segunda-feira, 11 de novembro de 2024
AINDA ESTOU AQUI (2024, de Walter Salles)
sábado, 2 de novembro de 2024
CORINGA: DELÍRIO A DOIS (2024, de Todd Phillips)
O segmento de abertura deste filme - um breve desenho animado, concebido pelo francês Sylvain Chomet, intitulado "Eu e Minha Sombra" - é bastante efetivo ao distanciar este segundo capítulo do anterior: além de resumir a trama, em viés simbólico, ele traz à tona a questão da disassociação de personalidade, fundamental para se curtir o musical ora apresentado, em viés depressivo e sumamente melancólico. Ao invés do pretenso denuncismo social do prévio enredo com o atormentado protagonista, temos agora um potente estudo de personagem, que atingirá em cheio quem já experimentou a solidão que ele tenta desesperadamente sufocar...
Para que "Coringa: Delírio a Dois" (2024) seja efetivo em seu contato com o público, convém desvencilhá-lo radicalmente do personagem dos quadrinhos: Arthur Fleck (magnificamente interpretado por Joaquin Phoenix, mais uma vez) não é o Coringa arqui-inimigo do Batman, mas um dentre vários Coringas possíveis, a depender das expectativas de quem está frustrado com as condições hodiernas das instituições sociais. E, neste sentido, a patricinha filha de médico e pós-graduada em Psicologia que se apaixona por Arthur - apenas quando maquiado - também não é a infame Arlequina, mas uma delirante imitadora, mais uma fetichista na conjuntura espetaculosa dos julgamentos criminais.
Em sua exposição inclemente de um manicômio que maltrata impiedosamente os seus internos, o diretor Todd Phillips introduz Arthur Fleck como aprisionado num inferno que só lhe permite algum respiro quando ele adere à insanidade: seja quando ela surge de maneira inevitável, enquanto conseqüência dos maus tratos que experimentou ao longo de toda a vida, e que encontra na Música, e na paixão, algum bálsamo; seja quando ela é manipulada, a fim de obter o apoio de parte indignada da opinião pública, que é chantagista, e só ficará ao lado de Arthur Fleck se ele obedecer à tipificação que eles projetam. Por isso, ainda na fase inicial de sua paixonite, o protagonista percebe que o afeto de sua amada não é tão recíproco ou inabalável quanto ela faz imaginar...
É a deixa para que elogiemos a ambigüidade compositiva de Lady Gaga, como a alucinada Lee Quinzel, deveras funcional naquilo que a fez ser escalada enquanto coadjuvante: a sua impressionante potência vocal e a fascinante esquisitice de sua beleza. Os números musicais em que ela contracena são deveras efetivos na crítica ao 'showbiz', do qual é ela uma criação acachapante. Por isso, quanto mais a narrativa avança, mais Arthur Fleck canta sozinho, culminando no doloroso instante em que, nos créditos finais, ouvimos ele entoar os versos merencórios de "True Love Will Find You in the End", de Daniel Johnston, depois de ser esfaqueado por um interno (Connor Storrie), chateado porque o mito anárquico erigido no primeiro filme revelou-se um ser humano fraco - porque essencialmente humano -, destroçado por uma paixão que acaba bruscamente. Tem como ser mais sintomático que isso, no que tange à adesão de alguns votantes à extrema-direita?
Inevitavelmente irregular, em suas duas horas e dezoito minutos de duração, "Coringa: Delírio a Dois" conjuga as convenções de um musical neurastênico com o típico filme de tribunal, havendo a aguardada cena em que Arthur Fleck dispensa a advogada (vivida por Catherine Keener) que, por algum motivo, o defendia de maneira abnegada. O dramático interrogatório do personagem Gary Puddles (Leigh Gill) é um dos pontos altos do julgamento - tanto quanto a entrevista com o cínico apresentador de TV vivido por Stevie Coogan -, mas são as cenas de (des)amor que tornam este filme marcante: o instante em que Arthur pede que Lee conduza o ato sexual, já que ele é praticamente virgem; quando ela confessa-se grávida; quando ele deixa-lhe uma mensagem na secretária eletrônica (cantarolando "If You Go Away", versão em inglês para a antológica "Ne Me Quitte Pas", de Jacque Brel); e o diálogo próximo ao final, quando ela o dispensa, na escadaria que ela fingiu ter atravessado na juventude, a fim de conquistar seu objeto idealizado de desejo (o Coringa, não Arthur). Temos, aqui, um filme sumamente incompreendido e, como tal, vitimado pelo mesmo tormento que aflige o seu protagonista!
