quinta-feira, 29 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: DIAS (2020, de Tsai Ming-Liang)


     Conhecido por suas obsessões em relação à incomunicabilidade humana, o cineasta malaio Tsai Ming-Liang concebe um dos maiores paradoxos em relação ao tema, no filme que estende suas marcas registradas a píncaros extremados: apesar de suas mais de duas horas de duração, "Dias" foi lançado internacionalmente sem legendas, visto que, para fins publicitários, é um filme sem diálogos. Porém, é justamente o filme do diretor em que seus personagens mais conversam, mais interagem positivamente...



    Na trama que se descortina mui lentamente, há apenas dois personagens: o recorrente Hsiao-Kang (interpretado por Lee Kang-Sheng, que protagoniza os filmes do diretor há décadas) e o belo garoto de programa Non (vivido pelo estreante laosense Anong Houngheuangsy). O segundo é um imigrante que sobrevive fazendo massagens eróticas para homens solitários; o primeiro, é um homem que envelheceu diante das câmeras, nos diversos filmes do diretor. Aqui, ele está às voltas com a dor no pescoço que o aflige desde "O Rio" (1997). Agora, lida com os seus anseios homossexuais com mais sobriedade, ainda que isso o angustie bastante. 



    O encontro entre os mencionados personagens dá-se após seqüências minuciosamente delineadas, vinhetas cinematográficas que expõem o cotidiano silencioso de ambos os homens: o mais jovem deles aprecia cozinhar, sendo muito higiênico quanto à lavagem dos vegetais que adquire, bem como em relação à limpeza de seu próprio corpo; o mais velho esforça-se para conter uma dor que progride para todos os órgãos. Numa mui demorada sessão de massagem, Hsiao-Kang e Non transam, mediante pagamento. Mas isso não oblitera a possibilidade de diálogo entre eles. Abraçam-se. Comem juntos. Pensam um no outro. Mas a tristeza pós-coito é implacável! 



    No primeiro enquadramento, o elemento central de toda a filmografia ming-lianguiana é abundante: a presença da água. Enquanto contempla a chuva torrencial, Hsiao-Kang deixa um copo cheio de água ao seu lado. Noutro lugar, Non lava coentro, alface e cebolinhas em seu banheiro, onde a água é também onipresente. Para quem já admirava o cinema deste diretor, encontra aqui o supra-sumo de seus interesses, a quintessência de suas persecuções. Uma obra-prima, em suma. 




    Intencionalmente vagaroso, "Dias" não tematiza o enfado. Pelo contrário, aliás: nas seqüências longas, pausadas e cotidianas, há muito a ser visto e (re)interpretado a partir dos rituais diuturnos levados a cabo pelos personagens, no enfrentamento de seus abandonos hodiernos. Não se sabe o que eles estão fazendo na Tailândia, mas compreende-se em seus silêncios o desamparo que é sentido por eles. A confluência entre eles é desejada, em múltiplos sentidos - conforme já aconteceu em várias obras do diretor, permeadas pelo erotismo inaudito. Este filme, portanto, torna-se, entre múltiplos aspectos, uma reflexão magnânima sobre a velhice. Trata-se de uma obra-prima, insistimos! 



Wesley Pereira de Castro. 



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