No afã por identificar algum elemento temático recorrente na versátil e numerosa produção fílmica soderberghiana, deparamo-nos com a hipertrofia do superego como ‘leitmotiv’, o que justifica a exacerbação valorativa da ética individual que encontramos em obras tão díspares como “Kafka” (1991) e “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento” (2000). Paralelamente a isto, o diretor especializa-se no subgênero policialesco do “filme sobre golpe”, realizando variações bastante interessantes do tema, marcadas pela simpatia incontestável de seus protagonistas, que, mesmo quando agem contra a lei, posicionam-se de forma deveras respeitosa acerca de quem a acata. É o caso do empolgante “Irresistível Paixão” (1998) e da trilogia inaugurada com o ótimo “Onze Homens e um Segredo” (2001).
Dito isto, é mister reconhecer não apenas o polivalente talento do diretor, um dos mais prolíficos da atualidade, como admitir a percepção de uma verve autoral em suas obras aparentemente tão desconexas, cuja composição do personagem que Benicio Del Toro vivifica em “Traffic” (2000), tão íntegro que beira a ingenuidade, assume-se como alter-ego idealizado do discurso que o realizador deseja transmitir, tendo aparecido de formas transmutadas desde a sua estréia em “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989) até o recente e incompreendido “Magic Mike” (2012). Em “Terapia de Risco” (2013), Steven Soderbergh efetiva peripécias cinematográficas recomendadas apenas para quem já se consolidou estilisticamente e, por conta de tudo o que foi alegado até então, ele se sai muito bem, conseguindo a proeza de fazer com que o espectador se sinta traído pelo enredo ao final da sessão e, ao mesmo tempo, incapaz de renegar a qualidade elevada do filme como um todo!
Protagonizado por uma excelente Rooney Mara, “Terapia de Risco” é um filme que, desde o início, expõe indícios da reviravolta que surge na segunda metade da trama: durante a seqüência dos créditos iniciais, um lento movimento transversal de câmera focaliza um prédio com diversas janelas pequenas, até focalizar um quarto com manchas de sangue pelo chão e optar pela narração do que ocorrera três meses antes. Acompanhamos, então, a protagonista Emily Taylor informando à sua chefa de que precisa faltar no dia seguinte por conta da soltura de seu marido (Channing Tatum, que se tornou mais um dos atores habituais de que o diretor costuma se cercar). Numa legítima demonstração da indicialidade mencionada, Emily comenta que o crime pelo qual seu marido fora preso (“insider trading”, uma espécie de fraude corporativa com efeitos diretos sobre a especulação na bolsa de valores) é desconhecido pela maioria das pessoas, exceto quando mencionado de forma noticiosamente enviesada na TV. Na cena seguinte, Emily e a sua sogra buscam o recém-libertado Martin em frente à penitenciária, sendo ostensiva a presença de um céu bastante nublado sobre eles, cujas nuvens do tipo ‘cumulus’ serão cuidadosamente mostradas em mais de um momento.
À medida que restitui o cotidiano romântico com seu marido, Emily passa a dar sinais de que é molestada por uma profunda depressão, o que redunda em tentativas de suicídio e na necessidade de uma intervenção psicanalítica, sendo responsável por seu tratamento o doutor Jonathan Banks, personagem de Jude Law, deveras benevolente acerca da sintomatologia dramática de seus pacientes (conforme percebemos na cena em que ele se comunica em francês com um imigrante exageradamente nervoso que alega ter visto o fantasma de seu pai num táxi). Daí por diante, o enredo desemboca numa tramóia repleta de mentiras e mistérios facilmente desvendados, cujo clímax é justamente a chuva torrencial anunciada nefelibaticamente desde o início. Ao final, o mesmo movimento de câmera do início é invertido, agora visando à focalização da estrada em que o psiquiatra e sua família partem em direção a uma recompensante trajetória de felicidade, enquanto Emily é confinada num manicômio.
