Um traço que se destaca positivamente nos filmes com super-heróis derivados das histórias em quadrinhos escritas por Stan Lee é que seus personagens são comumente atormentados por dilemas pessoais, por fracassos amorosos e por crises existenciais que justificam os embates com seus antagonistas, visto que os ditos vilões são igualmente atormentados por dores aparentemente incuráveis. Na cinessérie protagonizada pelos X-Men, há um diferencial ainda mais afirmativo: além das tradicionais lutas entre heróis e vilões, concede-se vital importância a uma cisão interna no primeiro grupo, já que a categoria dos mutantes é subdivida entre aqueles que apóiam a convivência com os humanos [o grupo liderado pelo Professor Xavier] e aqueles que os consideram uma ameaça [aqueles comandados por Magneto].
Em outras palavras: o que torna “X-Men: O Filme” (2000) e “X-Men 2” (2003), ambos dirigidos por Bryan Singer, tão aprazíveis é que eles recusam o maniqueísmo recorrente no gênero, de maneira que os efeitos especiais e as cenas de ação são validadas por situações eminentemente dramáticas, relacionadas a metáforas do preconceito que vitima homossexuais e negros, principalmente. Não por acaso, pode-se identificar reminiscências de assunção homoerótica nos diálogos em que os mutantes [em especial, os adolescentes] confessam-se como tais para outrem e muitos exegetas apressaram-se em identificar similaridades entres os posicionamentos divergentes de Xavier e Magneto e os discursos anti-racismo de Martin Luther King (1929-1968) e Malcolm X (1925-1965), que apregoam a não-violência e o revide, respectivamente.
Diante de tudo isso – e sabendo-se que Bryan Singer retornou à direção de um capítulo da cinessérie após os simplismos directivos de Brett Ratner em “X-Men: o Confronto Final” (2006) e a reconstituição bem-aventurada do universo dos personagens em “X-Men: Primeira Classe” (2012, de Matthew Vaughn) – tinha como “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” (2014) malograr? Infelizmente foi o que (quase) aconteceu...
Apesar dos recursos eficientes de direção [a seqüência em que acompanhamos o modo como Pietro Maximoff/Mercúrio (Evan Peters) se relaciona com sua hiper-velocidade, ao som de “Time in a Bottle” (interpretada por Jim Croce), é simplesmente antológica!] e dos desempenhos eficientes do elenco (Michael Fassbender, por exemplo, está soberbo!), o roteiro de Simon Kinberg [baseado numa trama de Chris Claremont e John Byrne] é tão prejudicial em sua obsessão anistórica que decepciona largamente quem se empolgara com o inspirado título deste novo capítulo da saga.
Se, na cinessérie iniciada por “MIB – Homens de Preto” (1997, de Barry Sonnefeld), faz sentido a menção cômica de que celebridades como Andy Warhol e Michael Jackson seriam alienígenas disfarçados, neste filme, as concatenações pretendidas entre os feitos dos personagens e eventos da história (bélica) dos EUA soam inconvincentes e negativamente problemáticas, seja no que diz respeito à suposição de que Magneto teria assassinado o presidente John Fitzgerald Kennedy (segundo o personagem, ele, na verdade, tentou salvá-lo, visto que ele também era um mutante), seja nas referências acríticas (leia-se ufanistas) à crise dos mísseis em Cuba, à Guerra do Vietnã e aos atos públicos supostamente benevolentes de Richard Nixon.
Ou seja, além de atrelar estes eventos à participação ativa dos mutantes como se fossem meros chistes [sem posicionar-se de forma ideologicamente contrária às guerras entre humanos] o roteiro ainda comete a discutível (e reprovável) opção de ignorar a continuidade com os demais filmes: toda a participação de Mística (interpretada de forma impassível por Jennifer Lawrence) neste filme vai de encontro ao que Rebecca Romijn-Stamos faz sob a pele da personagem nos capítulos anteriormente lançados, hipertrofiando o aspecto de brecha no tempo que Kitty Pryde (Ellen Page) apregoa antes de fazer com que Wolverine (Hugh Jackman) reencarne em seu próprio corpo, cinqüenta anos antes.
