Qualquer espectador minimamente familiarizado com a filmografia bressaneana, sobretudo os seus experimentos contemporâneos, saberá de antemão o que encontrará neste filme: não uma adaptação em si do mais famoso clássico literário de Machado de Assis [1839-1908], mas um diálogo muito pessoal consigo mesmo, a partir de um cotejo entre autor(es) e obra(s) que, ao ser compartilhado, propõe valiosas reflexões sobre o impacto da Arte em nosso dia a dia. Entretanto, há defasagens evidentes no projeto, que parece abandonado em determinado momento: não há um capítulo em destaque, a despeito do que o título indica. E não há conclusão...
A instância narrativa - o personagem Bentinho, mais velho, enquanto possível alter-ego de seu autor, interpretado por Enrique Diaz - prioriza as menções aos escritores e poetas que o fascinam: destaca um cabedal de brasileiros que faleceram no frescor de sua juventude, confirmando uma tendência dominante no Romantismo. Na juventude, Bentinho é interpretado por Vladimir Brichta, enquanto Capitu é vivida por Mariana Ximenes. Mas não chegam a desenvolver-se enquanto personagens: são ações em conflito, diante de situações que, conforme explica o narrador, faz com que eles pareçam "atores infelizes, no epílogo de um drama mal representado". O ciúme do personagem Bentinho é referendado por uma espécie de confirmação do seu caráter dúbio, a partir de um romance adúltero com Sancha (Djin Sganzerla), esposa de seu amigo Escobar. Não há julgamentos morais, entretanto: quando um problema insurge-se, outro mote é instaurado. Ao diretor, interessa mais o invólucro que o entrecho: quem completa a trama é quem a testemunha!
Como é praxe nos filmes recentes do diretor, imagens breves de seus trabalhos antigos aparecem em momentos-chave, incluindo a genial seqüência do microfone sobre um esqueleto, que abre o irregular "Brás Cubas" (1985). O cineasta assume a urgência de expor retrospectivamente a si mesmo, não hesitando sequer em apresentar trechos de um filme ainda em desenvolvimento, "A Longa Viagem do Ônibus Amarelo". Nos créditos finais, um 'making-of' improvisado - ao som da "Exaltação à Mangueira", na voz de Jamelão - ressaltando a necessidade do diretor em mostrar-se, junto à sua recorrente equipe, na qual a filósofa Rosa Dias, sua esposa, é colaboradora habitual em roteiro e montagem. Há pouco de inesquecível no filme, como se a lógica intersticial provocasse-nos o tempo inteiro: é preciso ler o romance, mas, ao mesmo tempo, ir além dele. Idem quanto ao filme, idem quanto à própria existência terrena. Capitu ousa desafiar um convite de seu marido, recusando-se em sair da cama, até que o tempo esteja encoberto. Mais tarde, uma confissão nos ouvidos de Bentinho: "há mulheres que ficam vermelhas quando beijam. Outras mordem... Eu morro. Morro e vou para o céu!". O experimento é válido, portanto: a Poesia repara aquilo que, quando não enfrentado devidamente no cotidiano, engendra separações...
Sob o olhar identitário, reclamar-se-á que o filme demonstra-se sobremaneira atrelado a uma noção de branquitude classista, cuja aparência ridícula não é disfarçada quando os personagens embebedam-se ao som de um canto de candomblé. Bentinho, irritado, chega a atrapalhar a execução do "Adágio" albinoniano por um belo violinista. A fotografia do filme, a cargo de Lucas Barbi, é requintada, e freqüentemente exige que percebamos a câmera, que a localizemos como prosseguimento narrativo, enquanto origem do olhar desvendado (e desvendador). Ainda que não seja um dos melhores filmes do cineasta, "Capitu e o Capítulo" faz com que sintamos bastante, convoca um tipo de intelectualidade em extinção no Brasil. É um coerente brado de resistência, por conseguinte!
Wesley Pereira de Castro.
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