A extensa descrição da narrativa deste filme foi requerida no parágrafo anterior por conta do sobejo de confiança que Steven Soderbergh depositou no roteiro de Scott Z. Burns, com quem já havia trabalhado em duas ocasiões anteriores. Por mais que este seja falho na exposição dos detalhes jurídicos e principalmente motivacionais dos atos criminosos perpetrados pro Emily (visto que o seu envolvimento passional com a personagem de Catherine Zeta-Jones é parco e a sua gana por dinheiro não parece convincente), a esperteza com que o roteirista se defende das acusações contra firulas e/ou inconsistências a partir da reiteração dos índices susomencionados é louvável: não é preciso rever o filme para lembrar que a seqüência em que Emily atira o seu carro contra uma parede deixava clara a sua premeditação fraudulenta, visto que não apenas vemo-la afivelar cautelosamente o cinto de segurança como acompanhamos o seu suspiro impávido antes do ato, elementos que contrariam a alegada impulsividade suicida da mesma.
Além disso, os diálogos jargonados do filme deixam evidentes as suas pretensões hermenêuticas, prontamente identificadas por aficionados dos filmes de suspense, em especial os fãs de Billy Wilder e Alfred Hitchcock, homenageados climaticamente pelo filme [que é assemelhado à feitura propositalmente indutiva de “Femme Fatale” (2002, de Brian De Palma) em sua primeira metade]: num dado momento, o psicanalista Jonathan Banks descreve a depressão como sendo “a incapacidade de construir um futuro”, com base numa definição utilizada por outro psicólogo, que será repetida e ampliada em mais de um momento da trama; mais à frente, ele ouve da vilanesca Victoria Siebert que “um cardiologista pode prever um ataque cardíaco, mas como prever mentiras e tristeza?”, encontrando a posteriori uma resposta que será cabal para o deslindamento das intenções criminais de Emily, inocentada pelo viés da alegação de insanidade, confirmando-lhe que “o melhor preditor para os comportamentos futuros é a análise dos comportamentos passados”.
Por mais que a explicação conseqüencial dos eventos que culminaram no assassinato do marido de Emily e na ascensão comercial de uma dada empresa farmacêutica seja pejorativamente súbita, as técnicas directivas de que Steven Soderbergh se encarrega para transmiti-la são excepcionais, graças sobretudo à percuciente colaboração com o músico Thomas Newman, que possibilita sutis e geniais mudanças de perspectiva narrativa, como no ‘flashback’ que justifica o fingimento prolongado de Emily e a seqüência anterior em que o seu marido a conforta quando ela desaba em melancolia (enquanto efeito colateral do remédio que ela deveria estar tomando) numa festa.
Recapitulando mentalmente o filme, a dualidade reativa entre a impressão de que se é ludibriado pelo roteiro ao mesmo tempo em que ele oferece um brilhante reaproveitamento de variegados componentes cinematográficos resvala em instantes sagazes de assimilação do ponto de vista da protagonista, como quando ela se entretém patologicamente com um lençol desfiado enquanto está no leito de hospital em que conhece o Dr. Banks ou quando se vê deformada na superfície espelhada da pilastra de um bar. Tais instantes, entretanto, podem ser atrelados à argúcia da interpretação de Rooney Mara, que se demonstra bastante convincente até mesmo quando o filme ameaça descambar para a inverossimilhança precipitada e obliterada pelas convenções do subgênero golpista ao qual Steven Soderbergh se alinha.
Porém, a colaboração pertinaz com a montadora Mary Ann Bernard (na verdade, um pseudônimo para o próprio Steven Soderbergh, que também assume a direção de fotografia, através da alcunha de Peter Andrews), que aplica eficientíssimos escurecimentos de tela após as ocasiões mais violentas do filme (o choque do carro contra a parede e o esfaqueamento do marido de Emily), transfere as reações embasbacadas dos espectadores para a categoria do reconhecimento laudatório das capacidades técnicas do cineasta, que, aqui, utiliza-se inteligentemente – enquanto lhe é conveniente, claro – dos bem-sucedidos estratagemas condutivos de tensão que adotara no extraordinário “Contágio” (2011). A insistência em mostrar o doutor Jonathan Banks como uma pessoa com problemas familiares e estresse progressivo que, a fim de se preservar mentalmente ativo, ingere diversos comprimidos com a alegação de que “é bem melhor viver através da Química” é mais um dos vários pontos positivos do filme, propositalmente dúbio em sua constituição tramática mas quase unilateral em sua crença na idoneidade de um protagonista unitário (transferido no interior da narrativa) contra a ubiqüidade malévola de um sistema, traço discursivo (deslumbrado) constante em diversas obras do realizador.
