No auge de seus 83 anos de idade, o crítico Jean-Claude Bernardet hoje prefere atuar em filmes que escrever sobre eles. Em razão de uma acentuada perda da visão, ele precisou redefinir a sua relação com o cinema. Apesar de compartilhar a direção do filme com Rubens Rewald e de utilizar seu próprio nome no filme, não interpreta a si próprio, mas a uma caricatura de si mesmo. Idem para o filósofo Vladimir Safatle, que chega a utilizar imagens suas em entrevistas antigas e canta e discute ao lado de sua filha, Valentina Ghiorzi. Ele também se auto-interpreta sob o signo da caricatura, quase como se estivesse a zombar de sua tendência à retórica política…
Construído de maneira excessivamente fragmentada, como se fosse uma retrospectiva televisiva de final de ano, este filme deixa evidente a sua ironia autocrítica desde o título, onde insere uma “hashtag” pré-interrogativa, demarcando o que pode ser compreendido como uma audiência de “bolha”. Nas vinhetas que compõem o filme, a pergunta titular surge em distintos contextos, como indicativo de ausência de uma resolução concreta para os problemas apresentados. Conforme lido num artigo de jornal, no início do filme, “a esquerda só sabe reagir, e não propor”. Os diferentes embates do personagem de Vladimir Safatle, ao longo da narrativa, comprovam esta falibilidade estrutural do pensamento acadêmico: ele evita responder a uma pergunta do saudoso provocador Antônio Abujmara [1932-2015], quando é-lhe questionado se ele “fala a língua do povo”; queda paralisado na representação de uma discussão de interesses com o pernambucano Valmir do Côco; e tem as suas boas intenções organizacionais dispensadas enquanto signo histórico da colonização branca, num debate com os militantes de uma favela paulistana.
Bastante barato, de termos de orçamento, o filme possui seqüências comprometidas por questões de direitos autorais, no caso de um vindouro lançamento cinematográfico: o personagem Vladimir é interpelado numa peça teatral de José Celso Martinez Corrêa e possui um rol gigantesco de coadjuvantes importantes, que vai de Mano Brown a Carmem Silva e Guilherme Boulos, em imagens de arquivo. A atriz negra Palomaris Martins surge como um terceiro vértice do elenco, no papel da gerente de um banco comunitário, que realiza empréstimos aos moradores usando uma moeda específica, o Sampaio. Insistindo que há, sim, a possibilidade de concatenar empreendedorismo e comunidade, ela é mais uma das personagens a realizar o questionamento titular ao personagem safatleano. O filme, portanto, não se propõe a responder nada, mas justamente ao viés contrário: acumula perguntas, assumindo o caráter de chiste discursivamente masturbatório.
Há cenas de relativo impacto, como quando Bernardet corta o próprio peito com uma faca e depois exibe-se para a sua empregada doméstica, numa conversa sobre o alto preço dos produtos alimentícios; o recital de uma canção de Patti Smith por Safatle e sua filha; e o momento em que Bernardet canta a “Internacional Socialista” durante o banho. Mas é um filme que apenas gira em torno de si mesmo, como muitas das reuniões políticas hodiernas. Cumpre a sua função enquanto exacerbação metalingüística, portanto.
Wesley Pereira de Castro.
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