sexta-feira, 12 de abril de 2024

UMA FAMÍLIA FELIZ (2023, de José Eduardo Belmonte)


Demonstrando-se um diretor tão prolífico quanto versátil, o paulista radicado em Brasília José Eduardo Belmonte chamou a atenção da crítica especializada quando lançou o corajoso “A Concepção” (2005), premiado em alguns festivais e mui corajoso em seu discurso anárquico. Se ele não obteve o mesmo sucesso com o pretensioso e tedioso “Meu Mundo em Perigo” (2007), acertou novamente em cheio no ótimo “Se Nada Mais Der Certo” (2008). Daí para a frente, revezou-se entre produções esquecíveis [“Billi Pig” (2011)], trabalhos pessoais e irregulares [“O Gorila” (2012) e “O Pastor e o Guerrilheiro” (2022), entre eles], mergulhos eficientes no cinema de gênero [“Alemão” (2014) e “Entre Idas e Vindas” (2016)] e diversas produções televisivas. É alguém cujo currículo merece ser analisado, portanto.


Em “Uma Família Feliz” (2023) – adaptado de um argumento que deu origem ao romance homônimo do carioca Raphael Montes, também roteirista do filme –, o diretor amalgama características de vários de seus filmes, sem que possamos tachá-lo efetivamente de uma obra autoral: ele volta a escalar Grazi Massafera como protagonista, insere alguns elementos discursivos de caráter pessoal (vide a revelação imagética na metade dos créditos finais, quando uma bandeira nacional deixa patente a orientação política do realizador) e manipula com habilidade as convenções do gênero suspense. Em muitos sentidos, este filme é uma eficiente adaptação brasileira de títulos noventistas como “Dormindo com o Inimigo” (1991, de Joseph Ruben) e “A Mão que Balança o Berço” (1992, de Curtis Hanson). Por isso mesmo, pode perturbar alguns espectadores.


O título do filme deixa evidente a desconfiança do realizador quanto à instituição familiar, o que já foi demonstrado em mais de um de seus filmes. Por detrás da perfeição daquele casal bem-sucedido, escondem-se segredos devastadores, que serão apresentados através de reviravoltas impressionantes. Que, por sua vez, perdem um pouco do impacto por conta da opção do diretor em iniciar a sua obra com o cllímax fatalista: na sequência inicial, a personagem Eva enterra uma de suas filhas gêmeas e provoca um acidente com a outra, num carro em altíssima velocidade. O porquê? É o que descobriremos após o unitário crédito titular.


Eva é casada com Vicente (Reynaldo Gianecchini), um advogado que anseia por uma promoção em seu trabalho, a fim de poder proporcionar mais luxo e conforto à sua esposa e às suas filhas. A família está prestes a aumentar, em verdade: Eva está grávida e, em pouco tempo, um garotinho será trazido para a casa luxuosa onde ela vive, na qual possui um ateliê de bonecos assemelhados a bebês humanos. O choro contínuo do recém-nascido incomodará a mulher, que não consegue dedicar-se ao seu ofício, em razão de estar sobrecarregada de trabalhos domésticos. Para piorar, Vicente descobre hematomas em uma de suas filhas...


Se, por causa do que é mostrado na seqüência de abertura, a condução narrativa faz com que o espectador pense que Eva está atormentada por crises de esquizofrenia, o que é reiterado pelo desenho de som marcado por uma constante e perturbadora cacofonia, na segunda metade da trama, acontece o inverso: fica-se ao lado de Eva, que desconfia que Vicente está abusando sexualmente das garotas. Quem estaria realmente machucando os filhos do casal? É algo que descobriremos apenas próximo ao desfecho, que permanece em aberto, exceto por um acréscimo nos créditos de encerramento. É quando aparece a bandeira supracitada, e o filme assume o seu franco aspecto antibolsonarista, associado à descrição de um modelo idealizado de família, composta pelos autodeclarados “cidadãos de bem”. O filme, inclusive, foi gravado em Curitiba, reduto de muitos partidários da extrema-direita brasileira.


As interpretações dos dois atores principais, deveras criticados em papéis anteriores, não são memoráveis, mas também não atrapalham a verossimilhança daquela conjuntura aburguesada: como sói acontecer entre pessoas que valorizam excessivamente as aparências, eles fingem ter um casamento ideal, até que eclode uma situação de “cancelamento”, e Eva passa a ser rejeitada pelos vizinhos e por aquelas que, até então, considerava como suas amigas. Por extensão, ela surta psiquiatricamente, o que faz com que suspeitemos, mais uma vez, que ela é a legítima culpada pelo que acontece às suas filhas. Até que, em determinado momento, o roteiro passa a defendê-la. Quando já é tarde demais, infelizmente!


Em sua adesão às fórmulas e reviravoltas de suspense, o filme merece ser divulgado e recomendado. Comete alguns deslizes em detalhes secundários (a cronologia dos dias registrados através de câmeras de vigilância, por exemplo, e a concordância textual numa pesquisa jornalística efetuada pela protagonista), mas isso não subestima por completo a inteligência e a sensibilidade de quem conferir o filme nos cinemas. É uma metonímia interessante dos valores destorcidos de membros privilegiados da elite aquisitiva do país. E mais uma confirmação de que, entre erros e acertos, José Eduardo Belmonte constrói uma filmografia tão numerosa quanto digna de análise, enquanto artesão capacitado do cinema brasileiro contemporâneo. Isso, definitivamente, não é pouco!



Wesley Pereira de Castro. 

 

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