segunda-feira, 28 de abril de 2014

DIVERGENTE ('Divergent') EUA, 2014. Direção: Neil Burger.

Para além de suas inúmeras similaridades com sagas cinematográficas recentes oriundas de séries literárias comercialmente bem-sucedidas, esta adaptação do ‘best seller’ homônimo de Veronica Roth (que também é co-produtora do filme) é assaz prejudicada pela insipidez de seus personagens. Não obstante o pressuposto distópico do filme ser deveras interessante (uma Chicago futurista, em que a população se divide num quinteto de facções diferenciadas entre si), este é erigido sobre contradições elementares, que, se desafiadas em seus limites mitômanos, solapam previamente o entrecho. Afinal de contas, se a imposição do sistema de facções tem por finalidade dirimir os conflitos entre os habitantes, por que perduram as rixas entre os seus membros?  

Mais: se cada habitante, ao completar dezesseis anos de idade, precisa ser submetido a uma espécie de teste vocacional, a fim de verificar com qual facção tem mais afinidade (a despeito de sua educação familiar até então, pois “a facção vem antes do sangue”), por que é-lhe conferido o direito de escolha numa etapa posterior?  

Ainda mais: por que os chamados “divergentes” (indivíduos que demonstram, no teste, características simultâneas de mais de uma facção) são tão perigosos para a mantença deste sistema se o enquadramento intra-faccional é derivado muito mais de uma vontade de adaptação (vide a submissão voluntária à dureza do treinamento atribuído aos novatos nas facções) que a uma distinção entre os caracteres elementares de cada grupo? Ou se acredita realmente que Audácia, Erudição, Amizade, Franqueza e Abnegação são virtudes independentes?

Sendo todos estes questionamentos efetuados pelo espectador ainda no início do filme, quando ele está sedimentando as bases mitológicas do roteiro escrito por Evan Daugherty e Vanessa Taylor, fica difícil contaminar-se pela pretensa seriedade sociológica da trama, que é um amontoado divertido de clichês inicialmente segregacionistas que remetem muito mais aos ‘tokusatsu’ que aos livros/filmes seriais com que se assemelha externamente.

Não obstante o enredo geral da trilogia de Veronica Roth servir-se de uma premissa bastante semelhante à série “Jogos Vorazes”, escrita por Suzanne Collins e que redundou num péssimo longa-metragem inicial dirigido por Gary Ross em 2012, a questão da vocação grupal pré-direcionada já era basilar nas aventuras vivenciadas por Harry Potter e seus amigos na série literária escrita por J. K. Rowling, em que um Chapéu Seletor indicava se os personagens infantis pertenciam a escolas como Grifinória, Sonserina, Lufa-Lufa ou Corvinal. O que se destaca em “Divergente” é a quantidade de etapas em que essa escolha/indução vocacional se dá, bem como as suas conseqüências, sendo a pior delas a sina de tornar-se um “sem-facção”, espécie de categoria mendicante que, no filme, é assistida pelos abnegados.

 Apesar de falaciosas, as diferenças entre os membros das diferentes facções são pertinentemente realçadas por comportamentos exagerados, como: a aparência presunçosa dos eruditos (que assumem as funções científicas); a indumentária ‘hippie’ dos amigos (que são lavradores); a ausência de vaidade dos abnegados (que são assistentes sociais); o compromisso com a verdade dos francos (que são advogados); e a coragem baderneira dos audaciosos (que, pela coragem demonstrada, são policiais, protetores do Sistema). Por possuir todas estas qualidades ao mesmo tempo, a protagonista Beatrice Prior, mais tarde auto-rebatizada Tris, poderia ser uma personagem bastante complexa, mas sua composição soçobra na rotina árdua da emulação espartana em Audácia. Ou seja, por mais que a interpretação de Shailene Woodley seja eficiente, a condução da personagem é unilateral e emocionalmente insossa, atravessada por momentos súbitos ou inverossímeis, como quando a sua mãe (Ashley Judd, patética) revela, na prática, ter sido criada em Audácia, antes de tornar-se uma abnegada.

 Prosseguindo com a enumeração dos defeitos contextuais de “Divergente”, sobressai-se o mau delineamento da oposição política entre os líderes eruditos e abnegados, visto que a retroalimentação da beligerância entre eles extermina a funcionalidade institucional da divisão entre facções, que deveriam ser cooperativas e não competitivas entre si. Kate Winslet dota a malévola Jeanine de muito charme, mas a sua constituição personalística é reles, como acontece em relação a todos os demais vilões [ou arremedos de vilões, como o impiedoso Eric (Jai Courtney)] do filme.

