Que a inspiração nos filmes de Eduardo Coutinho [1933-2014] seja destacada na sinopse e no material de divulgação deste filme é algo que muito mais atrapalha do que ajuda, no sentido de que cria-se, a partir disso, uma expectativa insatisfatória: afinal, emula-se o dispositivo, mas não necessariamente o método. Registrar as falas emocionadas de várias pessoas - entre famosos e profissionais do dia a dia -, diante de uma tela negra, num palco vazio, não é o mesmo que "entender a razão do outro, sem lhe dar razão". Superada esta comparação auto-imposta, "Poemaria" (2024) cativa por aquilo que possui de tão particular: os relatos de poetas, assumidos ou não, que lidam com a beleza inequívoca de um ofício que salva vidas, como tantos concordam e ratificam, em suas lembranças. Vide o exemplo da tributarista Claire Feliz Regina que, aos oitenta anos de idade, começa a escrever poesias e compõe uma prodigiosa ode à vagina...
Logo na abertura, o ator Gero Camilo chama a atenção para o fascínio engendrado pelos ruídos da claquete, enquanto disparo exordial da "poesia cinematográfica". Segue-se um depoimento prenhe de erotismo, em que ele destaca o processo poético como atravessado pelos mesmos mecanismos de uma trepada, em que o esperma e o óvulo a ser fecundado são as palavras, as frases e os sentimentos. Daí para a frente, todos os entrevistados trarão à tona emoções intensificadas, a partir do modo como eles lidam com definições muito pessoais que correspondem à poesia: seja quando a jornalista Marília Gabriela comenta as dificuldades inerentes à recepção artística; seja quando o estilista Fause Haten declara que qualquer ato pode ser poético, sendo expresso em palavras ou não. Ou quando Jean Wyllys relembra o verso maiakovskiano, musicado por Caetano Veloso, que ouviu enquanto comia uma macarronada, depois de uma longa privação de víveres: "gente é para brilhar, não para morrer de fome". Dá para compreender imediatamente o porquê de ele ter tatuado isto em seu peito!
Num momento egrégio, a poetisa mineira Adélia Prado tem seu choro, manifesto enquanto lê um de seus poemas, interrompido pela montagem, a fim de se coadunar à recitação de um poema também dela, agora na voz de uma médica, que explica que a poesia a atinge "onde a ciência não alcança". Seu relato sobre uma paciente moribunda, que lacrimejava mesmo estando desidratada, é impressionante, tanto quanto a resposta da escritora Rosana Banharoli à pergunta "se a poesia fosse uma pessoa, o que tu dirias a ela?". Sem pestanejar, ela diz: "eu te amo. Obrigada por me salvar!". Isso ecoa nas contribuições de vários dos outros depoentes, como quando Alexandre Borges define o ato de ser pai como sumamente poético ou quando Ignácio de Loyola Brandão tece o máximo de elogios à capacidade sintetizadora de um 'haicai'. E é da comediante transexual Nany People que surge um dos apotegmas mais potentes, quando, ao recordar algo que a sua avó repetia, ela direciona ao espectador a seguinte lição: "não importa o prejuízo trazido pela tempestade; o que importa é a nossa capacidade de fazer a lavoura voltar a brotar". Eis a poesia em curso!
Wesley Pereira de Castro.
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