Cada segundo deste longa-metragem despeja jorros de iconoclastia: a direção é coletiva, o discurso das personagens não-produtivas (em sentido capitalista) reivindica a valorização racial e não-binária (em termos de gênero), as imagens e sons fundem-se num halo continuamente psicodélico e o tom despojado das gravações emula tanto as produções da Belair quanto os filmes de Jack Smith [1932-1989]. Misturando canções românticas ou religiosas norte-americanas com a alegria eufórica em ritmo de 'funk', além de questionamentos diretos à modorra do espectador e de relatos pessoais de agressão e resistência, as travestis que se manifestam ao longo dos quase noventa minutos de duração denunciam os preconceitos advindos de homossexuais masculinos, dos cineastas brancos e da sociedade em geral. Em monólogos confusos e poucos audíveis, as personagens reclamam e dançam...
Na trilha musical, há desde composições de Tiago Mata Machado (que também colabora na montagem) até o tema instrumental de um clássico média-metragem anarquista francês: tudo é assimilado pela antropofagia contemporânea dessas reivindicantes de uma liberdade revolucionária que é interditada para os marginalizados. No início, um chiste dialogístico envolvendo a voz eletrônica de um sistema virtual de pesquisas (desafiado a falar sobre maconha e LSD); no final, coreografias diante de um caminhão de lixo. No meio, borrões, ensimesmamento, gritos e cantorias. Se as diretoras não chegam a apresentar uma proposta anti-fílmica efetivamente original, suas intenções são ostensivamente afrontosas: assistir a esta baderna audiovisual na íntegra é um verdadeiro desafio de sanidade!
Na falta de algo decoroso a ser dito sobre este exercício de revolta e vacuidade, a transcrição de sua sinopse: "rodado a quente com uma câmera Mini-DV, em 2018, sem grandes preparativos, mas com muito suor e cerveja, o filme se apresenta como uma sucessão de prólogos de um filme sempre por fazer. O que une todos é o desejo de pegar para si uma fatia do mundo". Elas conseguiram, é isso mesmo: os aforismos identitaristas aqui pronunciados transmutam-se numa sucessão arrítmica de torturas. Haja brutalidade!
Wesley Pereira de Castro.
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