Se Steven Soderbergh continua a clamar para ser reconhecido como gênio – mas, ao mesmo tempo, submete-se a requintes formais tradicionais ou esquemáticos que podam este clamor – com este filme muitíssimo bem-acabado e indubitavelmente superior à média hodierna hollywoodiana, ele atinge o píncaro de sua maestria autoral (para além da diversidade de gêneros a que se filia). Equivoca-se ao parecer confiar mais no roteiro que em si mesmo (subdividido em diversas funções técnicas), mas, ainda assim, está de parabéns!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 26 de maio de 2013
terça-feira, 7 de maio de 2013
EM TRANSE ('Trance') Inglaterra, 2013. Direção: Danny Boyle.
Celebrado em sua estréia cinematográfica por causa do excelente “Cova Rasa” (1994), o cineasta britânico Danny Boyle logo foi publicitariamente erigido como uma das maiores revelações da década de 1990, o que se confirmou após o lançamento do ainda mais extraordinário “Trainspotting – Sem Limites” (1996). A sua breve passagem por Hollywood – que rendeu o simpático “Por Uma Vida Menos Ordinária” (1997) e o equivocado “A Praia” (2000) – deixou seus fãs apreensivos acerca da continuidade de seu talento, afinal reconfirmado no magistral “Extermínio” (2002), no gracioso “Caiu do Céu” (2004) e no solene “Sunshine – Alerta Solar” (2007). Em seguida, ele foi beneficiado com vários lauréis ao redor do mundo graças ao apenas mediano “Quem Quer Ser um Milionário?” (2008), mas retomou a criatividade no inusitado “127 Horas” (2010), de modo que o seu retorno ao frenesi do começo de carreira era aguardado com ansiedade por seus admiradores.
Em mais de um aspecto, “Em Transe” (2013) cumpre as expectativas depositadas sobre ele: a música constante desde a seqüência inicial cria um jogo inteligentíssimo em relação à sua quase onipresença por conta do significado duplo da palavra ‘trance’, que, além de poder ser traduzida da forma como está no título brasileiro, também se refere a um subgênero da música eletrônica, em que alguns de seus renomados representantes (Moby, Unkle, M People) comparecem na banda sonora. Soma-se a isto a composição dúbia do personagem principal, bastante assemelhado aos tipos interpretados pelo primevo colaborador habitual do diretor, Ewan McGregor, cujo estilo jovial e despojado de atuação é positivamente emulado por James McAvoy. A narração artificiosa que abre o filme, com o protagonista olhando diretamente para a câmera enquanto uma seqüência de assalto se desenrola, traz à tona um chavão que será repetido várias vezes (“nenhuma obra de arte vale o preço de uma vida humana”), num requinte de ironia e sarcasmo que, comparativamente, poderia muito bem ser descrito como essencialmente boyleniano.
Apesar de o roteiro de Jon Ahearne e John Hodge (que já colaborou com o diretor em alguns de seus filmes mais destacados) ser bastante excitante, ele se torna cansativo em sua segunda metade, tamanho o excesso de informações desencontradas. Se, por um lado, este excesso permite que constatemos a habilidade do diretor em levar a cabo os seus exercícios de estilo, por outro, ele satura o espectador em razão do progressivo abandono do comentário inicial um tanto crítico sobre a relevância (monetária) das obras de arte, substituído por uma história de amor, ressentimento e traição nem sempre convincente e/ou interessante.
A justificativa para a cena em que a personagem de Rosario Dawson exibe a sua vagina emergencialmente depilada (a fim de saciar uma preferência estética de seu parceiro sexual, que constatou que, nos quadros, a ausência de pêlos pubianos nas musas desnudas indicava uma tendência contemplativa bastante valorizada pelos artistas) é impecável, mas lamenta-se que o diretor não tenha tido o mesmo desembaraço na exibição da nudez de James McAvoy, ao contrário do que fizera noutras demoradas oportunidades com o já citado Ewan McGregor e com Cillian Murphy, visto que a exposição da genitália masculina também goza de uma veemência pictórica reiterada. Este detalhe, entretanto, está longe de comprometer a interpretação do protagonista, bastante firme até mesmo nas crises de ciúme um tanto desenxabidas que encena em ‘flashback’.
