismo com que o diretor os trata. Este último aspecto, infelizmente, calha de estragar a potência do filme, visto que, depois de um primeiro episódio interessante mas apenas mediano, vem uma quase obra-prima e, por fim, um segmento que poderia ser magistral, se não fosse a espalhafatosa falta de contenção do realizador. Tudo o que acontece após a mui divulgada dancinha de Emma Stone soa redundante, em relação ao que já fôra demonstrado. Custava respeitar a epifania criminosa que se instaura num necrotério?!
Para quem chegou desprevenido ao filme, os sinais que identificam as obsessões do diretor estão anunciados desde a utilização da canção "Sweet Dreams (Are Made of This)", da banda Eurythmics, durante os créditos de abertura: para este realizador, as "gentilezas" do título correspondem àquilo que a letra oferta, de maneira um tanto ambígua: "todo mundo está procurando por algo/ Alguns deles querem te usar, outros querem ser usados por ti/ Alguns querem te abusar, outros querem ser abusados por ti". Neste sentido, não chega a ser chocante o teor pornográfico dos vídeos de suruba que o policial Daniel (personagem de Jesse Plemons, no segundo segmento) deseja assistir ao lado de um casal de amigos, nem a progressão antropofágica de seus comportamentos. A violência oportunista a que uma cadela idosa é submetida, no terceiro segmento, por sua vez, é bastante incômoda, bem como o sub-aproveitamento do talento desnudo de Hunter Schafer, numa única e breve seqüência. Ainda assim, trata-se de um filme à altura daquilo que esperamos de seu realizador, que, mais uma vez, extrai uma excelente e perturbadora trilha musical de Jerskin Fendrix. A imagem de um cachorro enforcado, como se fosse um suicida, ao som de uma canção metaleira ("Rainbow in the Dark", de Dio), demora a sair de nossa mente!
Wesley Pereira de Castro.
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