Os avatares de benevolência são também inócuos, conforme verificamos na apática participação de Tony Goldwyn como o pai de Beatrice, ou nas aparições de Christina (Zoë Kravitz), franca convertida em audaz que se torna a melhor amiga de Tris. Ansel Elgort goza de alguns bons momentos como Caleb, visto que o seu personagem é dúbio (indubitavelmente abnegado, mas rapidamente cooptado pelos eruditos), enquanto Theo James chama a atenção como o misterioso Quatro, um dissidente da facção Abnegação, que desertara após ser espancado pelo pai (Ray Stevenson), quando abandonou o seu nome de batismo, Tobias Eaton, e se consolidou como um dos treinadores de Audácia. Sua beleza física e seu carisma indisfarçável somam-se num dos melhores atributos humanos do filme, malgrado a extrema assexualidade do enredo desperdiçar lancinantemente os seus méritos eróticos, visto que a ameaça da perda da virgindade configura-se num dos medos supremos de Tris, ao lado do perigo de atolar o pé num pântano enquanto é atacada por corvos durante um incêndio.

Em outras palavras: a configuração psicológica do roteiro é esdrúxula, sendo as situações de enfrentamento alucinógeno experimentadas por Tris absolutamente canhestras em sua obviedade adolescente, principalmente no que diz respeito ao aproveitamento de seus benefícios enquanto divergente, praticamente irrelevantes durante o seu treinamento. A cena em que Tris escala uma roda-gigante ao lado de Quatro – quando se descobre que este último, também divergente, tem medo de altura – é vergonhosa em seu romantismo simplista, principalmente no instante em que Quatro, impressionado com a desenvoltura com que a rapariga se movimenta nas ferragens, pergunta-lhe se ela não é humana. Tem como levar a sério uma necedade destas? 

Apesar de não ser necessariamente mal-dirigido (Neil Burger conduz com destreza as exigências de ação do filme), “Divergente” possui uma trilha sonora exclusivamente vendável (Hans Zimmer aparece como consultor, mas a música original é de Junkie XL, enquanto Snow Patrol interpreta “I Won’t Let You Go” durante os créditos finais) e um ritmo titubeante (ágil demais nalguns momentos; langoroso noutros), o que talvez agrade a um público-alvo juvenil.

Preocupado muito mais em ser o capítulo inicial de uma trilogia que um filme em si (os direitos autorais de “Insurgente” e “Convergente”, livros posteriores da escritora, já foram vendidos para o cinema, e devem ser lançados em 2015 e 2016), “Divergente” não incomoda tanto quando julgado com proposital distanciamento: seu roteiro deixa extremamente evidente a pretensão de apenas entreter a platéia com clímaxes persecutórios ou belicosos, secundarizando ou tornando irrelevante a premissa distópica que parecia tão interessante na sinopse.

As possibilidades de abordagem sociológica à la Émile Durkheim (por causa da solidariedade mecânica no interior das facções) e a exortação das potencialidades individuais frente à consolidação programada dos “fatos sociais” (que, segundo este sociólogo, são gerais, exteriores e coercitivos) são transformadas numa sucessão de melindres actanciais, que deságuam na assepsia formal (por mais que os efeitos especiais sejam muito bons e a direção fotográfica de Alwin H. Küchler seja merecedora de discretos elogios). Uma pena que este filme, obedecendo à tendência dominante no lançamento hodierno deste tipo de produto seriado, vincule-se ao que de mais nocivo podemos identificar enquanto vigência hollywoodiana: o tolhimento da inteligência espectatorial. Não deve ser por acaso que os eruditos são os principais vilões...

Wesley Pereira de Castro.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

LANÇAMENTO DO SEGUNDO LOTE DE CURTAS-METRAGENS PREMIADOS PELA SECRETARIA DO ESTADO DA CULTURA DE SERGIPE: “UMA GRANDE NOITE PARA O AUDIOVISUAL SERGIPANO”?