Num dado momento, Hank McCoy (Nicholas Hoult) insinua que a linha do tempo agiria como a movimentação de uma onda aquática, de modo que, não importa os empecilhos eventuais, esta sempre seguiria o seu curso conforme programado. Do modo precário como este filme é narrativamente conduzido, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” seria dotado de maior significação se fosse um sonho – ou melhor, um pesadelo – de alguns dos personagens!
Ainda mencionando os defeitos do mau roteiro de Simon Kinberg, vale acrescentar que o modo como Xavier (na faceta vivificada por Patrick Stewart) lamenta que os mutantes sejam “tão poucos” em 2023 – por mais justificadamente defensável que esta lamentação quantitativa pareça frente à perseguição inclemente e letal dos Sentinelas robóticos – contradiz o seu elã integracionista, visto que este langor racialmente guetificado ignora a amplitude social das propostas educativas deste personagem nas obras anteriores.
O foco exacerbado nas pesquisas científicas de Bolivar Trask (Peter Dinklage) tem por intuito impedir que o espectador constate o quanto o enredo abole a complexidade estrutural das exigências não necessariamente vilanazes de Magneto: do jeito como aparece no filme, os temores militares envolvendo os mutantes são apartados dos clamores por convivência mútua que constituem o mote geral da saga, inclusive enquanto substrato de seus combates. O que era previamente uma imponente questão sociopolítica torna-se um tedioso (e/ou oportunista) ‘mcguffin’ de segurança nacional, de maneira que os personagens são desprovidos de motivação comunal, tornando-se pouco interessantes em sua previsibilidade de ações.
O apelo final às “escolhas que podem mudar o mundo” (quando Mística desiste de matar o anão cientista e Magneto foge, sem conseguir assassinar o presidente dos EUA, vivido por Mark Camacho) configura-se num clichê melodramático preguiçosamente defendido, cuja continuidade factual (Wolverine acordando num futuro paralelo, ao lado de seus companheiros do primeiro filme, ao som da recorrente “The First Time Ever I Saw Your Face”, interpretada por Roberta Flack) é negada pela revelação posterior de que Mística estaria disfarçada como o major Stryker (aqui vivido por Josh Helman) quando de seu resgate das águas. Isto não impediria que o mutante auto-regenerativo tivesse o seu esqueleto substituído por ‘adamantium’ e, como tal, associado às propriedades que o tornaram sumamente conhecido? Mais que isso: se as garras que atravessam as falanges do mutante, em 1973, são compostas por ossos, como ele conseguiu socar os utensílios metálicos que Magneto arremessa contra ele na luta derradeira? Tudo bem que verossimilhança não seja uma propriedade rigorosamente exigida em filmes de super-herói, mas respeito à lógica interna da obra era o mínimo que se podia esperar de um filme singeriano...
Não obstante desvirtuar lancinantemente os méritos intrínsecos do universo criado por Stan Lee e Jack Kirby, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” não é um filme ruim: conforme dito antes, a direção é muito boa; as canções de época são apropriadamente utilizadas enquanto ‘leitmotifs’; a montagem de John Ottman, parceiro habitual do diretor (que também assina a trilha musical) é ótima; e os efeitos visuais – deveras perceptíveis na apreciação de um filme como este – são portentosos.
Pena que os ótimos atores envolvidos no projeto não tiveram a oportunidade de dotar os seus personagens com motivações que transcendessem a belicosidade (ainda que num viés reativo): Omar Sy está subaproveitado como Bishop; Ian McKellen (excelente como o envelhecido e regenerado Magneto), a pitoresca Blink (Fan Bingbing) e o recruta mutante com poderes radioativos aparecem muito pouco; e Ellen Page oferece uma interpretação apenas funcional. Apesar de serem identificados como super-humanos, os mutantes neste filme agem como versões mecanizadas dos homens, subjugados e estigmatizados por seus próprios dons.
