quarta-feira, 21 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: NOVA ORDEM (2020, de Michel Franco)


 Durante e após a sessão, são abundantes os conceitos foucaultianos que aplicam-se à análise deste filme. Expressões como "microfísica do poder" e "sociedade da vigilância" são apenas algumas que precisam ser obrigatoriamente mencionadas, dada a rigorosa aplicação nesta obra poderosamente distópica, que é lançada num momento em que a extrema-direita política foi eleita em inúmeros países. Por vias democráticas, a perda constitucional de direitos foi aplicada: chegamos a um momento histórico em que os absurdos da realidade superam a mais apavorante ficção... É o caso deste filme!


Antes do 'tour de force' directivo aplicado na longa seqüência do casamento, há um despejo de imagens estranhamente coloridas, em que pessoas nuas são cobertas de tinta verde e sinais de violência física - em larga escala - são detectados. A evacuação súbita de um hospital induz-nos a desesperadas interpretações, até que somos apresentados aos personagens centrais, pertencentes a uma riquíssima família da alta sociedade mexicana. A filha mais nova, Marianne (Naian Gonzalez Norvind), é a noiva. Ela será seqüestrada, o que desencadeará eventos acachapantes... 


Um dos grandes méritos do filme é a sua ambivalência moral: não obstante os aquisitivamente favorecidos serem comumente noticiados como os vilões da corrupção nacional, não importa qual seja o País, a protagonista é extremamente carismática e benevolente, o que aumenta o impacto das agressões que ela sofre. Porém, toda a frenética movimentação exordial é atravessada por questionamentos de lógica narrativa. Afinal, quem ousaria pedir tanto dinheiro a um patrão na cerimônia de casamento de um de seus filhos? Quem teria a audácia de se casar luxuosamente em plena erupção de um levante urbano? Como os manifestantes puderam escalar tão facilmente os muros (incrivelmente baixos) daquela mansão? As respostas a estes questionamentos não resvalam em defeitos de verossimilhança, mas em adesão prévias às convenções alegóricas. Conforme dito anteriormente, malgrado o realismo supremo do filme, trata-se de uma abordagem distópica, potencialmente aplicável a um futuro bem próximo... 



Fazendo excelente uso dos sons em 'off', a magistral direção de Michel Franco mantém-nos em pleno escândalo: independente de quem esteja sendo espancado, as táticas de tortura e chantagem são insuportáveis, sem contar os reiterados estupros sexuais, a fim de desestabilizar por completo os reféns, de ambos os sexos. Nalguns momentos, vê-se que os empregados das pessoas ricas colaboram com o seqüestro e com os assassinatos em massa, o que retroalimenta a contínua desconfiança entre classes. O roteiro leva a crise do Capitalismo ao seu píncaro, visto que não há união de uma classe contra outra, mas pobres X pobres, pobres X ricos, ricos X ricos, todo mundo X todo mundo. Numa conjuntura de corrupção escalonada, não há qualquer tipo possível de união, exceto quando provisória e oportunista, permeada por inúmeras mentiras. Em seu corolário extremado das noções de vigilância e punição estudadas por Michel Foucault [1926-1984], o filme serve como uma advertência equânime a todos os espectadores, para além de suas condições classistas: é isso o que o fascismo e a monetifagia fazem com as pessoas!



Se, sociologicamente, o filme é intencional e inevitavelmente lacunar, em termos narrativos ele é primoroso: cumpre as suas funções advertentes da maneira exacerbada pelo qual o diretor é conhecido, sendo ele um polemista acostumado às diatribes e polemismos, nem sempre no melhor sentido destas palavras. Aqui, ele conta com um elenco extremamente afiado e com uma equipe que obtém êxito na implantação de efeitos documentais e parajornalísticos à apresentação dos fatos: é difícil quedar emocionalmente incólume ao final da sessão. Seria essa mais uma confirmação da índole questionável de seu diretor, conforme reclamam os seus detratores? Toda e qualquer interpretação é válida diante do medo. Eis o real perigo. Atentemo-nos à realidade! 



Wesley Pereira e Castro. 

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