Não obstante tanto James McAvoy quanto Vincent Cassel estarem admiráveis, é mesmo a bela e exótica Rosario Dawson que concentra as atenções desejosas do público, hipnotizando tanto literal quanto figurativamente as pessoas que se postam diante dela – e, neste sentido, as imagens de vários de seus pacientes durante sessões terapêuticas para libertarem-se de vícios, traumas ou manias é deveras pertinente. O apropriado uso da trilha sonora incidental de Rick Smith (que compôs “Here it Comes”, a ótima canção executada durante os créditos finais por Emeli Sandé) contribui ainda mais para a efetividade das pretensões nauseantes do diretor, particularmente alardeadas nas cenas que mostram um corpo feminino em decomposição entulhado de larvas muscídeas, um homem robusto atingido balisticamente em seu pênis ou uma cabeça decepada conversando com o protagonista, numa situação de influência reconhecidamente cronenberguiana.
Ratificando que este filme cumpre muitíssimo bem os seus intentos psicologicamente perturbadores e que, ritmicamente, é um filme digno de cotejo com as obras mais qualificadas do cineasta Danny Boyle, a confusão narrativa instaurada pelo roteiro – no sentido involuntário da expressão, que corre lado a lado com a sua contrapartida estilosa – impede que este tenha um resultado final coeso, para além da esperta direção fotográfica de Anthony Dod Mantle (que viabiliza insignes efeitos especulares), da montagem eficientíssima de Jon Harris e do trabalho louvável dos demais técnicos envolvidos na produção. Esta incoesão roteirística, inclusive, faz com que o filme provoque um arremedo amnésico em seus espectadores que, apesar de eventualmente ansiarem por uma revisão urgente da produção, talvez não se culpem por esquecer aquilo que parece ter sido roteirizado justamente para ser esquecido e, assim, cultivar uma aparência benfazeja de estado alterado de consciência.
“Em Transe”, portanto, torna-se refém de algumas de suas virtudes, mas, ainda assim, merece ser elogiado por demonstrar que seu diretor não capitulou frente aos ditames produtivos clicherosos e palatáveis que lhe proporcionaram diversos prêmios: malgrado ser abilolado, o desdobramento múltiplo do enredo é eximiamente notável por sua criatividade!
Wesley Pereira de Castro.
Em mais de um aspecto, “Em Transe” (2013) cumpre as expectativas depositadas sobre ele: a música constante desde a seqüência inicial cria um jogo inteligentíssimo em relação à sua quase onipresença por conta do significado duplo da palavra ‘trance’, que, além de poder ser traduzida da forma como está no título brasileiro, também se refere a um subgênero da música eletrônica, em que alguns de seus renomados representantes (Moby, Unkle, M People) comparecem na banda sonora. Soma-se a isto a composição dúbia do personagem principal, bastante assemelhado aos tipos interpretados pelo primevo colaborador habitual do diretor, Ewan McGregor, cujo estilo jovial e despojado de atuação é positivamente emulado por James McAvoy. A narração artificiosa que abre o filme, com o protagonista olhando diretamente para a câmera enquanto uma seqüência de assalto se desenrola, traz à tona um chavão que será repetido várias vezes (“nenhuma obra de arte vale o preço de uma vida humana”), num requinte de ironia e sarcasmo que, comparativamente, poderia muito bem ser descrito como essencialmente boyleniano.
Apesar de o roteiro de Jon Ahearne e John Hodge (que já colaborou com o diretor em alguns de seus filmes mais destacados) ser bastante excitante, ele se torna cansativo em sua segunda metade, tamanho o excesso de informações desencontradas. Se, por um lado, este excesso permite que constatemos a habilidade do diretor em levar a cabo os seus exercícios de estilo, por outro, ele satura o espectador em razão do progressivo abandono do comentário inicial um tanto crítico sobre a relevância (monetária) das obras de arte, substituído por uma história de amor, ressentimento e traição nem sempre convincente e/ou interessante.
A justificativa para a cena em que a personagem de Rosario Dawson exibe a sua vagina emergencialmente depilada (a fim de saciar uma preferência estética de seu parceiro sexual, que constatou que, nos quadros, a ausência de pêlos pubianos nas musas desnudas indicava uma tendência contemplativa bastante valorizada pelos artistas) é impecável, mas lamenta-se que o diretor não tenha tido o mesmo desembaraço na exibição da nudez de James McAvoy, ao contrário do que fizera noutras demoradas oportunidades com o já citado Ewan McGregor e com Cillian Murphy, visto que a exposição da genitália masculina também goza de uma veemência pictórica reiterada. Este detalhe, entretanto, está longe de comprometer a interpretação do protagonista, bastante firme até mesmo nas crises de ciúme um tanto desenxabidas que encena em ‘flashback’.