Numa cena potencialmente vigorosa, o jovem Charles Xavier (vivido sem frescor por James McAvoy) ouve prantos multilíngües quando tenta contatar mentalmente os mutantes ao redor do mundo, no afã por encontrar a sua amada Raven/Mística. O que poderia render um ótimo momento de discursividade cinematográfica torna-se um reles pretexto para que o alegado “coração partido” do personagem seja pleonasticamente identificado. Uma lástima! E, pelo que se pôde perceber ao final dos créditos de encerramento, o filme vindouro, “X-Men: Apocalipse” (programado para ser lançado em 2016), dará continuidade aos males identificados aqui: a História dos X-Men (em letras maiúsculas mesmo) transformou-se num mero pasticho comercial.
Ao contrário do que se defende na empolgante vinheta genética de abertura, mais um típico caso de involução hollywoodiana foi posto em cena!
Wesley Pereira de Castro.
terça-feira, 27 de maio de 2014
segunda-feira, 19 de maio de 2014
PRAIA DO FUTURO (Brasil/Alemanha, 2014). Direção: Karim Aïnouz.
Por mais desengonçado que seja este filme (principalmente em seu caricato terço final), é inegável que Karim Aïnouz realizou um trabalho autoral: as obsessões narrativas e formais de suas obras anteriores ressurgem transmutadas sob a atmosfera teutônica da cidade em que o diretor atualmente habita.
Protagonizado por um Wagner Moura cujo maior mérito é suplantar as encarnações elogiosas doutros filmes [o propalado heroísmo de Donato nada tem a ver com as façanhas dúbias do Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” (2007, de José Padilha), por exemplo], “Praia do Futuro” escancara em seu título uma preciosa chave interpretativa, ostensivamente divulgada durante os créditos finais, quando o logotipo de abertura aparece invertido.
Ou seja, se no início do filme, Praia do Futuro designa um substantivo próprio, o local no qual Donato trabalha como salva-vidas, em seu segmento final, este título é revestido de uma forte envergadura conotativa, metonimizado no instante em que Donato mostra a seu irmão Ayrton a praia alemã que ainda não é assim percebida, visto que, naquele instante, o mar fora deslocado para outro lugar. Num trecho bastante conciso, o diretor (e co-roteirista) sintetiza brilhantemente os seus intentos fílmicos, embora estes sejam prejudicados justamente pela má concepção do personagem Ayrton, mal-interpretado na infância pelo garoto Sávio Ygor Ramos e vivificado sem intensidade na idade adulta por Jesuíta Barbosa.
Felipe Bragança é creditado como autor do roteiro, ao lado do próprio diretor, mas os nomes de Anna Muylaert, Marco Dutra e Marcelo Gomes também são citados como colaboradores. Diante disso, não se sabe precisamente de quem é a responsabilidade pelas soluções equivocadas do terceiro segmento do filme, “Um Fantasma que Fala Alemão”, que, apesar de ser deveras elucidativo, é também o menos interessante.
Nesta terceira parte do filme, a trilha musical originalmente composta por Volker Bertelmann (que aparece como Hauschka) destaca-se com mais vigor, pontuando momentos encantatórios, como aquele em que Ayrton observa o trabalho de um mergulhador que limpa as paredes vítreas de um imenso aquário (antes de sabermos que este é Donato) ou o longo plano móvel que antecede os créditos de encerramento, no qual os veículos em que estão o trio de personagens deslocam-se numa passagem enevoada, enquanto o protagonista vivido por Wagner Moura recita uma carta imaginariamente escrita por ele (apelidado de Aquaman, como seu irmão o chamava) para Ayrton (cognominado Speed Racer), em que se chega à conclusão de que “existem dois tipos de medo: o de quem finge que nada é perigoso, e o de quem sabe que tudo é perigoso”. A distinção é evidente entre ambos os irmãos, por mais que a forçação dramática de cunho familiar quase desperdice a pujança emotiva desta declaração.