Quando se tem acesso aos bons projetos que originam produtos audiovisuais qualitativamente imprecisos, a responsabilidade pela avaliação crítica dos mesmos é intensificada. Saber-se (in)diretamente vinculado à aprovação e posterior financiamento destes curtas-metragens é algo que torna a dificuldade em julgá-los ainda mais delicada: o que deve ser priorizado numa análise? Os problemas formais? As limitações conteudísticas? As divergências entre projetos e produtos? As contribuições para o contexto local de visibilidade cinematográfica? A comparação entre os diferentes resultados a partir de um esquema idêntico de investimento? As frustrações pessoais das expectativas críticas? As contaminações ideológicas do “evento” de lançamento?

De uma forma ou de outra, todas essas questões interferem na apreciação dos cinco filmes sergipanos lançados na noite do dia 24 de abril de 2014, numa cerimônia prestigiada por centenas de pessoas, a maior parte delas ruidosamente entusiasmada com o que era exibido na tela improvisada do Teatro Atheneu. Os cinco filmes apresentados na ocasião foram:

 • “Conflitos e Abismos: A Expressão da Condição Humana” (2014, de Everlane Moraes): malgrado o talento inequívoco da diretora e a qualidade gráfica das obras de seu pai, o pintor José Everton Santos, além de novamente abordar questões que tem a ver com a existência pessoal da realizadora, o documentário não possui o mesmo vigor do inventivo “Caixa D’Água: Qui-Lombo É Esse?” (2012), deveras autoral em suas propostas estéticas muito particulares. No filme mais recente, o problema mais evidente é a narração ininterrupta e monocórdia do artista biografado, que soa discursivamente desengonçada [vide o momento em que ele explica o quanto os animais são oprimidos pela “(ir)racionalidade” do homem e, logo em seguida, atesta a suposta inevitabilidade do comportamento carnívoro do ser humano], o que não configura um problema em si (pois o biografado tem o direito de afirmar o que quiser, por mais contraditórias que suas declarações sejam), mas que incomoda pelas translações imagéticas quase omissas da diretora, que comenta estes descompassos por meio de animações óbvias de telas famosas do pintor. Nalguns momentos, máscaras animadas são sobrepostas aos rostos de transeuntes, o que configura ótimos momentos de expressão cinematográfica, mas, noutros, a contribuição actancial de Yuri Alves (por mais esforçada que tenha sido) não acrescenta muito ao que as imagens originais dos quadros já tinham de exorbitantes. Ou seja, até mesmo as benfazejas inserções de contrações faciais de desamparo ou nudez são desperdiçadas na condução pleonástica da narrativa documental, que se encerra abruptamente, como se a montagem definitiva do curta-metragem fosse balizada muito mais pelo prazo de entrega do trabalho que pelas necessidades expressivas da diretora;

 • “Morena dos Olhos Pretos” (2014, de Isaac Dourado): a informação posteriormente divulgada de que este título é apenas um preâmbulo para um bem-vindo e aguardado longa-metragem sobre a cantora Clemilda explica (mas não justifica) a precariedade informativa do curta-metragem. Numa primeira abordagem, o que salta aos olhos, negativamente, é a ausência de depoimentos recentes ou inéditos da própria biografada. Diversos cantores de forró (Genival Lacerda, Erivaldo de Carira, Alcymar Monteiro) prestam suas homenagens locucionais à artista alagoana radicada em Sergipe que lançou, em 1972, o álbum que intitula esta obra. Nas composições, é evidente a sua parceria com Gerson Filho, que participou intensamente da carreira da artista, além de ter se casado com ela, instituindo uma colaboração adicional de “cama e mesa”, como explica a própria cantora. O problema é que esses dados são mal-explicados pela tessitura narrativa do curta-metragem, cuja montagem é ruim, aparentemente fortuita em sua seleção de planos e/ou ordem de depoentes. Num sentido geral, o filme pode ser definido como uma “ode à ausência”, apelido poético que, infelizmente, soa pejorativo, visto que o diretor, apesar de sua proximidade com a extraordinária artista biografada, limita-se a mostrá-la em imagens de arquivo numa entrevista televisiva e nas imagens pessoais do último espetáculo da cantora, no Forró Caju de 2012. Um contra-exemplo documental, portanto;