Não obstante tanto James McAvoy quanto Vincent Cassel estarem admiráveis, é mesmo a bela e exótica Rosario Dawson que concentra as atenções desejosas do público, hipnotizando tanto literal quanto figurativamente as pessoas que se postam diante dela – e, neste sentido, as imagens de vários de seus pacientes durante sessões terapêuticas para libertarem-se de vícios, traumas ou manias é deveras pertinente. O apropriado uso da trilha sonora incidental de Rick Smith (que compôs “Here it Comes”, a ótima canção executada durante os créditos finais por Emeli Sandé) contribui ainda mais para a efetividade das pretensões nauseantes do diretor, particularmente alardeadas nas cenas que mostram um corpo feminino em decomposição entulhado de larvas muscídeas, um homem robusto atingido balisticamente em seu pênis ou uma cabeça decepada conversando com o protagonista, numa situação de influência reconhecidamente cronenberguiana.
Ratificando que este filme cumpre muitíssimo bem os seus intentos psicologicamente perturbadores e que, ritmicamente, é um filme digno de cotejo com as obras mais qualificadas do cineasta Danny Boyle, a confusão narrativa instaurada pelo roteiro – no sentido involuntário da expressão, que corre lado a lado com a sua contrapartida estilosa – impede que este tenha um resultado final coeso, para além da esperta direção fotográfica de Anthony Dod Mantle (que viabiliza insignes efeitos especulares), da montagem eficientíssima de Jon Harris e do trabalho louvável dos demais técnicos envolvidos na produção. Esta incoesão roteirística, inclusive, faz com que o filme provoque um arremedo amnésico em seus espectadores que, apesar de eventualmente ansiarem por uma revisão urgente da produção, talvez não se culpem por esquecer aquilo que parece ter sido roteirizado justamente para ser esquecido e, assim, cultivar uma aparência benfazeja de estado alterado de consciência.
“Em Transe”, portanto, torna-se refém de algumas de suas virtudes, mas, ainda assim, merece ser elogiado por demonstrar que seu diretor não capitulou frente aos ditames produtivos clicherosos e palatáveis que lhe proporcionaram diversos prêmios: malgrado ser abilolado, o desdobramento múltiplo do enredo é eximiamente notável por sua criatividade!
Wesley Pereira de Castro.
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domingo, 5 de maio de 2013
SOMOS TÃO JOVENS (Brasil, 2013). Direção: Antônio Carlos da Fontoura.
Afastado do cinema há alguns anos [seu último filme fora o premiado e ainda não-visto “No Meio da Rua” (2006)], muito se especulou acerca deste retorno de Antônio Carlos da Fontoura à direção. Consagrado por conta de seu retrato cru da marginalidade carioca em “A Rainha Diaba” (1974) e pelo erotismo ousado de “Espelho de Carne” (1984, a ser conferido em sua integralidade), muito se indagava acerca de uma injunção moralmente asséptica na biografia do cantor e compositor Renato Manfredini Júnior (1960-1996), conhecido nacionalmente como Renato Russo.
A primeira aparição de Thiago Mendonça como o personagem deixa patente o cuidado do ator em reproduzir com a maior similaridade possível os tiques e afetações do célebre vocalista da banda Legião Urbana. Se não se pode atribuir ao seu desempenho um adjetivo inferior a “ótimo” (e é evidente que o ator estava ciente de toda a responsabilidade de sua personificação e dos julgamentos que enfrentaria numa comparação com o artista representado), a recriação do contexto em que seus dotes musicais são evidenciados peca pelo didatismo comercial, no pior sentido da expressão: em mais de um momento, os diálogos assemelham-se a “caça-frases” de passagens famosas de letras posteriores do cantor, misturando versos de canções como “Eduardo e Mônica” e “Tédio (com um T Bem Grande Pra Você)” às divagações existenciais classistas do personagem principal, criando um efeito desconfortável para o espectador que conhece a fundo a trajetória do artista.