No segundo segmento do filme, o esplêndido “Um Herói Partido ao Meio”, a fotografia magistral de Ali Olay Gözkaya é utilizada no auge de sua beatitude: o instante em que Donato é mostrado ébrio numa boate, ao som de uma linda canção turca, pouco depois de comunicar ao seu amante que planeja voltar para o Brasil, é maravilhoso, pontuado por uma tonalidade avermelhada embriagante. O insigne momento em que Konrad (Clemens Schick) cantarola “Aline”, famosa canção do francês Christophe, num karaokê doméstico para Donato faz com que tenhamos a impressão de que este segmento é uma espécie de versão gélida do mesmo estado de espírito que preenchia o árido e passional “O Céu de Suely” (2006).
Não obstante o título deste segundo capítulo fazer menção ao caráter de Donato – que, apesar de reclamar que o seu coração e o seu cérebro não estão integralmente devotados a Konrad, desiste de retornar para o seu país-natal, para a sua família e para o seu antigo emprego – é o personagem alemão quem se sobressai dramaturgicamente, sendo bastante convincente em suas omissões íntimas (quem é a garotinha que aparece num quadro pendurado na parede de sua sala, por exemplo?), mancomunando-se brilhantemente ao estilo elíptico da trama. A cena em que, numa brincadeira de namorados, Konrad impede que Donato, recém-chegado à Alemanha, mergulhe num rio e o diálogo que eles travam num parque – quando começa a nevar exatamente após Donato reclamar que “não suporta viver num lugar sem praia” – são duas comprovações adicionais da maestria romântica deste segmento intermediário.
Se, ao término do filme, a execução da icônica canção de David Bowie “Heroes” (convertida subitamente na versão alemã da mesma, “Helden”), parece uma escolha demasiado óbvia – mas compensada pela efetividade beatífica do fundo exageradamente vermelho dos créditos finais [que realça a significação idealizada do título da realização prévia do cineasta, o malfadado “O Abismo Prateado” (2011)] –, em sua maravilhosa seqüência inicial, Konrad e um amigo (que morrerá afogado) são mostrados dirigindo suas motocicletas em altíssima velocidade pelas paisagens fascinantes da capital cearense, Fortaleza.
Com o falecimento do amigo do protagonista – cujo corpo não será encontrado – Konrad aproxima-se eroticamente de Donato, de um modo tão brusco quanto foi a morte do outro, que ele conhecera durante uma operação bélica no Afeganistão: Konrad e Donato transam no interior de um automóvel poucas horas após este último informar ao primeiro sobre o fato que intitula o segmento em pauta, “O Abraço do Afogado”. “Praia do Futuro”, destarte, é um filme que traz em sua própria moldura [a ótima montagem de Isabel Monteiro de Castro, parceira habitual do diretor] o esfacelamento afetivo que advinha do cotidiano profissionalmente opressivo do protagonista do genial “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, co-dirigido por Marcelo Gomes). Não é feliz em todos os seus propósitos pois o que parece ser mais proposital nos envolvimentos amorosos focalizados pelo diretor é justamente a constância da infelicidade, que, por sua vez, não prescinde de píncaros epifânicos de beleza. O olhar desolado de Sophie Charlotte Conrad como a abandonada Dakota, jovem loira com quem Ayrton tenciona fazer sexo anal, é uma vigorosa demonstração deste pressuposto, fazendo com que a viagem afoita de Donato seja permeada por anseios muito mais urgentes que “dar o cu escondido no Pólo Norte”, conforme seu irmão insinua, numa manifestação de rancor acumulado.
