domingo, 18 de janeiro de 2009

BATMAN - O CAVALEIRO DAS TREVAS (2008) Dir.: Christopher Nolan


Ocultar evidências e, em seguida, escolher uma versão de verdade que satisfaça os anseios subjetivos de alguém que se acredita patrono da justiça é um tema recorrente nas obras de Christopher Nolan. Se, em “Amnésia” (2000), seu melhor filme até então, o protagonista desmemoriado contenta-se em assassinar um inocente a fim de sentir-se vingado pela morte da esposa e, em “Insônia” (2002), um policial é considerado heróico mesmo quando se descobre que ele baleara fatalmente um parceiro, o tema da obliteração factual aparece bastante evidente em “Batman Begins” (2005), no qual o mítico personagem principal assume dupla identidade a fim de saciar sua própria ambigüidade moral, e em “O Grande Truque” (2006), no qual mágicos ambiciosos servem-se do ilusionismo caro à profissão para disfarçarem seus sentimentos e emoções. Em “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008), tal recorrência enredística torna-se ainda mais portentosa. Para além de todas as falhas directivas e da excessiva confiança que é destinada ao esquematismo caricatural de algumas situações, o modo como a trama é resolvida intriga sobremaneira o espectador, que, com certeza, sai atordoado da sessão, sendo irrelevante se o mesmo gostou ou não do filme. Isso se deve principalmente à ótima composição dos vilões do filme, que não correspondem apenas ao Coringa e ao Duas-Caras, mas sim a todo um contingente de pessoas malévolas que assola a cidade de Gotham City, contingente este que encobre também o próprio personagem-título, atormentado por causa da inviabilidade das táticas de que se utiliza para combater o mal, visto que ele chega a servir-se de recursos antiéticos, conforme percebe o engenheiro Lucius Fox (Morgan Freeman), quando descobre que Bruce Wayne (Christian Bale) desenvolveu sonares investigativos a partir dos telefones celulares dos habitantes da cidade em que vive. Ou seja, ao invés de entender que a referida atitude antiética visa à captura do perigosíssimo Coringa, Lucius Fox pede demissão da empresa de Bruce Wayne, antevendo um dos inúmeros tormentos existenciais que balizarão a agonia justiceira do personagem ao final do filme.


Abusando de câmeras que perfazem movimentos circulares em volta dos personagens nos momentos de tensão, Christopher Nolan demonstra uma inabilidade regressiva enquanto diretor, que vai de encontro à sua astúcia como roteirista e ao seu imediatismo enquanto autor de argumentos. Anda que, enquanto diretor, ele não seja digno de méritos – já que o filme, em sentido técnico, difere pouco dos inúmeros filmes policiais e/ou de ação produzidos por Hollywood –, enquanto roteirista, Christopher Nolan futuca as mesmas feridas morais e ideológicas recentemente investigadas em filmes dirigidos por Clint Eastwood e Ben Affleck, para ficar apenas em exemplos recentes e óbvios. Quando Duas-Caras (Aaron Eckhart) afirma que “em um mundo cruel como o que vivemos, o único moralismo possível [e imparcial] é o acaso”, ele não somente está pleno de razão como assume-se como uma espécie de alter-ego da geração de cineastas a que Christopher Nolan se vincula, um grupo de artistas que trabalham mais em função da (auto-)referencialidade do que necessariamente em relação à novidade. Ou seja: Christopher Nolan é um autêntico cineasta hipermoderno, o que explica o excesso de paralelismos narrativos neste filme, em contraste com as discretas intervenções alineares. É pena, porém, que o sobejo de personagens e sua pretensiosa complicação tramática distraiam a atenção do espectador, desperdiçando lances inventivos, como a primeira aparição do Batman, que persegue Espantalho (Cillian Murphy), vilão do filme anterior, que aqui trafica substâncias ilícitas e usa como estratagema de fuga um comparsa mascarado como o Homem-Morcego. Quando prende o Espantalho, Batman é atacado por cachorros de grande porte, o que desencadeará uma espécie de cinofobia importante para o desenvolvimento de seu personagem e da própria trama, visto que, mais adiante no roteiro, o Coringa (Heath Ledger) proteger-se-á com cachorros da mesma raça e, quando tenta convencer o comissário Gordon de que deve ser perseguido “em nome da lei”, Batman pede que seu companheiro no combate ao crime “ponha os cachorros em cima dele”. Mas o momento que melhor se utiliza desta cinofobia sub-reptícia do personagem principal está na cena em que o brilhante personagem Coringa explica ao promotor Harvey Dent a sua isenção de culpa no planejamento de grandes crimes. Diz ele que é apenas um instrumento executor, alguém que age “tal qual os cachorros que correm atrás dos carros, mas que não sabe o que fazer quando alcança um deles”. Com este comentário, fica fácil entender o que o vilão quer dizer quando se auto-intitula um “anarquista criminoso de vanguarda”, como um bandido que não quer adquirir dinheiro como os demais vilões, mas apenas ver “o circo pegar fogo”, num comentário da advogada Rachel Dawes (Maggie Gyllenhall).