Ou seja, por mais interessante que seja o deslindamento dos fatos da juventude de um dos compositores mais importantes do País, as contradições produtivas inevitáveis à concepção deste enredo (vigiado de perto pelas pessoas que conheceram Renato Russo nesta idade e que ainda estão vivas – sua mãe Carminha à frente) explicam o tom enviesado de algumas cenas que se pretendiam emocionantes, boa parte delas relacionada às pulsões homossexuais “não fisiológicas” do biografado.
A personagem Aninha (vivida pela iridescente Laila Zaid), melhor amiga do protagonista, era um dos fatores que mais perturbavam a crítica antes do lançamento do filme, por conta da assumida conciliação biográfica de várias garotas que circundaram o cantor na adolescência, mas ela engendra motivacionalmente os instantes mais singelos do filme, como, por exemplo, quando Renato lhe dedica a letra de “Ainda é Cedo” num concerto organizado para apresentar a sua nova banda, a Legião Urbana, ao jornalista cultural Hermano Vianna (vivido por Leonardo Villas Braga).
A informação contida nos créditos de que “este filme é uma adaptação livre de eventos e personagens reais” talvez proteja o roteiro de Marcos Bernstein de ataques mais inveterados, afinal justificados pelo chamariz publicitário embasado numa fidedignidade composicional, a ponto de fazer com que Thiago Mendonça (de fato, muito parecido com o personagem real) cantasse – muito bem, aliás – quase todas as canções do Renato Russo que aparecem no filme. Neste sentido, vale acrescentar que o roteiro é eficiente em sua apresentação factual, mas, obviamente, se deslumbra nalguns aspectos (a composição do personagem sul-africano Petrus, vivido por Sérgio Dalcin, por exemplo) e exagera e/ou se equivoca noutros (com destaque para a reação depressiva de Renato à notícia da morte de John Lennon e para a sua errância melancólica depois que rompe com os companheiros do Aborto Elétrico pela primeira vez). A temida assepsia comportamental que irrompia no ‘trailer’ não é tão incômoda (o protagonista quase enceta um romance com outro rapaz, aliás), mas as dificuldades atreladas aos questionamentos morais, sociais e políticos que Renato Russo apregoava em Brasília foram mal exploradas.
Não obstante a eficiente pesquisa sobre a cena musical brasiliense do período – bastante interconectada, conforme o personagem de Renato Russo enfatiza na ótima cena em que oferece ao repórter Hermano um “mapa da promiscuidade dos músicos locais” – as intervenções dos familiares do protagonista eram xaroposas ao extremo, seja as cobranças automáticas de seu pai (horrivelmente interpretado por Marcos Breda) seja a assistência titubeante de sua mãe (apaticamente vivificada por Sandra Corveloni), passando pela ingenuidade irritante de sua irmã Carmem Teresa (Bianca Comparato).
No elenco, portanto, as contribuições mais interessantes aos ótimos desempenhos de Thiago Mendonça e Lara Zaid estão nas figuras de Bruno Torres (Fê Lemos) e Daniel Passi (Flávio, paixão platônica do protagonista), que interpretam os irmãos que eram membros da banda Aborto Elétrico e que, futuramente, integrarão o grupo Capital Inicial, cujo líder, o cantor Dinho Outro Preto, é brevemente mostrado no filme através de um ator jovem (Ibsen Perucci) com muita semelhança física em relação a ele, ainda que, enquanto cantor, a versão intrafílmica para “Música Urbana” fique bastante aquém do original.
Por mais delicado que seja admitir isso, dada a conjugação desagradável de fatores que torna “Somos Tão Jovens” um filme muito mais oportunista em sua exploração da figura do ídolo do ‘rock’ biografado que um tributo respeitoso à sua importância inquestionável no panorama musical brasileiro (visto que a Legião Urbana ainda é uma influência quase onipresente nos cursos que visam ao ensino do violão, além de ser uma banda bastante ouvida por adolescentes que nasceram após a morte do seu vocalista), este filme não é ruim.
O recorte temporal adotado no roteiro foi bastante bem-sucedido em sua reconstituição de aspectos menos conhecidos da vida pessoal de Renato Russo (que, felizmente, é retratado como um rapaz rico presunçoso e desarranjado, como parecia ser), por mais que soe novelesco em seus momentos mais pretensamente ‘punks’, como aquele em que o personagem principal troca a trilha sonora ‘disco’ de uma festa por uma fita cassete com suas músicas barulhentas londrinas favoritas do período.