 • Madona e a Cidade Paraíso (2014, de André Aragão): bastante aplaudido pelo público, este curta-metragem é largamente equivocado em suas opções estéticas. Alguns posicionamentos de câmera (vide o instante em que um diálogo entre as personagens é mostrado por detrás de uma pista de ‘skate’) deixam evidente a pretensão do diretor em se distanciar de uma fotografia tradicional, mas soçobram por causa de sua inorganicidade. Uma exceção deve ser destacada: o gracioso momento em que Madona (caracterização interessante de Ivo Adnil, mas que se desperdiça nas seqüências faladas) e Folosa (Zelda Leite) conversam carinhosamente nas proximidades da Ponte do bairro Santo Antônio, com algumas pedras da beira-mar sendo mostradas em primeiro plano. O contexto permite que a prostituta cantarole a canção de ninar que repete quando encontra o homossexual assassinado na seqüência final, numa rima dramática que só não é melhor por causa da dublagem um tanto canhestra do filme. Outro momento interessante é a participação ‘in loco’ da banda Asas Morenas, no interior de uma casa de meretrício, em que a canção “Eu Sou Virgem”, versão de “Like a Virgin”, de Madonna (o que rende outra valiosa rima formal, desta vez acústica) é executada enquanto o protagonista afetado se requebra e esfrega num palco. Pena que a montagem desta seqüência dissipe o potencial expressivo da mesma, ao esfacelar-se em excesso, tanto quanto acontece no momento em que Madona e Folosa caminham pelo Centro Comercial da cidade de Aracaju. O frenesi de pessoas ébrias no Pré-Caju (constantes de um acervo de imagens previamente filmadas pelo diretor, já indicando a sua intenção de levar a cabo este projeto) impressiona pelo seu realismo elementar, mas parece desconexo em relação ao restante da narrativa, que tenta incomodar duplamente o espectador em seu quartel final (tanto pela inegável violência do modo como Madona é espancada quanto pelos estampidos altissonantes na banda sonora), mas soa artificial, subaproveitada. Ao final da exibição, eram freqüentes os comentários sobre um melhor aproveitamento do filme caso ele fosse intencionalmente ‘trash’ – e não involuntariamente cômico, apesar de suas evidentes (e não de todo rejeitáveis) intenções denuncistas – o que vai de encontro aos arroubos aplaudíveis da platéia. Um dos participantes do filme declarou que haverá uma remontagem posterior do mesmo, com cenas adicionais, que talvez resolva melhor alguns dos conflitos narrativos, mas que ultrapassa o escopo avaliativo do que foi cobrado pelo Edital que o premiou e sob os auspícios do qual está sendo aqui avaliado;

 • “Para Leopoldina” (2014, de Diane Veloso & Moema Pascoini – vide foto): sem dúvidas, o melhor da noite, o mais elaborado em termos de linguagem cinematográfica, que respeita devidamente a duração dos planos e a importância constitutiva das seqüências, não obstante preocupar-se demoradamente com a contratação empregatícia de um personagem deveras irrelevante, por mais que exerça uma função pretensamente interruptiva numa dada seqüência. Salvo por um ou outro deslize de câmera ou enredo (vide o momento em que ambos os problemas confluem, no instante em que a personagem-título interroga uma interlocutora acerca do que ela faz com a própria vida), “Para Leopoldina” é primoroso em sua construção dos planos, chegando a emular uma obra neo-realista de Vittorio De Sica. A interpretação da ótima atriz Diane Veloso é contida e valiosamente taciturna, sobressaindo-se principalmente nas seqüências em que ela é mostrada durante a sua jornada tediosa de trabalho, numa loja de roupas. A melhor cena do filme, inclusive, acontece neste cenário, quando a personagem é focalizada em ‘close-up’, em visível demonstração de infelicidade, diante um pano vermelho, que logo se assume como a proteção têxtil de uma cabine onde as clientes da loja experimentam as roupas que pretendem comprar, num estratagema de reaproveitamento ambiental que tem a ver com consagradas produções orientais recentes. A coadjuvação de Walmir Sandes é também muito boa, visto que a atriz mostra-se muito mais introvertida que de costume, assumindo as dificuldades de sua idade de forma muitíssimo proveitosa para os intentos melodramáticos da trama, que se encerra com um momento de forte impacto (quando sabemos que as cartas que a personagem Lúcia lê para os idosos são desrespeitadas em sua integridade conteudística, a fim de não entristecerem ainda mais os macambúzios internos do asilo) e com um plano de pungente beleza, quando Lúcia caminha demoradamente ao longo de uma alameda e elegantemente abre um guarda-chuva, ao som da trilha sonora original de Leo Airplane e Alex Sant’Anna. Muito bom!;