É um filme autoral, que afeta até mesmo quem ousa desvencilhar-se das identificações pessoais com os personagens marcados pelas emoções sub-reptícias, inclusive quando estas parecem explodir em agressões imitativas e aparentemente inofensivas de estórias de super-heróis lutando contra vilões, em que o suicídio aparece como solução válida após o extermínio do derradeiro inimigo...
Wesley Pereira de Castro.
Protagonizado por um Wagner Moura cujo maior mérito é suplantar as encarnações elogiosas doutros filmes [o propalado heroísmo de Donato nada tem a ver com as façanhas dúbias do Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” (2007, de José Padilha), por exemplo], “Praia do Futuro” escancara em seu título uma preciosa chave interpretativa, ostensivamente divulgada durante os créditos finais, quando o logotipo de abertura aparece invertido.
Ou seja, se no início do filme, Praia do Futuro designa um substantivo próprio, o local no qual Donato trabalha como salva-vidas, em seu segmento final, este título é revestido de uma forte envergadura conotativa, metonimizado no instante em que Donato mostra a seu irmão Ayrton a praia alemã que ainda não é assim percebida, visto que, naquele instante, o mar fora deslocado para outro lugar. Num trecho bastante conciso, o diretor (e co-roteirista) sintetiza brilhantemente os seus intentos fílmicos, embora estes sejam prejudicados justamente pela má concepção do personagem Ayrton, mal-interpretado na infância pelo garoto Sávio Ygor Ramos e vivificado sem intensidade na idade adulta por Jesuíta Barbosa.
Felipe Bragança é creditado como autor do roteiro, ao lado do próprio diretor, mas os nomes de Anna Muylaert, Marco Dutra e Marcelo Gomes também são citados como colaboradores. Diante disso, não se sabe precisamente de quem é a responsabilidade pelas soluções equivocadas do terceiro segmento do filme, “Um Fantasma que Fala Alemão”, que, apesar de ser deveras elucidativo, é também o menos interessante.
Nesta terceira parte do filme, a trilha musical originalmente composta por Volker Bertelmann (que aparece como Hauschka) destaca-se com mais vigor, pontuando momentos encantatórios, como aquele em que Ayrton observa o trabalho de um mergulhador que limpa as paredes vítreas de um imenso aquário (antes de sabermos que este é Donato) ou o longo plano móvel que antecede os créditos de encerramento, no qual os veículos em que estão o trio de personagens deslocam-se numa passagem enevoada, enquanto o protagonista vivido por Wagner Moura recita uma carta imaginariamente escrita por ele (apelidado de Aquaman, como seu irmão o chamava) para Ayrton (cognominado Speed Racer), em que se chega à conclusão de que “existem dois tipos de medo: o de quem finge que nada é perigoso, e o de quem sabe que tudo é perigoso”. A distinção é evidente entre ambos os irmãos, por mais que a forçação dramática de cunho familiar quase desperdice a pujança emotiva desta declaração.
No segundo segmento do filme, o esplêndido “Um Herói Partido ao Meio”, a fotografia magistral de Ali Olay Gözkaya é utilizada no auge de sua beatitude: o instante em que Donato é mostrado ébrio numa boate, ao som de uma linda canção turca, pouco depois de comunicar ao seu amante que planeja voltar para o Brasil, é maravilhoso, pontuado por uma tonalidade avermelhada embriagante. O insigne momento em que Konrad (Clemens Schick) cantarola “Aline”, famosa canção do francês Christophe, num karaokê doméstico para Donato faz com que tenhamos a impressão de que este segmento é uma espécie de versão gélida do mesmo estado de espírito que preenchia o árido e passional “O Céu de Suely” (2006).