Wesley Pereira de Castro.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
MEGALÓPOLIS (2024, de Francis Ford Coppola)
Neste filme grandiloqüente - mas tramaticamente regido a partir da simplicidade da fábula que ele assume ser, desde o crédito titular -, encontramos aspectos que já foram abordados em obras anteriores do diretor. Seja a reflexão sobre as conseqüências trágicas do poder, em contrapartida aos afetos familiares, marcante em "O Poderoso Chefão" (1972); seja o romantismo que não tem receio de ser 'kitsch', característico de "O Fundo do Coração" (1981); seja a opulência redentora de "Drácula de Bram Stoker" (1992). Ao final, a moral da estória é deveras elementar: o amor transforma e salva. Ainda que o sobejo de credulidade na transmissão deste recado soe um tanto duvidoso.
Explicamos: se não se duvida que o protagonista Cesar Catilina (Adam Driver), um "homem do futuro, mas aprisionado no passado", tenha efetivamente se apaixonado por Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), a pretensa inocência atrelada a esta personagem é prejudicada pela desenxabidez da atriz que a interpreta, de modo que os seus olhares lânguidos são abafados pelos exageros de tudo o que acontece ao redor. Outro aspecto problemático é o comodismo com que se resolvem algumas situações, a fim de garantir um "final feliz", como a morte anticlimática de Wow Platinum (Aubrey Plaza), de maneira incompatível com a sua esperteza de 'femme fatale', e a confissão de Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) acerca da participação no laudo adulterado que responsabilizou Cesar pela morte de sua primeira esposa, sanando num breve diálogo uma rivalidade longeva. Junta-se a isso o desaparecimento súbito de personagens relevantes como o narrador Romaine (Laurence Fishburne) e o "consertador" Nush Berman (Dustin Hoffman).
Quem quiser elencar defeitos neste filme, terá muito a enumerar, mas também desperdiçará a oportunidade de se esbaldar numa "superprodução independente" que eleva ao paroxismo os seus intentos: a montagem é alucinógena, a direção de arte é acachapante, as atuações são exageradas e as homenagens a diretores como Federico Fellini e Jean-Luc Godard são evidentes. Mas Francis Ford Coppola cozinha o seu sarapatel de maneira extremamente autoral, contando com o apoio de atores que entregaram-se por completo ao frenesi exigido nalgumas situações. Neste sentido, a seqüência do casamento entre Crassus (Jon Voight) e Wow Platinum é magistral, confirmando a esfuziante conjunção entre Dinheiro, Jornalismo e 'Sex Appeal'. E ainda que seus personagens não apareçam tanto em cena - ao menos, não tanto quanto o enredo solicita -, Jon Voight e Shia LaBeouf estão extraordinários, o que surpreende por uma questão extrafílmica: o primeiro destes atores é um apoiador contumaz do candidato à presidência Donald Trump, quando o roteiro do filme possui explícito apelo ideológico em contrário. Não apenas antitrumpista, mas antifascista em geral!
Em seu acerto de contas político e audiovisual, quiçá um testamento, Francis Ford Coppola aproveita para dedicar esta obra tão íntima à sua recém-falecida esposa, Eleanor Coppola [1936-2024], reverenciada nos créditos finais, junto à menção do ano de produção em algarismos romanos: MMXXIV. As metáforas sobre os vícios romanos, deveras similares à configuração hodierna dos EUA, são exploradas de maneira inteligente, e os contrastes entre elementos antigos e contemporâneos é genial, como quando Vesta Sweetwater (Grace VanderWaal) entra em cena para leiloar a sua candura, supostamente adolescente, e um videoclipe 'pop' explode na tela. As emulações subjetivas do olhar alucinado de Cesar são fascinantes, contaminando toda a extensão da projeção, visto que esta confusão sensória surge como efeito colateral do elemento Megalon, que possui propriedades de controle do espaço e, principalmente, do tempo. Não é a obra-prima que acredita ser, mas é um filme que faz jus às maiores expectativas: um fuzuê de imagens, sons e delírios, que pode causar indigestão em alguns, mas deixa outros lambendo os beiços, ao término das duas horas e dezoito minutos de duração, para aproveitar a menção culinária do início. Dá para perceber a qual dos grupos o autor destas linhas pertence, não é?