 • “Operação Cajueiro – Um Carnaval de Torturas” (2014, de Fábio Rogério, Vaneide Dias & Werden Tavares): apesar de ter sido o mais cuidadoso e elaborado dos projetos apresentados para os jurados convocados pela Secult/SE, este curta-metragem foi convertido num documentário esquemático, em que as entrevistas quadriculares são simplesmente justapostas, exceto por uma abertura e por um epílogo jornalísticos. O tema é urgente, o conteúdo das entrevistas é valioso e o título do filme é genial, mas, infelizmente, o documentário falha em sua informatividade. Ou seja, para quem teve acesso ao projeto original ou conheça previamente os episódios concernentes às prisões políticas do Carnaval de 1976, no Estado de Sergipe, os depoimentos de Jackson Barreto, Goisinho, Milton Coelho e Wellington Mangueira  são perfeitamente compreensíveis. Para quem não atende a essas condições espectatoriais, é difícil concatenar as informações, eventos, chagas históricas, detalhes epocais, conformações político-contestatórias e configurações discursivo-sobrevivenciais dos torturados. Ainda assim, o depoimento inicial da mulher que confessa ter “a mania de sorrir até mesmo quando comenta sobre coisas tristes”, antes de cantar a marchinha sobre pó-de-mico que fora lançada nas festividades do ano em que fora presa, emociona e instaura o elogioso contexto de cumplicidade mnemônica com os depoentes, importantes personalidades da política partidária sergipana. Tangencialmente defeituoso no trajeto entre projeto e conformação audiovisual, mas importantíssimo em seu viés documental!

 Após a exibição dos filmes, houve um breve concerto com a Coutto Orchestra de Cabeça, a fim de assegurar que quem estivesse predominantemente interessado em espetáculo não seria agraciado apenas com a audiência aos produtos fílmicos. Entretanto, nem todos se dispuseram a conferir as benesses desta consagrada banda: a maratona de curtas-metragens os exauriu, em sua irregularidade de propostas e feituras. Apesar da intensa inclinação para o âmbito afirmativo do que foi perguntado no título desta publicação, a questão permanecerá astuciosamente em aberto. O desenvolvimento do cinema sergipano exige que as perguntas sejam ainda mais disseminadas que os arremedos entusiásticos (ou gritantes, como aconteceu nos intervalos entre um e outro curta-metragem) de respostas. Que venha o terceiro Edital de incentivo à produção audiovisual!

 Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 15 de abril de 2014

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO (Brasil, 2014). Direção: Daniel Ribeiro.

Por mais perceptivelmente defeituoso que seja este filme em suas arestas narrativas (principalmente no que diz respeito à amostragem da rebeldia púbere do protagonista), a condução directiva de Daniel Ribeiro é tão aprazível e seus temas são tratados com tamanha sutileza que a recepção positiva nalguns festivais internacionais de cinema torna-se deveras justificada. Afinal de contas, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” apresenta desde o início uma característica fundamental: ele consegue se comunicar muito bem com seu público, principalmente o juvenil, sem subestimá-lo.

Pode-se reclamar que o desenvolvimento enredístico da superproteção dos pais de Leonardo (Eucir de Souza e Lúcia Romano) seja ruim e que algumas situações levem o protagonista a fazer jus à pecha de garoto mimado, mas o roteiro do próprio diretor é incrivelmente verossímil. Na seqüência inicial, Leonardo (Ghilherme Lobo, esforçado mas nem sempre convincente) e Giovana (Tess Amorim, extraordinária) estão deitados na beirada de uma piscina, avaliando o nível de preguiça que sentem em relação às férias. A garota, então, comenta que deseja ser exposta a alguma situação dramática ou emotiva que institua novos desafios em seu cotidiano, o que toma a forma de Gabriel (Fábio Audi), um gracioso moço do interior que se interporá involuntariamente nesta amizade, tal qual a metáfora do eclipse que será explicada pelo próprio recém-chegado, e posteriormente recontada por Leonardo, numa das várias rimas roteirísticas costuradas por Daniel Ribeiro. Um enquadramento muito similar a este inicial, no qual Gabriel é acrescentado, também deitado à beira da piscina, demonstra o quanto a direção é competente, cosendo a trama de maneira elogiosamente orgânica!

