sábado, 17 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: BEM-VINDO À CHECHÊNIA (2020, de David France)


     O título provocativamente acolhedor deste documentário infelizmente não corresponde ao que é apresentado: ele aparece sobreposto a um vídeo de espancamento, onde conhecemos o tratamento atroz concedido aos homossexuais perseguidos na região russa da Chechênia. Esta tornou-se internacionalmente noticiada no início da década de 1990, quando requereu emancipação política, ainda não devidamente reconhecida. De maioria muçulmana, este autodeclarado país possui uma região territorial inferior ao do Estado de Sergipe. É governada por um militar extremamente preconceituoso, de nome Ramzan Kadyrov. Tal qual o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, ele costuma exibir-se de maneira nojosa nas mídias sociais: comumente publica gravações pessoais em seu perfil no Instagram, onde exercita-se numa academia de ginástica e exibe metralhadoras. E declara que não deve haver homossexuais sob o seu Governo: segundo ele, estas pessoas são pecadoras, deveriam ser extraditadas. Ele repete isso, com escárnio, numa entrevista televisiva. É um dos momentos mais impactantes do documentário!



Os vídeos apreendidos pelos ativistas LGBT+ mostrados no filme chocam pela crueldade: feridos nas nádegas, cobertos de hematomas e espancados de todas as formas, os sobreviventes homossexuais das prisões chechenas conservam também cicatrizes internas. O medo de serem sequestrados e mortos, como aconteceu com diversas pessoas, faz com que eles tentem fugir desesperadamente da Rússia, e precisam disfarçar-se por conta disso. Num eficiente estratagema protetoral, a equipe do documentário serve-se de efeitos especiais para dublar os rostos e as vozes dos depoentes, com uma extraordinária exceção: o momento em que a "maquiagem" imagética desaparece, visto que um dos homossexuais perseguidos resolve denunciar, num processo judicial, as torturas que sofreu... 



Urgente em seu pressuposto denuncista, o documentário chama a atenção pelo fervor com que adere à luta por sobrevivência de pessoas que são odiadas apenas por amarem alguém do mesmo sexo, sendo eventualmente violentadas pelos próprios familiares. Que o diga o caso da moça chantageada pelo tio por ser lésbica: se ela não cedesse aos seus desejos sexuais, ele a denunciaria aos pais, que provavelmente a espancaria. Ela foge. E é acolhida... 



É a partir desse momento que o documentário exibe as suas maiores fraquezas: produzido sob a chancela da HBO, ele é conduzido como se fosse um filme de ação! Em mais de um momento, acompanhamos as atividades da organização enfocada, que negocia com vários países o asilo humanístico aos homossexuais perseguidos. Os EUA evitam este acolhimento, obviamente. A trilha musical do filme assume um tom triunfalista e/ou melancólico, induzindo uma pretensa tensão quando a mãe de um dos homossexuais não consegue fechar o cinto de segurança no avião, quando um rapaz tenta suicídio, ao cortar os pulsos, ou quando Anya, a moça ameaçada pelo tio, requer um novo apartamento para refugiar-se, pois "precisa caminhar um pouco". Não ilegitimando a denúncia dos terríveis atos repressivos da república chechena, o documentário soçobra ao não conseguir desvencilhar-se de eventuais cacoetes classistas e de convenções tramáticas que transitam entre o jornalismo investigativo e o 'thriller' hollywoodiano.



É um filme que deve ser visto. Muito mais por aquilo que expõe que por suas qualidades cinematográficas intrínsecas. Até hoje, o artista 'pop' checheno Zelim Bakaev - que é mostrado no documentário e tem uma de suas canções executada nos créditos finais - permanece desparecido: que a difusão do filme ajude a esclarecer as condições de seu sumiço, presumivelmente por motivos homofóbicos, em 2017. Ao menos, isso! 



Wesley Pereira de Castro. 



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