Wesley Pereira de Castro.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
O QUARTO AO LADO (2024, de Pedro Almodóvar)
Como acontece nas melhores tramas almodovarianas, os filmes a que suas personagens assistem desempenham importantes funções metanarrativas. E, neste caso, são três, em seguida: a comédia "Sete Oportunidades" (1925, de Buster Keaton), no qual o protagonista é perseguido por diversas pretendentes matrimoniais; o melodrama "Carta de uma Desconhecida" (1948, de Max Ophüls), em que uma falha de comunicação impede o reencontro entre uma moribunda e o seu grande amor, que é hedonista; e o clássico "Os Vivos e os Mortos" (1987, de John Huston), baseado num conto de James Joyce [1882-1941], cujas frases derradeiras são recitadas pela personagem de Tilda Swinton, em mais de uma oportunidade, e que ecoam no desfecho do filme, de cariz sirkiano. As referências são tantas e tão requintadas que o próprio estilo de Pedro Almodóvar parece domesticado e envelhecido. O que é intencional, neste segundo caso, tal qual vem ocorrendo desde o semi-autobiográfico "Dor e Glória" (2019)...
O tom de lamento crítico, evidente nos adjetivos suprautilizados, é uma percepção que advém da confluência de algo adotado pelo diretor, em seus médias-metragens anteriores, falados em inglês ["A Voz Humana" (2020) e "Estranha Forma de Vida" (2023 - resenhado aqui): ao abdicar de seu idioma pátrio, ele aceita um aburguesamento extremado, como se fosse um estadunidense típico, a ponto de render-se a 'flashbacks' indignos de sua sensualidade, caricatos na maneira como abordam a gravidez na adolescência e os traumas decorrentes da participação na guerra do Vietnã. Por conta disso, "O Quarto ao Lado" (2024) demora a engrenar, a despeito dos talentos das ótimas atrizes envolvidas no projeto.
Na verdade, se Tilda Swinton, em sua segunda colaboração com o diretor, está maravilhosa em cada aparição da adoentada Martha, a afetação comportamental de Julianne Moore, como Ingrid, incomoda pela linha tênue na construção de sua personagem, que oscila entre a erudição e a futilidade. A seqüência em que ela fica ofegante ao praticar leves exercícios de locomoção, numa academia de ginástica, que o diga. Para contrastar, Damian, personagem de John Turturro, com quem ambas as amigas já tiveram um relacionamento amoroso, surge como uma voz racional, ainda que conscienciosamente culpada, ao diagnosticar a comunhão entre neoliberalismo e extrema-direita enquanto origem dos maiores problemas sociais hodiernos. Deve-se aderir a um inevitável pessimismo?
O humor e o erotismo tentam se insurgir, nalguns momentos, mas sempre sob o viés da nostalgia: quando Damian comenta que, na juventude, "um dia sem sexo era um dia desperdiçado"; quando Martha diz que a guerra a deixou promíscua ou quando Ingrid afirma que "é preciso talento para lidar com o lixo". Os diálogos são bons, mas os exageros reativos de Ingrid à decisão suicida de sua amiga fazem com que nos questionemos acerca do que o diretor e roteirista achou de tão interessante em "O Que Você Está Enfrentando", da escritora estadunidense Sigrid Nunez, a fim de adaptá-lo. O segmento rememorativo sobre os padres espanhóis que transam em meio à guerra deixa entrever que, neste filme, estamos lidando com um auto-pasticho, em que um ponto de partida com algumas similaridades discursivas em relação ao que vimos no no excelente "Fale com Ela" (2002) descamba para um elogio classista que assume a transição do vermelho, tão abundante em suas obras de juventude, para o verde predominante nos ambientes chiques da alta burguesia nova-iorquina. Se ele quis homenagear a faceta dramática de Woody Allen, não conseguiu dotar de suficiente personalidade autoral este experimento imitativo: a trilha musical onipresente de Alberto Iglesias, bela e característica, chega a irritar, por exemplo!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 27 de outubro de 2024
Mostra SP 2024: NÃO NOS MOVERÃO (2024, de Pierre Saint-Martin Castellanos)
Socorro (Luísa Huertas) é uma advogada idosa, que segue traumatizada pelo evento supracitado. Cinqüenta anos se passaram, desde que seu irmão foi assassinado, mas, no dia do aniversário dele, ela desmaia e, ao receber documentos de um colega de profissão, que identifica o soldado que torturou seu querido parente, ela decide adotar a lógica questionável do "olho por olho", alegando que, em seu país, "a justiça é um privilégio apenas de quem possui muito dinheiro e poder". Para este intuito, ela conta com o apoio de um bandido reabilitado, Sidarta (José Alberto Patiño), a quem ela salvou de ser preso repetidas vezes. Por conta disso, ele é bastante devotado a ela, mas esforçar-se-á para dissuadi-la de suas intenções revanchistas. Não conseguindo, a auxiliará, mesmo a contragosto.
