segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

FRANCE (2021, de Bruno Dumont)


O mais recente filme do excêntrico diretor Bruno Dumont é surpreendente, sob vários aspectos: além de erigir a quebra de expectativas como mote central do enredo (de modo que isso consta no discurso final da protagonista, sobre a importância da valorização do presente), apresenta uma faceta inaudita em sua carreira, consolidada pelos dramas rurais, com requintes abundantes de cinismo. Aqui, lidamos com uma sátira contemporânea e eminentemente urbana, num recorte metalingüisticamente midiático. A polissemia nomenclatural da personagem-título não é causal: seja no prenome homonímico em relação ao País em que ela vive - não tão acolhedor quanto é publicitariamente disseminado -, seja no sobrenome herdado do seu marido, que anuncia morte. Tudo isso se confirma, mas o filme não pára de nos surpreender!


Protagonizado por uma Léa Seydoux em estado de graça, "France" revela as suas intenções sardônicas logo na abertura, quando a protagonista entrevista o presidente Emmanuel Macron de maneira desdenhosa, trocando gestos zombeteiros com a sua produtora Lou (Blanche Gardin, propositalmente odiável). Especialista em reportagens sensacionalistas em países não identificados que estão "em guerra permanente", France passa por uma mudança drástica de personalidade quando atropela, acidentalmente, um imigrante árabe. Torna-se depressiva e, em seus arroubos públicos de tristeza, converte-se em assunto do mesmo tipo de jornalismo que pratica. É quando resolve abandonar tudo - e novas surpresas acontecem!


Lacrimejando em quase todos os momentos, daí por diante - porque sente-se efetivamente triste e porque sabe que isso capitaneia a audiência -, France lidará com reviravoltas emocionais que a deixarão ainda mais exposta: apaixona-se (e é traída) por um rapaz que responde às suas cantorias românticas com a entoação do 'Dies Irae', em latim, numa das várias situações que são igualmente ternas e cômicas. É difícil categorizar genericamente este filme: nossas reações ao que acontece com a protagonista misturam-se bastante, como também ocorre com ela própria, que, às vezes, parece saber que está sendo dirigida enquanto personagem fílmica - vide o modo como ela olha solenemente para uma câmera superior não-diegética, após conversar, numa praça, com Baptiste (Jawad Zemmar)... 


Musicado pelo genial e versátil Christophe [1945-2020], este filme apresenta sonoridades distintas em seqüências contíguas, pontuando as súbitas alterações de humor que caracterizam France. Hábil manipuladora de seu público, ela aprende a espetacularizar as lágrimas que brotam espontaneamente, tornando-se uma manchete ambulante de si mesma. Longe dos holofotes, ela é perseguida pelo obcecado Charles (Emanuele Arioli), que suplica para que ela o rejeite, "mas não rejeite o nosso amor". Progressivamente, o filme direciona-se para o ambiente campestre, e as recorrentes caricaturas caipiras do diretor cerceiam a protagonista. Ela é tão carismática, entretanto, que, não obstante agir de maneira oportunista e controladora, torcemos por ela, apegamo-nos sinceramente. Num terreno aparentemente distinto de seus temas corriqueiros - é um filme muito mais "leve", por exemplo - Bruno Dumont orquestra uma espalhafatosa e descontraída obra-prima atual!



Wesley Pereira de Castro. 
 

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