A direção de Antônio Carlos da Fontoura se conforma à subserviência narrativa típica das cinebiografias [mais ou menos como fez no chistoso “Uma Aventura do Zico” (1998)] e, no máximo, opta por desgastados movimentos de câmera frenética nas cenas musicais, distanciando-se bastante do frescor demonstrado em suas obras anteriores.
Soando deveras anódino para os fãs longevos de Renato Russo e oferecendo uma empolgação comedida para as gerações que ainda estão descobrindo as consistentes variações temático-emocionais ao longo de sua carreira, o filme ao menos é funcional em seu detalhamento elementar ficcional, como, por exemplo, ao relacionar o pendor intelectual do cantor às leituras forçadas que fez quando se recuperava, confinado em sua cama, da cirurgia de quadril a que teve que se submeter depois que descobre que padece de epifisiólise quando sofre uma queda de bicicleta. Oficialmente, este é um aspecto negativo do roteiro em sua demarcação ideológica (Renato declara-se entediado de tanto ler e, apesar de se confessar um cinéfilo admirador de Jean-Luc Godard e Joseph Losey, não fala sobre cinema quando está fora de sua banheira), mas involuntariamente sincero em sua exposição dos interesses produtivos aos quais a história do filme (com H minúsculo, malgrado as pertinentes citações à ditadura militar) se subordina. A relação publicitária com o vindouro lançamento de “Faroeste Caboclo” (2013, de René Sampaio) que o diga!
Wesley Pereira de Castro.
A primeira aparição de Thiago Mendonça como o personagem deixa patente o cuidado do ator em reproduzir com a maior similaridade possível os tiques e afetações do célebre vocalista da banda Legião Urbana. Se não se pode atribuir ao seu desempenho um adjetivo inferior a “ótimo” (e é evidente que o ator estava ciente de toda a responsabilidade de sua personificação e dos julgamentos que enfrentaria numa comparação com o artista representado), a recriação do contexto em que seus dotes musicais são evidenciados peca pelo didatismo comercial, no pior sentido da expressão: em mais de um momento, os diálogos assemelham-se a “caça-frases” de passagens famosas de letras posteriores do cantor, misturando versos de canções como “Eduardo e Mônica” e “Tédio (com um T Bem Grande Pra Você)” às divagações existenciais classistas do personagem principal, criando um efeito desconfortável para o espectador que conhece a fundo a trajetória do artista.
Ou seja, por mais interessante que seja o deslindamento dos fatos da juventude de um dos compositores mais importantes do País, as contradições produtivas inevitáveis à concepção deste enredo (vigiado de perto pelas pessoas que conheceram Renato Russo nesta idade e que ainda estão vivas – sua mãe Carminha à frente) explicam o tom enviesado de algumas cenas que se pretendiam emocionantes, boa parte delas relacionada às pulsões homossexuais “não fisiológicas” do biografado.
A personagem Aninha (vivida pela iridescente Laila Zaid), melhor amiga do protagonista, era um dos fatores que mais perturbavam a crítica antes do lançamento do filme, por conta da assumida conciliação biográfica de várias garotas que circundaram o cantor na adolescência, mas ela engendra motivacionalmente os instantes mais singelos do filme, como, por exemplo, quando Renato lhe dedica a letra de “Ainda é Cedo” num concerto organizado para apresentar a sua nova banda, a Legião Urbana, ao jornalista cultural Hermano Vianna (vivido por Leonardo Villas Braga).
A informação contida nos créditos de que “este filme é uma adaptação livre de eventos e personagens reais” talvez proteja o roteiro de Marcos Bernstein de ataques mais inveterados, afinal justificados pelo chamariz publicitário embasado numa fidedignidade composicional, a ponto de fazer com que Thiago Mendonça (de fato, muito parecido com o personagem real) cantasse – muito bem, aliás – quase todas as canções do Renato Russo que aparecem no filme. Neste sentido, vale acrescentar que o roteiro é eficiente em sua apresentação factual, mas, obviamente, se deslumbra nalguns aspectos (a composição do personagem sul-africano Petrus, vivido por Sérgio Dalcin, por exemplo) e exagera e/ou se equivoca noutros (com destaque para a reação depressiva de Renato à notícia da morte de John Lennon e para a sua errância melancólica depois que rompe com os companheiros do Aborto Elétrico pela primeira vez). A temida assepsia comportamental que irrompia no ‘trailer’ não é tão incômoda (o protagonista quase enceta um romance com outro rapaz, aliás), mas as dificuldades atreladas aos questionamentos morais, sociais e políticos que Renato Russo apregoava em Brasília foram mal exploradas.
