terça-feira, 20 de outubro de 2020

SELFIE (2019, de Agostino Ferrente)


 

Em razão da franca acessibilidade digital – mais técnica que lingüística –, estão sendo abolidas muitas das convenções outrora exigidas nos produtos audiovisuais: é cada vez mais freqüente, por exemplo, que os telejornais insiram entre as suas manchetes anúncios de “notícias” captadas amadoramente, por pessoas comuns que tiveram a sorte de possuir um celular com câmera no momento em que algo inusitado acontece…


No cinema, isso ocorre há mais tempo: imagens trêmulas, fora de foco e com áudio pouco compreensível são consideradas adequadas à narrativa cinematográfica, para além das diatribes ensaiadas de alguns cineastas dogmáticos. A saturação deste formato chegou a tal ponto que é difícil distinguir produtos que prezam pela sinceridade na captação informal de imagens. "Selfie" é, neste sentido, uma grata exceção: o registro de uma amizade atravessada pelas pressões destrutivas das condições sociais periféricas. O anúncio de uma separação, portanto.


No projeto, os amigos Pietro e Alessandro recebem celulares potentes, a fim de registrarem as situações de seu cotidiano. Ambos têm 16 anos de idade, e vivem num distrito napolitano onde, há algum tempo, um adolescente foi injustamente assassinado pela Polícia, e a vinculação à Camorra surge como coerção onipresente. Eles resistem, ao manifestarem uma inocência atípica para a sua idade: o primeiro insiste em filmar as situações deprimentes de sua vizinhança, enquanto o segundo lida com o inevitável desamparo.


Formalmente, o filme abusa do recurso fotográfico em que os portadores dos celulares focalizam a si mesmos, em enquadramentos rudimentares, com vistas ao enfoque facial. Mas é justamente esse o grande mérito do filme: ainda que a montagem tenha sido realizada por alguém de fora, tudo o que é mostrado vem de dentro, é permeado pela esperança intermitente de quem diverte-se e trabalha nas condições disponíveis. Resta o consolo das típicas canções melodramáticas, que acompanham-nos por muito tempo após a enternecedora sessão…


Wesley Pereira de Castro. 

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