Não obstante o título deste segundo capítulo fazer menção ao caráter de Donato – que, apesar de reclamar que o seu coração e o seu cérebro não estão integralmente devotados a Konrad, desiste de retornar para o seu país-natal, para a sua família e para o seu antigo emprego – é o personagem alemão quem se sobressai dramaturgicamente, sendo bastante convincente em suas omissões íntimas (quem é a garotinha que aparece num quadro pendurado na parede de sua sala, por exemplo?), mancomunando-se brilhantemente ao estilo elíptico da trama. A cena em que, numa brincadeira de namorados, Konrad impede que Donato, recém-chegado à Alemanha, mergulhe num rio e o diálogo que eles travam num parque – quando começa a nevar exatamente após Donato reclamar que “não suporta viver num lugar sem praia” – são duas comprovações adicionais da maestria romântica deste segmento intermediário.
Se, ao término do filme, a execução da icônica canção de David Bowie “Heroes” (convertida subitamente na versão alemã da mesma, “Helden”), parece uma escolha demasiado óbvia – mas compensada pela efetividade beatífica do fundo exageradamente vermelho dos créditos finais [que realça a significação idealizada do título da realização prévia do cineasta, o malfadado “O Abismo Prateado” (2011)] –, em sua maravilhosa seqüência inicial, Konrad e um amigo (que morrerá afogado) são mostrados dirigindo suas motocicletas em altíssima velocidade pelas paisagens fascinantes da capital cearense, Fortaleza.
Com o falecimento do amigo do protagonista – cujo corpo não será encontrado – Konrad aproxima-se eroticamente de Donato, de um modo tão brusco quanto foi a morte do outro, que ele conhecera durante uma operação bélica no Afeganistão: Konrad e Donato transam no interior de um automóvel poucas horas após este último informar ao primeiro sobre o fato que intitula o segmento em pauta, “O Abraço do Afogado”. “Praia do Futuro”, destarte, é um filme que traz em sua própria moldura [a ótima montagem de Isabel Monteiro de Castro, parceira habitual do diretor] o esfacelamento afetivo que advinha do cotidiano profissionalmente opressivo do protagonista do genial “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, co-dirigido por Marcelo Gomes). Não é feliz em todos os seus propósitos pois o que parece ser mais proposital nos envolvimentos amorosos focalizados pelo diretor é justamente a constância da infelicidade, que, por sua vez, não prescinde de píncaros epifânicos de beleza. O olhar desolado de Sophie Charlotte Conrad como a abandonada Dakota, jovem loira com quem Ayrton tenciona fazer sexo anal, é uma vigorosa demonstração deste pressuposto, fazendo com que a viagem afoita de Donato seja permeada por anseios muito mais urgentes que “dar o cu escondido no Pólo Norte”, conforme seu irmão insinua, numa manifestação de rancor acumulado.
É um filme autoral, que afeta até mesmo quem ousa desvencilhar-se das identificações pessoais com os personagens marcados pelas emoções sub-reptícias, inclusive quando estas parecem explodir em agressões imitativas e aparentemente inofensivas de estórias de super-heróis lutando contra vilões, em que o suicídio aparece como solução válida após o extermínio do derradeiro inimigo...
Wesley Pereira de Castro.
quarta-feira, 7 de maio de 2014
OBJECTIFIED ('Objectified'') EUA, 2009. Direção: Gary Hustwit.
AVISO PRÉVIO: este artigo é, na verdade, decorrente de uma crise produtiva aliada a uma exigência em sala de aula. Um professor pediu que resenhássemos um longa-metragem incisivo em suas observações sobre o 'design', e comparássemos alguns de seus conceitos com a atividade jornalística. Gostei muito do filme, mas não sei se entendi bem a exigência avaliativa. O resultado é o que se segue.
