quinta-feira, 1 de setembro de 2011

MELANCOLIA ('Melancholia') Dinamarca/Suécia/França/Alemanha, 2011. Direção: Lars von Trier.

Dentre os diversos adjetivos comumente relacionados à espalhafatosa ‘persona’ directiva do cineasta dinamarquês Lars von Trier, polemista e reinventor da linguagem cinematográfica são os mais corriqueiros. Não é por acaso: a grande maioria de seus filmes traz no bojo rupturas geniais da forma narrativa tradicional e conteúdos instigantes e questionadores acerca das convenções sociais de gênese capitalista.

Não obstante ser um ótimo filme, “Melancolia” é deveras brando no que tange à reiteração dos adjetivos supracitados. Por mais que as declarações sarcásticas e mal-compreendidas do diretor tenham causado alvoroço nas reuniões de imprensa para divulgação de sua estréia cinematográfica, o filme em si é contido, centripetamente emocional e bem mais internalizado do que as conclamações socialmente julgamentais dos alter-egos e vítimas femininas do cineasta acostumaram-nos a aguardar, mas, ainda assim, é muito coerente em relação ao tipo de clímax lacrimoso crescente que ele impõe sobre as suas corajosas atrizes. E, se a exuberante Kirsten Dunst é sujeitada a um ‘tour de force’ depressivo digno de muita identificação sobrevivencial, é Charlotte Gainsbourg quem realmente se sobressai no elenco, com uma interpretação que se translada do rígido controle cerimonial para a extrema fragilidade familiar, de forma tão impactante quanto esperada por quem já está acostumado a ler os índices trierianos.


Os admiradores e/ou conhecedores do cineasta deduzem rapidamente que o lento preâmbulo do filme – musicado por “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner, e permeado por imagens belíssimas de teor naturalmente apocalíptico – sintetiza as mudanças de rumo enredístico que serão conduzidas através dos seus 136 minutos de duração. Nesse sentido, a inteligência compositiva do cineasta deve ser destacada pelo brilhantismo discursivo da primeira parte de seu filme, em que a tumultuada cerimônia de casamento da personagem Justine (Kirsten Dunst) consolida o surgimento de sua depressão de modo quase pernicioso, tamanho o rigor didático na apresentação reiterada da mesma. Editada da mesma forma elíptica que seus mais famosos filmes realizados com o auxílio de câmeras digitais, a primeira metade de “Melancolia” escancara a dificuldade de se viver num mundo entulhado de normas sociais burguesamente fetichistas com uma intensidade já anunciada em obras mais fortes do cineasta, como “Ondas do Destino” (1996) ou “Os Idiotas” (1998).

O deslocamento psicológico de Justine é prevenido e contrabalançado pelo senso de humor ferino de seu pai (vivido por John Hurt), pela ostensividade monetária de seu cunhado John (Kiefer Sutherland), pela acidez misantrópica de sua mãe Gaby (Charlotte Rampling), pelo senso inicial de organização cerimonial de sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg), pela pretendida devoção amorosa de seu marido Michael (Alexander Skarsgård), pelo carinho otimista de seu sobrinho Leo (Cameron Spurr), pela ojeriza institucional de um antipático organizador de casamentos (Udo Kier) e pelo oportunismo profissional de seu patrão Jack (Stellan Skarsgård). Aos poucos, portanto, ela se deixa desabar num espiral de pequenas desgraças anunciadas, entregando-se sexualmente ao inconveniente Tim (Brady Corbet) na mesma noite de núpcias em que rejeitara transar com o homem com quem acabara de se desposar. E é este desabamento psiquiátrico que permite que a nocividade comunitária tão comumente enunciada em cada uma das obras trierianas imponha-se de forma tão discreta quanto esteticamente acachapante.


Quiçá o segmento de filme mais fotograficamente inebriante da carreira de Lars Von Trier, a segunda metade de “Melancolia” faz as vezes de íntima panacéia para o iminente fim do mundo, não apenas no sentido astronomicamente literal, mas como píncaro de uma sociedade em vias de auto-extinção por causa da sujeição obsedante à competição profissional. O extraordinário trabalho fotográfico de Manuel Alberto Claro traduz em minúcias as indagações protestantes do roteirista Lars von Trier, que aplica aqui a literalidade hermenêutica dos índices que anunciara no início de seu filme.

Aos poucos, cada um dos instantes de comunhão fraternal tardia diante da inevitabilidade da destruição do planeta Terra é deslindado em seqüências de grande beleza visual e passional, culminando numa breve e impressionante representação do Armagedom, quando as duas irmãs e o filho de uma delas dão-se as mãos num gesto de amor que não impede e nem é impedido pela devastação completa do mundo que os rodeia. E, por mais pessimista que pareça ser o diretor – dentre os merecidos adjetivos que ele recebe de seus exegetas – um indício benfazejo de redenção é concedido aos seus personagens, que morrem tragicamente, como é de costume em seu ‘corpus’, mas, ao contrário do que percebemos em “Epidemia” (1987), “Dançando no Escuro” (2000) ou até mesmo em “Dogville” (2003), lidam com a inaplacabilidade do fatalismo circundante de uma maneira que se assemelha à aceitação humanitária do mesmo. E, se este filme não causa o mesmo impacto polemista ou formalmente inovador de outros filmes, esta reviravolta moralmente discursiva é quase chocante num cotejo com a brutalidade anterior e justificadamente demonstrada.


No afã por encontrar algum foco interpretativo mais geral para este filme que não seja a mera legitimação proposital do conceito de indicialidade na obra de Lars von Trier, o brotamento tardio de amor mútuo entre os personagens surpreende pela dubiedade do próprio questionamento acerca de sua ironia representativa. Em outras palavras: “Melancolia” é muitíssimo mais discreto que qualquer outro filme do diretor [incluindo-se aqui obras menos conhecidas como “Medéia” (1988) ou “Europa” (1991)], mas destaca-se pungentemente enquanto peça dramática e urgentemente contextualizada, conforme se pode atestar na suspensão de respiração que aflige o espectador em cenas como o momento em que Justine confessa que sente dificuldades em caminhar pois tem a impressão de que há “um longo fio de lã cinzenta amarrado nos tornozelos”, quando sua mãe assevera que “mesmo cambaleando, ainda se pode fugir de qualquer situação desagradável”, quando ela paralisa diante de uma banheira na cena em que sua irmã tenta lavá-la, quando ela espanca o cavalo em que estava montada e, principalmente, quando os personagens sentem-se justamente asfixiados depois que o astro fictício que intitula o filme penetra na atmosfera terrestre.

O silêncio dilacerador que toma de assalto aqueles que se dispuseram a sentir na pele a mesma aflição que Justine e Claire experimentam é a prova definitiva do quanto este filme é positivamente valorativo e reflete a genialidade insuspeita de Lars von Trier, mesmo quando ele parece burilar a crueldade característica de seu estilo. Dito isto, alguém mais se habilita a participar do brinde que o milionário John estende em homenagem à Vida?

Wesley Pereira de Castro.