Filmado em preto-e-branco, este filme - que é o longa-metragem de estréia de seu diretor - possui uma direção de arte ostensivamente anacrônica no apartamento de Socorro, que utiliza máquinas de escrever, cartas enviadas pelo correio e telefones fixos, demonstrando o seu aprisionamento traumático em relação ao passado. Paralelamente à decisão da protagonista em vingar-se do algoz de seu irmão caçula, ela lida com uma rixa prolongada com Esperanza e encontra empatia em sua sua nora argentina Lucía (Agustina Quinci), que não apenas descobre que está grávida como também constata que seu relacionamento com Jorge (Pedro Hernández) minguou. O ritmo do filme é comedido e talvez funcione melhor para quem identifica prontamente as questões ditatoriais mexicanas, ecoadas nas argentinas, conforme relato de Lucía, em determinado diálogo. Nos leva a querer saber mais, ao passo em que nos emociona, quando percebemos o descontrole racional de Socorro, que chega a envenenar um gato, depois que este morde fatalmente o pombo que ela acolhe. O roteiro demora a ser desvendado, mas as interpretações são deveras aplaudíveis!
Wesley Pereira de Castro.
Mostra SP 2024: O VENTO SOPRA ATRAVÉS DOS TÚMULOS (2024 , de Travis Wilkerson)
Que o diretor deste filme-ensaio não seja croata é um dos componentes que engrandecem a sua proposta documental, no sentido de que ele descobre, junto ao espectador, algumas camadas horríficas daquilo que, sinopticamente, é descrito como um mero registro sobre os malogros de uma investigação policial. Após assumir a sua origem estadunidense (mais à frente, ele confessa que um de seus avôs pertenceu à Ku Klux Klan) e de enumerar dados pessoais e familiares (incluindo o elogio ao cachorro Yugo, nomeado em homenagem ao vento e a um país dissolvido), Travis Wilkerson apresenta-nos ao atraente detetive Ivan Peric, que entrou para a Polícia para não se tornar pescador, como o seu pai, não obstante querer ser dançarino de 'breakdance', na juventude. Ele investiga as mortes de diversos turistas em sua cidade natal - Split, na Croácia -, mas é hostilizado por seus colegas e por seu chefe, já que, ali, "ninguém gosta de turistas". Ao tentar descobrir como alguns deles morreram, traços sombrios da História do país são trazidos à tona...
Por cada lugar que passa, Ivan encontra pichações e sinais de vandalismo urbano e, a partir daí, explica para o diretor o que são aqueles símbolos, e por que tantas suásticas são percebidas naquela região. A cidade de Split possui um time de futebol, Hajduk, cuja torcida é bastante violenta, confundindo as competições dentro dos estádios com o ódio que sente por outras etnias - principalmente, contra os sérvios. Como tal, os torcedores associam-se ideologicamente aos princípios de Ustasha, organização ultranacionalista croata que, entre outras medidas assustadoras, erigiu Jasenovac, o maior campo de concentração da Europa, dentre aqueles que não foram construídos pelos nazistas. Ali, milhares de sérvios, judeus e ciganos foram assassinados (geralmente utilizando a 'sbrosjek', que era uma faca apelidada de "exterminadora de sérvios"), de modo que a ojeriza nacional por estes grupos étnicos permanece ativa na população do país, que, ainda hoje, demonstra simpatia pela supracitada organização, externando-a através de um U maiúsculo com uma cruz no meio, geralmente disfarçado na palavra Radunica, que é uma importante rota local.