Produzido como parte de um projeto mais amplo do cineasta Gary Hustwit sobre as influências do ‘design’ gráfico na sociedade [antes dele foi lançado “Helvetica” (2007, ainda não-visto), sobre tipografia; e, em seguida, “Urbanizada” (2011), sobre a planificação urbana de diferentes cidades ao redor do mundo], “Objectified” tem como ponto de partida um jargão proferido por um dos entrevistados: “o ‘design’ é a busca da forma”. A partir disso, o filme discute variadas questões relacionadas à dicotomia entre formato e funcionalidade.
Num dos momentos mais inspirados do filme, um ‘designer’ compara três diferentes tipos de aspiradores de pó: um deles é tão bonito que, além de servir para aspirar o pó dos ambientes, pode ser utilizado como adorno; um segundo tipo se destaca pela capacidade de penetrar em espaços íngremes; e um terceiro chama a atenção pelos benefícios interativos, chegando ao luxo de poder ser manobrado por um hâmster. Num cotejo com a atividade jornalística, esta apresentação tripartite das propriedades do ‘design’ leva-nos a questionar os conceitos-chave explorados pelo entrevistado: as relações entre o formato de um determinado produto e a sua contribuição utilitária, sua diferenciação externa e seu potencial de reatividade às particularidades dos usuários ou consumidores.
Entendendo-se os resultados jornalísticos como produtos midiáticos, é possível adotar as mesmas preocupações externadas pelos ‘designers’, no filme, em relação aos “excessos” de sua profissão no contexto exageradamente competitivo da Indústria Cultural hodierna, marcada sobretudo pela globalização. Não por acaso, o filme acompanha a similaridade das campanhas publicitárias de determinados artefatos tecnológicos em diferentes países, demonstrando o quanto a disseminação popular destes visa à massificação do consumo, que, em sua imposição, tolhe as particularidades culturais dalgumas regiões. Cabe ao jornalista, portanto, a investigação sobre as condições de apropriação de um determinado requisito noticioso num dado local, o que, no caso do documentário, encontra eco no depoimento da ‘designer’ que traz à tona questões de sustentabilidade ou preservação ambiental.
No filme, é dito que “as pessoas são criativas por natureza e nem sempre se satisfazem com aquilo que lhes é ofertado”, o que não implica numa ode desenfreada à manipulação ‘per si’ das formas: quase todos os depoentes concordam que, no ‘design’, a (aparência de) simplicidade é um dos maiores méritos, o que equivale à concisão e a linearidade dos textos jornalísticos, comumente normatizados através de modelos como os de ‘lead’ ou da “pirâmide invertida”.
Ampliando a comparação – e escolhendo um dado tipo de produto jornalístico (a crítica cinematográfica, por exemplo) – tem-se a oportunidade de investigar em quais medidas a “forma” de um texto destaca-se ou coaduna-se a seu conteúdo, sendo o equilíbrio entre uma e outro o seu ideal. É interessante como, no filme, uma anedota elementar sobre um problema engendrado pela diferenciação excessiva de formatos (as flechas personalizadas de uma determinada tribo indígena, que, por serem distintas de um a outro individuo, não podiam ser reutilizadas em arcos alheios) justifica a existência de normas reguladoras e de referências diacrônicas no ‘design’, tanto quanto acontece no Jornalismo enquanto curso universitário.
A saturação de formatos – muitos deles “inúteis” ou preciosistas – é uma conseqüência nociva da industrialização exacerbada, problema este que, por ser equanimente despejado pela cultura de massa, interfere na maneira como as pessoas (ou os consumidores) relacionam-se afetivamente com os produtos que adquirem, visto que não apenas “todo produto conta a sua própria história” (percepção atribuída ao industrial Henry Ford) como faz sentido o conselho ofertado por um dos ‘designers’ ao final do documentário: “tu és a única audiência que importa”. Ao final do documentário – e da comparação jornalística aqui pretendida - quedam, portanto, muito mais questões que respostas!
Wesley Pereira de Castro.