Tendo realizado anteriormente os ótimos curtas-metragens “Café com Leite” (2007) e “Eu Não Quero Voltar Sozinho” (2010), Daniel Ribeiro se destaca pela coerência temática de sua obra, na qual o homossexualismo aparece de forma decisiva e, ao mesmo tempo, circunstancial, visto que o que interessa realmente para o diretor são as relações familiares ou vicinais que se estabelecem ao redor de casais homossexuais confrontados com dificuldades tão plausíveis quanto corriqueiras (a morte dos pais e a guarda de uma criança, no primeiro caso; a eclosão de paixões platônicas e a deficiência visual do protagonista, no segundo).


Malgrado reutilizar o mesmo elenco, personagens e situações-chave do curta-metragem mais recente, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” apresenta uma espécie de “realidade paralela” em relação ao filme similar, ampliando o escopo de coadjuvantes que circundam o protagonista. Dentre estes, a sapiente avó interpretada pela veterana Selma Egrei, a espevitada adolescente Karina (Isabela Guasco) e o malicioso colega de classe Fábio (Pedro Carvalho) se destacam por suas atuações e intervenções personalísticas absolutamente desenvoltas. Não obstante ser equivocada no que tange à exibição do cotidiano doméstico de Leonardo, a direção de atores no filme é aplaudível: o elenco juvenil é ótimo, tanto na interação matreira da roda de beijos numa festa quanto em momentos sustentaculares, como aqueles em que Giovana consegue doses de vodca com um colega, em seu “QG alcoólico" [risos].

 Eficientemente coadunada à valorosa chefia de Daniel Ribeiro, a direção fotográfica de Pierre de Kervoche demonstra-se superlativamente eficiente em ocasiões delicadas e/ou arriscadas como: o longo plano móvel que exibe os diferentes comportamentos dos personagens na festa de Karina; o instante em que Leonardo, vestindo apenas uma cueca branca, masturba-se ao sentir o cheiro do suéter que Gabriel esqueceu em seu quarto; a conversa entre Giovana e Gabriel num banheiro estilizado; e a incrível cena de banho num vestiário vazio, em que Gabriel excita-se sexualmente ao observar a nudez de Leonardo, cujos detalhes glúteos são mostrados em ‘close-up’. Esta última seqüência, inclusive, é bem-aventurada na instauração de uma dúvida elementar acerca da homossexualidade prévia de Gabriel, já que ele corroborava uma desenvoltura normalizada em relação à nudez coletiva e, ainda assim, não conseguiu conter sua ereção.

 No caso de Leonardo, tal direcionamento sexualista surge de maneira impressionantemente arguta, ao contrário dos embates forçados com seus pais no que tange à vontade de fazer um intercâmbio escolar nos EUA ou do vexatório momento em que ele pede a seu pai que o auxilie a se barbear. Nada que atrapalhe duradouramente os beneplácitos dialogísticos, assaz divertidos tanto em situações prosaicas (como quando Giovana imagina o constrangimento que a atingiria caso ela fosse Plutão e recebesse a notícia de que não é mais um planeta, ou quando uma professora de História diz ao aluno que lhe pergunta se pode fazer um trabalho numa “dupla de três” que ele deve redirecionar esta questão à professora de Matemática) quanto intensamente emocionais (a reconciliação de Giovana e Leonardo, por exemplo).

 “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, conforme dito no início, é um filme defeituoso, mas esquiva-se mui competentemente das dificuldades inerentes à feitura de uma comédia romântica brasileira, principalmente quando atravessada por tantos temas instauradores de cautela, como a cegueira e a homossexualidade adolescente, geralmente abordados de forma ostensivamente unilateral.

Apesar de algumas das insatisfações habituais de Leonardo contribuírem para a sua rotulação como um rapazola melindroso, isso é vinculado tanto ao excesso de zelo de seus pais quando às suas favoráveis condições aquisitivas, sendo esta conotação classista algo que pode distanciar determinados espectadores de uma identificação generalizada.

A trilha sonora ‘indie’ – que mescla as composições clássicas de Johann Sebastian Bach e Piotr Tchaikovsky que Leonardo utiliza como toques personalizados de seu telefone celular a canções de Cícero, Belle and Sebastian, David Bowie e The National que Gabriel e Giovana apreciam – ganha pontos adicionais pelo esforço emocionalmente percussivo, fazendo com, que este filme seja, sobretudo, um inspiradíssimo retrato geracional. Por este motivo, merece ser analisado de forma tão complacente!

 Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 8 de abril de 2014

NOÉ ('Noah') EUA, 2014. Direção: Darren Aronofsky.