O diretor explica todos estes detalhes de adesão fascista enquanto Ivan esforça-se para se desvencilhar da alcunha de 'uhljeb', que seria um burocrata preguiçoso, segundo uma tradução genérica. Esta é a maneira desdenhosa através da qual ele é atacado por seus pares, por insistir numa investigação boicotada pelos demais profissionais, de cuja ajuda o detetive necessita. Em determinado momento, Travis Wilkerson aproveita a menção de Ivan a um acidente sofrido por uma croata bêbado, quando tentava destruir a estátua de Rade Koncar [1911-1942], para esclarecer quem foi este importante partisano (membro de uma tropa irregular que se opõe ao controle estrangeiro de uma determinada área) iugoslavo e para interrogar "como um homem se torna uma estátua?". É quando percebemos que o título poético do filme faz menção à canção "The Partisan", de Leonard Cohen [1934-2016], cuja letra fala justamente sobre a ocupação nazista nalguns países. Na maior parte do filme, sua fotografia é em preto-e-branco, exceto quando pinceladas vermelhas que lembram sangue surgem na tela, ao som de fogos de artifício, após a tentativa frustrada do realizador de animar uma gravura com a bandeira de Ustasha. Trata-se de mais um instante de genialidade, possibilitado pelo Acaso (os demais seriam o segmento "História da Queda da Iugoslávia Através dos Grafites de Split" e a lembrança da comemoração de aniversário dos seis anos de Ivan, em que, num jogo de futebol, ele testemunhou o que seria uma das primeiras etapas do esfacelamento definitivo da antiga Iugoslávia), que irmana este filme em relação aos trabalhos mais iconoclastas do romeno Radu Jude. Dolorosamente magistral!
Wesley Pereira de Castro.
sábado, 26 de outubro de 2024
Mostra SP 2024: EM RETIRO (2024, de Maisam Ali)
Por causa da predominância do cinema de Bombaim - conhecido internacionalmente como Bollywood -, eventualmente esquecemos que as largas dimensões nacionais da Índia engendram diferentes manifestações culturais, a depender da região: na parte setentrional, fronteiriça com o Tibete, encontramos Ladakh, onde foi filmado este filme. De tradição budista, este local, de caráter político-administrativo semiautônomo, serve aos interesses reflexivos do diretor estreante Maisam Ali, que narra as tentativas de reinserção familiar de um homem que volta para onde cresceu, depois de faltar ao funeral de seu irmão...
Interpretado por Harish Khanna, este homem está ausente há tanto tempo que não consegue sequer falar adequadamente o dialeto da região. Conversa, via Facebook, com um sobrinho que não conhecia, e vê-se diante de conflitos urbanos, entre jovens que brigam, depois que um deles tenta assaltar outro. Não é um enredo fácil de compreender, visto que as relações entre os personagens são balizadas pela mesma sensação de estranhamento e não pertencimento que atravessa o protagonista. Para piorar, quase todas as seqüências são filmadas à noite, de modo que percebemos muito mais do que efetivamente vemos as situações.
A despeito de seu extremo hermetismo, "Em Retiro" é um filme que justifica o título na própria maneira com que justapõe as cenas, visto que precisamos redimensionar a maneira como nos orientamos narrativamente, através das convenções tradicionais do gênero dramático: sabemos que uma jovem faz desenhos, no interior de sua residência, enquanto ouve uma canção da Billie Eilish ("When the Party's Over"); sabemos que o protagonista se delicia ao tomar uma sopa num estabelecimento local; sabemos que os adolescentes daquele contexto bebem e fumam, como acontece em qualquer outra parte do mundo. Porém, não identificamos adequadamente como os coadjuvantes se relacionam entre si, e em que sentido eles afetam emocionalmente o inominado protagonista. Ao final, a paisagem em movimento que se nota através da janela de um ônibus assume uma velocidade extremamente lenta, metonimizando a deambulação quase fantasmática do protagonista acerca dos lugares por onde passou, durante a breve visita à sua cidade-natal. Ele seguirá vagando depois disso, tanto quanto a nossa tentativa de entender aquilo a que assistimos... É um filme bonito, entretanto!
Wesley Pereira de Castro.