Produzido como parte de um projeto mais amplo do cineasta Gary Hustwit sobre as influências do ‘design’ gráfico na sociedade [antes dele foi lançado “Helvetica” (2007, ainda não-visto), sobre tipografia; e, em seguida, “Urbanizada” (2011), sobre a planificação urbana de diferentes cidades ao redor do mundo], “Objectified” tem como ponto de partida um jargão proferido por um dos entrevistados: “o ‘design’ é a busca da forma”. A partir disso, o filme discute variadas questões relacionadas à dicotomia entre formato e funcionalidade.
Num dos momentos mais inspirados do filme, um ‘designer’ compara três diferentes tipos de aspiradores de pó: um deles é tão bonito que, além de servir para aspirar o pó dos ambientes, pode ser utilizado como adorno; um segundo tipo se destaca pela capacidade de penetrar em espaços íngremes; e um terceiro chama a atenção pelos benefícios interativos, chegando ao luxo de poder ser manobrado por um hâmster. Num cotejo com a atividade jornalística, esta apresentação tripartite das propriedades do ‘design’ leva-nos a questionar os conceitos-chave explorados pelo entrevistado: as relações entre o formato de um determinado produto e a sua contribuição utilitária, sua diferenciação externa e seu potencial de reatividade às particularidades dos usuários ou consumidores.
Entendendo-se os resultados jornalísticos como produtos midiáticos, é possível adotar as mesmas preocupações externadas pelos ‘designers’, no filme, em relação aos “excessos” de sua profissão no contexto exageradamente competitivo da Indústria Cultural hodierna, marcada sobretudo pela globalização. Não por acaso, o filme acompanha a similaridade das campanhas publicitárias de determinados artefatos tecnológicos em diferentes países, demonstrando o quanto a disseminação popular destes visa à massificação do consumo, que, em sua imposição, tolhe as particularidades culturais dalgumas regiões. Cabe ao jornalista, portanto, a investigação sobre as condições de apropriação de um determinado requisito noticioso num dado local, o que, no caso do documentário, encontra eco no depoimento da ‘designer’ que traz à tona questões de sustentabilidade ou preservação ambiental.
No filme, é dito que “as pessoas são criativas por natureza e nem sempre se satisfazem com aquilo que lhes é ofertado”, o que não implica numa ode desenfreada à manipulação ‘per si’ das formas: quase todos os depoentes concordam que, no ‘design’, a (aparência de) simplicidade é um dos maiores méritos, o que equivale à concisão e a linearidade dos textos jornalísticos, comumente normatizados através de modelos como os de ‘lead’ ou da “pirâmide invertida”.
Ampliando a comparação – e escolhendo um dado tipo de produto jornalístico (a crítica cinematográfica, por exemplo) – tem-se a oportunidade de investigar em quais medidas a “forma” de um texto destaca-se ou coaduna-se a seu conteúdo, sendo o equilíbrio entre uma e outro o seu ideal. É interessante como, no filme, uma anedota elementar sobre um problema engendrado pela diferenciação excessiva de formatos (as flechas personalizadas de uma determinada tribo indígena, que, por serem distintas de um a outro individuo, não podiam ser reutilizadas em arcos alheios) justifica a existência de normas reguladoras e de referências diacrônicas no ‘design’, tanto quanto acontece no Jornalismo enquanto curso universitário.
A saturação de formatos – muitos deles “inúteis” ou preciosistas – é uma conseqüência nociva da industrialização exacerbada, problema este que, por ser equanimente despejado pela cultura de massa, interfere na maneira como as pessoas (ou os consumidores) relacionam-se afetivamente com os produtos que adquirem, visto que não apenas “todo produto conta a sua própria história” (percepção atribuída ao industrial Henry Ford) como faz sentido o conselho ofertado por um dos ‘designers’ ao final do documentário: “tu és a única audiência que importa”. Ao final do documentário – e da comparação jornalística aqui pretendida - quedam, portanto, muito mais questões que respostas!
Wesley Pereira de Castro.
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