Apesar de a premissa enredística de “Noé” ser, de fato, baseada em quatro capítulos (6, 7, 8 e 9) do Gênesis, tachá-lo de filme bíblico é uma precipitação sub-genérica que ofende sobremaneira os clássicos da era de ouro hollywoodiana, como a obra-prima “Os Dez Mandamentos” (1956, de Cecil B. DeMille): as liberdades prosaicas dos roteiristas Darren Aronofsky e Ari Handel em relação à biografia do patriarca que teria vivido novecentos e cinqüenta anos de idade são vergonhosamente coadunadas às exigências beligerantes de sagas hodiernas baseadas em livros de J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, para ficar em apenas dois exemplos célebres.

Do mesmo modo que acontece nestas sagas, as motivações do protagonista são apenas pretextos para cenas de ação combativa, jorros de efeitos visuais e soluções maniqueístas que escamoteiam perigosos discursos ideológicos. No caso específico de “Noé”, chega a parecer, em diversos momentos, que o pretensioso diretor Darren Aronofsky está propositalmente emulando alguns clichês de ‘blockbusters’ contemporâneos, como: os combates violentos que abundam em “Tróia” (2004, de Wolfgang Petersen), que são similares às tentativas dos descendentes de Caim quando insistem em invadir a Arca; os robôs impressionantes de “Transformers” (2007, de Michael Bay), com os quais se assemelham os gigantes de pedra que auxiliam a família de Noé; e o tsunami de “O Impossível” (2012, de Juan Antonio Bayona), cujo impacto é deveras aparentado ao momento em que o dilúvio se inicia no filme mais recente.

Um vasto número de títulos poderia ser trazido à tona, de tão esquemático que é o filme em sua condução narrativa, principalmente no que diz respeito às conseqüências da modificação da morte de Lamec, pai de Noé: na Bíblia Sagrada, é dito apenas que ele faleceu aos setecentos e setenta e sete anos de idade; no filme aronofskiano, ele é degolado inclementemente por Tubal-cain (posteriormente interpretado por Ray Winstone), o que faz com que Noé tenha motivos para assassinar diversos agressores, infringindo (ou justificando?) o versículo que apregoa que “quem derrama o sangue do homem, terá o seu próprio sangue derramado por outro homem” (Gênesis, 9: 6).

Já que, no filme, Noé aparentemente morre de velhice, após ter se reconciliado com a maior parte de sua família (segundo as Escrituras, seu filho Cam foi condenado a ser escravo dos irmãos), os seus atos vingativos tornam-se legitimados pela moral suspeitosa do roteiro, associado a uma tendência eclesiástica dificilmente identificável.

Russell Crowe tem um bom desempenho como o protagonista, mas as incongruências do roteiro tornam a sua interpretação prejudicada por fragilidades internas do filme, sendo a determinação de seu personagem contrabalançada por atitudes que soam tão involuntariamente cômicas [vide o modo ridículo como seu avô Matusalém (Anthony Hopkins, constrangedor) se entrega à morte depois que consegue saciar o desejo por comer uma frutinha silvestre] quanto indignantes [vide a fragilidade composicional do anseio do filho Cam (Logan Lerman) pela obtenção de uma esposa], desembocando no clímax quase telenovelesco em que ele desiste de assassinar duas netas recém-nascidas ao ser “preenchido pelo amor”, conforme relatam sua nora Ila (Emma Watson) e sua esposa melindrosa Naameh (Jennifer Connely).

Num sentido geral, as atuações são competentes, mas os personagens são estereotipados em suas demonstrações volitivas, exceção resguardada ao abnegado Noé, que, numa situação interessantíssima, constata que seus filhos são ambiciosos e condescendentes, o que torna a sua família tão tendente ao mal quanto qualquer outra. Esta mesma constatação é o que melhor configura a personalidade de Noé, inclusive em seus aspectos negativos, visto que a sua fé incondicional nos indícios que ele considera provenientes de Deus transcende as limitações normativas (no sentido consuetudinário do termo) e as filiações afetivas do contexto em que ele vivia.