Um dos maiores avanços desta segunda aventura do “cavaleiro das trevas” dirigida por Christopher Nolan em relação ao filme anterior está justamente numa prática delicada: escalar uma atriz para viver uma personagem anteriormente interpretada por outra pessoa. Afinal de contas, Maggie Gyllenhall é muito mais expressiva que sua precedente Katie Holmes e, ainda que a personagem Rachel Dawes esteja envolta de uma espécie de pieguismo conseqüencial, que motivará não somente a equivocada sede de vingança de Duas-Caras, como também a ocultação de provas em favor de um “mito necessário” [vide a cena em que Alfred (Michael Caine) queima a carta que Rachel deixou para Bruce Wayne, na qual confessava seus intentos legítimos de se casar com Harvey Dent]. Já que a expressão “ocultação de provas” é novamente trazida à tona nesse texto, cabe aventar aqui uma inquietação em relação à mensagem final do filme, em que Batman prefere assumir os crimes perpetrados por Duas-Caras a fim de não macular a boa carreira do promotor Harvey Dent, tornando-se assim mais fora-da-lei do que já era considerado até então, com o pretexto de que e “ele é o herói que a cidade de Gotham City merece, mas para o qual ela ainda não está preparada”. Conforme o comissário Gordon (Gary Oldman) deixa bem claro, a construção de mitos é efetiva no apelo às boas intenções supostamente natas de cada indivíduo, o que provaria que o Coringa estava errado em sua obsessão por revelar a maldade inevitável de seres humanos confrontados com estado de pânico e dor (vide o plano de fazer com que os tripulantes de dois navios ativem explosivos um contra o outro a fim de salvarem-se de uma ameaça mortal) e que exemplos de bom caráter inibem o crime de maneira muito mais prática do que o tipo de combate violento e auto-justiceiro de que se vale o Homem-Morcego. Será mesmo? Cabe aqui uma reflexão extrafílmica.


Por fim, “Batman- O Cavaleiro das Trevas” merece um parágrafo especial sobre o trabalho do elenco. Ainda que a fotografia de Wally Pfister seja mui acertada em suas tonalidades predominantemente escuras, que a música de Hans Zimmer & James Newton Howard decresça qualitativamente em cenas românticas ou laudatórias e que o roteiro de Jonathan & Christopher Nolan seja demasiadamente crédulo e estereotipado ao nível da puerilidade em algumas seqüências (o que é justificado por sua base nas Histórias em Quadrinhos), é o elenco do filme o grande chamariz desta obra. Se Aaron Eckhart repete os trejeitos cínicos a que se habituara em filmes anteriores e Gary Oldman (quase irreconhecível!) transmite com prostração elogiável o desânimo e a desesperança do comissário Gordon, a já citada Maggie Gyllenhall dramatiza bem sua personagem, Michael Caine rouba a cena com seu humor irresistível e Morgan Freeman está quase dispensável, visto que seu papel é literalmente mecânico. Heath Ledger, por sua vez, está absolutamente hipnótico como o Coringa, roubando todas as atenções, inclusive do talentoso Christian Bale, que não dosa com suficiente êxito as necessidades vocais distintas de suas duas personalidades. Heath Ledger transforma a sua última aparição nas telas do cinema em um antológico testamento actancial, desafiando o desdém que alguns de seus fãs demonstravam em relação à popularidade do personagem que interpreta, que já fora eternizado magnanimamente por Jack Nicholson num filme de Tim Burton e assumia-se como delicado em virtude de seu extremo desgaste midiático. O formidável ator australiano, porém, realiza um verdadeiro espetáculo sempre que está em cena, transmitindo com exatidão superlativa toda a psicopatia de seu personagem, em especial quando descreve as diversas versões para o surgimento das cicatrizes que maculam seu rosto maquiado, versões estas que parecem todas verdadeiras e não-excludentes, o que só valoriza a dramaticidade inolvidável do passado imaginado do personagem, bem como o esperto truque do ator em passar a língua em volta dos lábios o tempo inteiro. Esta insistente movimentação glótica é explicável não somente enquanto tique nervoso mas também como fonte de irritação e provocação contra os seus inimigos – e é precisamente a Heath Ledger que pertence o momento mais impressionante de todo o filme, quando, depois de intimidar o convalescente Duas-Caras, ele explode vários cômodos de um hospital. É, então, fotografado em ‘contra-plongée’, vestindo um uniforme de enfermeira, aparentemente brincando com um detonador defeituoso. Quando estamos quase sorrindo da situação, achando engraçado o extremo despudor e sarcasmo do personagem, todo o prédio do hospital vem abaixo, em chamas altissonantes e estrondosas, que se fazem notar à distância por todos os demais personagens do filme. Com mais esta extraordinária vivificação personalística, Heath Ledger (04/04/1979 – 22/01/2008) é um ator que merece aqui um sinceríssimo adágio supra-personal: “descanse [realmente] em paz”!

Wesley Pereira de Castro.

Um comentário:

Elaine Crespo disse...

Acho muito interresante este BLOG!
Mais informativo do que o fotolog! Mais como critico de cinema e menos pessoal. Acho importante sua opinião sobre os filmes que vão sendo lançados, como vejo em outros blogs de cinema! E também para os DVDs que vão sendo colocados nas locadoras!
Acho que vc entendeu o que quis dizer ..
Não estou muito bem hoje de saúde!
Depois faz postagens para os indicados ao Osca deste ano!
E os ganhadores do Globo de Ouro!
Se tu quiser é claro é só uma sugestão

Parabéns!!:)
Bjs
Elaine