Da mesma maneira que, num rompante inspirado do enredo, os personagens esforçam-se para encontrar algo positivo a partir da experiência com a AIDS, o maior problema deste filme está num aspecto que, isoladamente, seria um grande trunfo: a sua excessiva teatralidade. A primeira aparição de Rose Moreau (Renata Carvalho) que o diga: encolerizada após uma situação de preconceito vivida dentro de um ônibus, ela aproveita um encontro casual com Maura (Clara Choveaux) para declamar um monólogo deveras expressivo, acerca de seus sofrimentos pessoais. Ao enfatizar, em sua fala, que "travesti não é bagunça", fica evidente o interesse conscientizador - em âmbito contemporâneo - do roteiro, que possui diálogos bastante contundentes, mas instaura certa artificialidade na composição empática dos personagens, insuficientemente definidos, em muitos casos...
Apesar de não ser a protagonista, é Rose quem detém a centralidade ativa, ao surgir numa espécie de documentário sobre a sua própria vida, que será fundamental para a ressignificação pública (e militante) de um 'flashback' gravado em VHS. Num palco, ela dubla "Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)", de Gonzaguinha, com voz masculina. Emocionada por causa da pungente letra, ela esquece que estava interpretando, e expõe-se como o ser humano que é - o que, segundo ela, "quebra o clima da festa". A teatralidade, neste caso, surge como componente essencial de sobrevivência para os homossexuais retratados, em termos de redefinição discursiva das próprias angústias. Mais tarde, o protagonista Suzano (Johnny Massaro) pergunta, num surto de infelicidade e constatação de que está moribundo: "de que adianta tudo isso?". A resposta surge politicamente, através da voz de Ney Matogrosso, em "Fala", da banda Secos & Molhados, executada durante os créditos finais: "se eu não entender/ não vou responder/ Então, eu escuto"...
O modo como as canções surgem no filme é sobremaneira poderoso: além da trilha original de Giovani Cidreira e das músicas supracitadas, deve ser destacado também o momento epifânico em que "Seja o Meu Céu", de Robertinho de Recife, sintetiza o que estava sendo buscado por aquelas pessoas, incompreendidas pela sociedade, no réveillon de 1983. Neste sentido, o personagem principal - ainda que dotado de existência dramática - usurpa um pouco da potência do filme, ao trazer à tona alguns comentários familiares que frustram-nos por causa dos caprichos classistas, também evidenciados em seu sobrinho Muriel (Alex Bonini), que, ao saber que seu tio não aparecerá numa determinadas festa, reclama, em tom de pantim: "e a gente, vai se divertir como?". Não obstante ser mimado, caberá a ele a definitiva ação do filme, confirmando um ímpeto de amadurecimento moral anunciado em diversos momentos. Afinal, "as pessoas vão embora", conforme faz questão de dizer enfaticamente Suzano à sua irmã, como se trouxesse à tona uma boa notícia que nem todos compreendem.
Há algo de muito estranho nas interpretações: é como se, ao representarem quem também precisa representar na vida pessoal, os atores mantivessem seus personagens um tanto eclipsados, o que dificulta a identificação subjetiva. Isso é compensado pela reconstituição eficiente do desamparo na fase inicial de contágios pelo HIV no Brasil. Ao narrar um filme fictício que o obseda desde a infância, Suzano serve-se de uma frase do curta-metragem "A Pista" (1962, de Chris Marker) para justificar o título desta obra: a imagem pela qual ele é obcecado é a de um soldado que, num momento de desespero e fome intensificada, decide comer um pedaço de sua própria perna, a fim de sobreviver. Vomita bastante ao fazer isso, mas obtém êxito, permanece vivo. O espectador Suzano não lembra bem o que ocorre depois, pois "assistiu aos momentos de heroísmo com os olhos fechados". Adiantou muito o que ele fez, entretanto: a despeito das irregularidades e inconsistências fílmicas, algo muito importante é convertido em assunto. Falemos mais sobre isso!
Wesley Pereira de Castro.
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