Extremamente católico, Abel Ferrara é um cineasta demarcado pelas contradições que se coadunam: ao realizar um filme atípico, realiza também um dos mais sintéticos de sua filmografia. E, ao escolher, mais uma vez, Willem Defoe como colaborador actancial, consegue que ele interprete de maneira um tanto automática e, ao mesmo tempo, esteja cada vez mais parecido com o que vislumbra para os seus personagens (numa comparação consigo mesmo), além de demonstrar o sumo talento de um dos melhores e mais prolíficos atores norte-americanos...
Não obstante o título bem definido deste filme, a geografia adotada pelo cineasta é emocional, mesclando diversos países numa mesma região, a do surrealismo eminentemente masculino. Em seu roteiro repleto de idas e vindas por traumas relacionais mal administrados, Abel Ferrara compartilha com o espectador psicoses que são suas, o que justifica o hermetismo inicial da trama. Pouco a pouco, vamos identificando os elementos, percebendo as recorrências temáticas (a associação entre sexualidade e maternidade, em destaque) e notando o quão incrível é a transmutação do protagonista em diversos personagens, como se o alter-ego-mor se subdividisse em vários outros, que - literalmente - carregam um mesmo código genético. A carga paterna é sobressalente: a filha do próprio diretor interpreta o filho do protagonista, que, enquanto personagem, é também o artífice postural de seu pai, a quem os médicos disseram estar morto. Como sói acontecer em vários de seus filmes - mais uma vez, numa aplicação de um dogma católico central - os filhos pagam pelos pecados de seus progenitores. Família é reduto de amor, mas também de aflição hereditária!
Num dos diálogos mais elogiáveis (e reconhecíveis), o protagonista Clint comenta: "o meu maior pecado foi te amar demais - e tu sabes disso". Sua ex-esposa aparece em memórias, requerendo um acerto de contas, que dispersa-se em múltiplos massacres. Frases em vietnamita, russo, inuíte e hebraico, entre outros idiomas, dão a tônica da narrativa circunloquial, típica de um pesadelo, mas que revela-se um percurso possível de redenção. No desfecho, a empatia que Abel Ferrara tanto esforça-se para que sintamos em relação ao protagonista - variação de si mesmo - é alcançada. Musicalmente, o perdão é atingido. "Enquanto eu ando, eu me pergunto/ O que deu errado com nosso amor?/ Um amor tão forte...", canta Del Shannon. Em reação, Willem Defoe dança freneticamente!
Servindo-se até mesmo de imagens telescópicas, a fim de transladar imageticamente os estágios emocionais do protagonista, este filme possui um ritmo lento e impregnado de contrição. Os encontros são fugidios, nem sempre imediatamente inteligíveis, mas todos acrescentam algo ao périplo existencial do protagonista. No desfecho, a narração de abertura - sobre as pescarias com o pai - e a leitura nietzscheana que surge numa das lembranças são assimiladas intimamente: tudo faz sentido! É um filme deveras pessoal, mas que não refuta o diálogo coletivo: deseja-o compulsivamente, aliás. O problema é que, entre o ato de ferir e a reação aos golpes infligidos, há algo que confunde as palavras, dificulta a equanimidade comunicacional: os gritos de dor!
Wesley Pereira de Castro.
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