sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Mostra Tiradentes 2022: EXTREMO OCIDENTE (2022, de João Pedro Faro)


A execução de "Ainda Queima a Esperança" (composta por Raul Seixas e Mauro Motta, mas eternizada na voz de Diana), durante os créditos de abertura, deixa evidente o quanto este jovem diretor sabe utilizar a ambigüidade como recurso narrativo que preenche as lacunas de uma 'mise-en-scène' tão multifacetada quanto espontânea. Na primeira metade do filme, o corpo alvo de Miguel Clark é fetichizado ao extremo, na preparação para o banquete solitário em que ele será servido e deglutido, enquanto deleite final. Por mais de trinta minutos, não há diálogos, apenas o cotidiano recluso do soldado, constantemente descamisado, escondido numa caserna. Se, por um lado, a paranóia bélica deste rapaz é evidente (vide a maneira alucinada como ele manuseia as armas que carrega), por outro, o espectador é sensorialmente convencido a acreditar que o estado de sítio é real: ouvimos barulhos de explosões em meio à mata, assustamo-nos ao perceber o cadáver de uma tartaruga na praia... 


Através de um primoroso desenho de som, marcado por muita distorção e breves excertos das mais variegadas canções - num rádio a pilha em persistente sintonização -, a perturbação mental e a solidão do protagonista são transmitidas: o arremedo de trama é apenas um pretexto para encontros que acentuam a fome sentida por todos os personagens. A aparição do temível Canibau (Daniel Brito) - não obstante confirmar a sua anunciada periculosidade , visto que ele dilacera o protagonista, numa sangrenta e demorada seqüência - reitera a profusão de significados que o diretor induz através de cada mínimo elemento: a lentidão cerimoniosa com que este vilão alisa o corpo do efebo protagonista transborda homoerotismo. "Ainda pior que a fome é a comida", confessou o soldado num monólogo anterior!


Ratificando a solidez de sua curta mas já marcante filmografia (este é apenas o seu segundo longa-metragem), João Pedro Faro chama a atenção pela efetividade com que emula a estética do VHS em seus planos, chegando ao ápice de, no encontro do soldado com um homem que faz churrasco de cachorros (Bruno Lisboa), ser oferecido um "chá de fita", que faz com que o protagonista passe mal. Na verdade, apenas reforça o torpor que ele já sentia, a ponto de ignorar a rapacidade de seu arquiinimigo. Quando perguntado se ele já escrevera algo, a resposta é a de que rascunhara cartas de suicídio; quando o flagramos lendo alguma coisa, trata-se do "Almanaque do Recruta Zero" ou de um manual sobre técnicas de socos atribuído a Bruce Lee [1940-1973]. O elã masturbatório atravessa todo o filme, sobretudo em seu clímax 'gore': valendo-se da suspeição antropofágica que alega que, ao ingerirmos a carne de alguém, inoculamos também com as suas características e traços de personalidade, o Canibau fuma os charutos fullerianos ao som da mesma trilha marcial que acompanhava os passos repetitivos do soldado. Neste filme, a sobrevivência é dependente do gozo. Um exercício de estilo imperfeitamente magistral! 



Wesley Pereira de Castro. 

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