Não obstante a eficiente pesquisa sobre a cena musical brasiliense do período – bastante interconectada, conforme o personagem de Renato Russo enfatiza na ótima cena em que oferece ao repórter Hermano um “mapa da promiscuidade dos músicos locais” – as intervenções dos familiares do protagonista eram xaroposas ao extremo, seja as cobranças automáticas de seu pai (horrivelmente interpretado por Marcos Breda) seja a assistência titubeante de sua mãe (apaticamente vivificada por Sandra Corveloni), passando pela ingenuidade irritante de sua irmã Carmem Teresa (Bianca Comparato).
No elenco, portanto, as contribuições mais interessantes aos ótimos desempenhos de Thiago Mendonça e Lara Zaid estão nas figuras de Bruno Torres (Fê Lemos) e Daniel Passi (Flávio, paixão platônica do protagonista), que interpretam os irmãos que eram membros da banda Aborto Elétrico e que, futuramente, integrarão o grupo Capital Inicial, cujo líder, o cantor Dinho Outro Preto, é brevemente mostrado no filme através de um ator jovem (Ibsen Perucci) com muita semelhança física em relação a ele, ainda que, enquanto cantor, a versão intrafílmica para “Música Urbana” fique bastante aquém do original.
Por mais delicado que seja admitir isso, dada a conjugação desagradável de fatores que torna “Somos Tão Jovens” um filme muito mais oportunista em sua exploração da figura do ídolo do ‘rock’ biografado que um tributo respeitoso à sua importância inquestionável no panorama musical brasileiro (visto que a Legião Urbana ainda é uma influência quase onipresente nos cursos que visam ao ensino do violão, além de ser uma banda bastante ouvida por adolescentes que nasceram após a morte do seu vocalista), este filme não é ruim.
O recorte temporal adotado no roteiro foi bastante bem-sucedido em sua reconstituição de aspectos menos conhecidos da vida pessoal de Renato Russo (que, felizmente, é retratado como um rapaz rico presunçoso e desarranjado, como parecia ser), por mais que soe novelesco em seus momentos mais pretensamente ‘punks’, como aquele em que o personagem principal troca a trilha sonora ‘disco’ de uma festa por uma fita cassete com suas músicas barulhentas londrinas favoritas do período.
A direção de Antônio Carlos da Fontoura se conforma à subserviência narrativa típica das cinebiografias [mais ou menos como fez no chistoso “Uma Aventura do Zico” (1998)] e, no máximo, opta por desgastados movimentos de câmera frenética nas cenas musicais, distanciando-se bastante do frescor demonstrado em suas obras anteriores.
Soando deveras anódino para os fãs longevos de Renato Russo e oferecendo uma empolgação comedida para as gerações que ainda estão descobrindo as consistentes variações temático-emocionais ao longo de sua carreira, o filme ao menos é funcional em seu detalhamento elementar ficcional, como, por exemplo, ao relacionar o pendor intelectual do cantor às leituras forçadas que fez quando se recuperava, confinado em sua cama, da cirurgia de quadril a que teve que se submeter depois que descobre que padece de epifisiólise quando sofre uma queda de bicicleta. Oficialmente, este é um aspecto negativo do roteiro em sua demarcação ideológica (Renato declara-se entediado de tanto ler e, apesar de se confessar um cinéfilo admirador de Jean-Luc Godard e Joseph Losey, não fala sobre cinema quando está fora de sua banheira), mas involuntariamente sincero em sua exposição dos interesses produtivos aos quais a história do filme (com H minúsculo, malgrado as pertinentes citações à ditadura militar) se subordina. A relação publicitária com o vindouro lançamento de “Faroeste Caboclo” (2013, de René Sampaio) que o diga!
Wesley Pereira de Castro.
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