 Se, filmicamente, não é nenhum problema que Darren Aronofsky tenha modificado tanto o substrato bíblico no qual se baseou – pois, conforme ele alega de forma acertada, a estória de Noé é muito curta – algumas alterações soam pouco compreensíveis enquanto motivação autoral, atrevendo-se aqui a detectar algo parecido na filmografia aronofskiana: além de ter muitas semelhanças formais com o malogrado “Fonte da Vida” (2006, cujo argumento é justamente do roteirista Ari Handel), “Noé” praticamente se vincula a um projeto de legalização de drogas [o que o faz distanciar-se imediatamente do hiperestimado “Réquiem para um Sonho” (2000)], tamanha a importância conferida a substâncias entorpecentes e/ou alucinógenas ao longo da trama. Se, na Bíblia, o próprio Javé conversa diretamente com Noé, neste filme, suas decisões são formuladas a partir de sonhos ou de alucinações engendradas por Matusalém a partir de um chá psicotrópico, que, em dose reduzida, faz adormecer um garotinho.

 Mais tarde, quando a Arca já está construída, as dificuldades de acondicionamento dos animais – que eram determinantes em “A Bíblia” (1966, de John Huston), por exemplo – são resolvidas a partir de um defumador soporífero preparado por Naameh, que mantém as feras hibernando até que sejam despertadas por alguém, conforme ocorre quando ela pede que uma pomba seja libertada para verificar se as águas já baixaram nalgum lugar. Ou seja, são variegados os instantes em que substâncias alteradoras de consciência surgem no filme, culminando no instante em que Noé se embriaga com vinho quando desembarca numa praia, algo que é atribuído à necessidade do patriarca de suprimir os desentendimentos que tivera com a sua família enquanto vagavam à deriva pelos mares do dilúvio.


 Não há religiosidade no sentido lato do termo [conforme também inexistia no pitoresco e desperdiçado “π” (1998)], mas sim obstinação paternalista [tal qual ocorrera em “O Lutador” (2008)], contrastada imoderadamente pelos pantins de Cam, que apaixona-se mui convenientemente por uma rapariga (Madison Davenport) que é pisoteada por uma multidão de arruaceiros depois que cai numa armadilha. Nada que se equipare à inteligência compositiva do ótimo “Cisne Negro” (2010), portanto!

Ignorando-se o equivocado laivo de “filme bíblico” que é propagandeado sobre este filme, “Noé” beneficia-se de uma portentosa fotografia (a cargo de Matthew Libatique, parceiro habitual do diretor), que, apesar de valorizar adequadamente os cenários naturais – vide o céu à contraluz, simultaneamente alaranjado e azulado, que é mostrado numa cena em que Noé e Naameh conversam depois que ele desperta de seu sonho profético, e a beleza da floresta que surge repentinamente [para logo ser desmatada!] quando Noé precisa de madeira para construir a Arca –, soçobra diante dos efeitos especiais insatisfatórios.

Os diálogos melodramáticos envolvendo a “impossível” gravidez de Ila [num contexto em que fenômenos sobrenaturais acontecem o tempo inteiro!] tornam o terço final do filme particularmente desagradável, o que só piora com as insistentes ameaças de Tubal-cain, que devora alguns dos animais adormecidos da Arca, é exitoso ao atiçar a rebeldia de Cam contra o seu pai, e quiçá seja um alter-ego propositalmente dissensual em relação ao despotismo de Noé. Durante os créditos finais, Patti Smith aparece cantarolando a sofrível “Mercy is”, encerrando de forma projetadamente espetacular um filme que falha tanto enquanto entretenimento seriado quanto no que diz respeito à reformulação discursiva das lacunas bíblicas.

 Mais do que desagradar tramaticamente [pensemos na estapafúrdia explicação para a origem dos gigantes de pedra (um deles dublado por Nick Nolte), que seriam anjos luminosos chafurdados na lama] e tecnicamente (vide as desenxabidas reconstituições da origem criacionista do mundo), “Noé” é uma demonstração pungente de que o ovacionado Darren Aronofsky ainda não sabe o que fazer com os seus alegados talentos criativos, da mesma forma que não ousa tomar partido em pendengas autoritárias que podem influenciar as posturas obedientes de alguns espectadores.

Noutras palavras: este diretor tenta agradar simultaneamente público e crítica com as cavidades fingidamente autorais de enredos centrados nos desafios enfrentados por seres humanos em conflito com as determinações comportamentais que os circundam. Talvez esta fórmula aronofskiana até tenha obtido sucesso num ou noutro filme, mas, aqui, com o perdão do trocadilho temático, ela é inundada por sua própria arrogância. Resta crer que ficam as boas intenções...

Wesley Pereira de Castro.