sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

NADA SERÁ COMO ANTES - A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2023, de Ana Rieper)

Apesar do subtítulo descritivo, este filme não opta pelo percurso historiográfico nem será idealmente apreciado por quem não conhece a fundo o disco em pauta: a diretora realiza quase um 'making-of' tardio, um material que poderia muito bem ser inserido nos extras do DVD de um efusivo reencontro, no palco, entre os músicos entrevistados. A tônica depoimental é tão improvisada quanto eram as composições do grupo, em relatos que enfatizam o quão importante é a amizade na criação artística: "o Clube da Esquina só existiu por causa do movimento estudantil e do cinema", enfatiza um deles, inclusive.


No início, Lô Borges agradece ao instante em que sua mãe pediu para que ele comprasse pão e leite e, ao descer a escada do prédio em que morava, escutou a voz egrégia do jovem Milton Nascimento: ficou compreensivamente fascinado por ele, à primeira audição. De repente, o músico comenta que, em sua época, "a infância era muito mais inocente" e que "demorou para descobrir que Papai Noel não existia". Aos dez anos de idade, ele encontrou Beto Guedes na rua, e tentou trocar algumas moedas estrangeiras pelo patinete que ele conduzia. E, assim, ele vai mudando de assunto, demonstrando que é tudo muito circunstancial no documentário, o que confirma a ambientação afetiva identificada pelos entrevistados. Porém, isso deixa o espectador frustrado por não saber mais sobre o processo de criação do álbum: para a diretora, o que importa é sentir, através de lembranças compartilhadas!


Lançado em março de 1972, o álbum "Clube da Esquina" é sobremaneira elogiado pelos críticos musicais, sendo considerado um dos melhores e mais importantes discos brasileiros. Recentemente, a famosa capa - que flagra dois garotos, um branco e um negro, sentados no chão de uma estrada de terra - foi alvo de um processo judicial, visto que os dois meninos, já crescidos, exigiram compensação monetária, por não saberem que foram fotografados e expostos comercialmente por tanto tempo. Esta informação não aparece no filme, e o próprio processo de gravação do álbum é comentado de maneira esparsa. À realizadora, conhecida por ter se enveredado pela influência da música brega, em "Vou Rifar Meu Coração (2011 - crítica aqui), interessa muito mais registrar a emoção dos cantores, já idosos, redescobrindo acordes, lembrando causos de quando eles passavam as noites juntos, conversando e cantando sobre os mais variados temas, na esquina de uma rua do bairro onde residiam... 


Sendo ostensivamente modesto na adoção da linguagem documental e evitando estratagemas que poderiam encarecer o orçamento do filme (executar as canções de The Beatles que os amigos músicos tanto mencionam, por exemplo), "Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina" cumpre o que está embutido na primeira sentença titular, em suas intenções nostálgicas, mas revela-se conteudisticamente parco na aplicação da segunda. Conhecemos as influências (rock progressivo, jazz, pontos de candomblé) daqueles outrora rapazes, descobrimos que a musicalidade mineira é influenciada pela geografia montanhosa do Estado e constatamos que a inteligência e a sensibilidade dos responsáveis por uma obra-prima do cancioneiro nacional permanecem resguardadas. Todavia, isso não é suficiente para explicar a excelência e a complexidade da feitura de um álbum musical. Enquanto longa-metragem documental, este filme é tão evasivo quanto uma conversa ouvida durante um passeio de trem: instaura a curiosidade e nos atiça, carinhosamente, mas logo se perde em meio a outros chamarizes audiovisuais. Fica a recomendação para ouvirmos novamente o disco, prestando ainda mais atenção à beleza singular de suas letras e acordes: "você ainda pensa e é melhor do que nada"!


Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 3 de fevereiro de 2024

POBRES CRIATURAS (2023, de Yorgos Lanthimos)

Em dado momento do filme - mais precisamente no capítulo sobre um cruzeiro marítimo - a protagonista Bella Baxter (intensamente interpretada por Emma Stone) conhece um gigolô chamado Harry (Jerrod Carmichael), que, além de demonstrar a ela que há muita miséria no mundo, tenta demovê-la de ter esperança na humanidade, "seja advinda da religião, do socialismo ou do capitalismo". E, enquanto ele discursa, podemos enxergar nele uma espécie de alter-ego diretor, conhecido por sua misantropia. À primeira vista, esta é uma breve participação, uma fala solta. Mas a onipresença egóica do realizador é manifesta ao longo de toda a projeção, através de uma perspectiva que simula o fechamento da íris ou uma bisbilhotada pelo buraco de um telescópio: há um personagem cujo apelido é God, mas, no universo lanthimosiano, o único deus é ele próprio! 


Isso não quer dizer que o direcionamento feminista do roteiro seja inócuo: muito pelo contrário, a jornada de amadurecimento de Bella, a partir de suas múltiplas descobertas sexuais, é sobremaneira aplaudível, não obstante terminar num previsível mote vingativo, que faz referência direta ao desfecho de "Monstros" (1932, de Tod Browning). É uma das diversas referências literárias e cinematográficas detectáveis nesta luxuosa produção, que conta com uma fotografia acachapante e ostensivamente artificial de Robbie Ryan , que leva ao extremo a utilização de lentes olhos-de-peixe, mais uma vez corroborando o olhar teológico do realizador, testada anteriormente na colaboração em "A Favorita" (2018). A trilha musical de Jerskin Fendrix é igualmente esplêndida! 


As inspiradas seqüências no prostíbulo parisiense possuem elementos conteudísticos que remetem ao clássico "A Bela da Tarde" (1967, de Luis Buñuel) e ângulos e enquadramentos mui assemelhados a "Laranja Mecânica" (1971, de Stanley Kubrick), o que não deve ser casual, já que todas estas obras possuem como tema comum a adesão defensiva do livre-arbítrio. Neste sentido, é muito complexo, no mais positivo dos sentidos, o desenvolvimento tramático das relações que Bella estabelece com o anatomista que lhe serve de figura paterna, Godwin (vivido por um excelente Willem Defoe), e a companheira de meretrício que torna-se a sua amante e iniciadora explícita no socialismo, Toinette (Suzy Bemba). É magnífica a cena em que as duas, fugindo da perseguição ciumenta do insuportável Duncan (Mark Ruffalo), gritam: "nós somos nossos próprios meios de produção"!


Esta última frase, mui oportuna, faz com que retornemos para um conflito interno no enredo fabular: ainda que Bella Baxter chame a atenção por seu empirismo erótico e que a atriz Emma Stone mereça todos os aplausos e prêmios por sua extraordinária entrega actancial, é a obsessão do realizador pela temática supostamente protetoral do confinamento que se instaura como dominante. O protagonismo é feminino - e repetimos: também feminista -, mas o que efetivamente interessa ao diretor é a confirmação de suas teses sobre a degradação dos caracteres humanos em face da repressão alheia (alegadamente social) sobre a sobrecarga desejosa (biológica e/ou natural) de alguém, o que já pode ser detectado nos filmes que ele rodou antes de "Dente Canino"(2009), que garantiu-lhe projeção internacional. Yorgos Lanthimos é um esteta que desconfia das intenções dos amantes, dos cuidados familiares e da beleza enquanto válvula de escape sensório. Como tal, precisa aderir a certa dose de sadismo (insere a questão ameaçadora da infibulação!), felizmente moderado neste trabalho mais recente, permeado por situações e diálogos cômicos, pelas intervenções de uma figura terna (o assistente Max McCandles, vivido por Ramy Youssef) e por algumas manifestações reflexivas do perdão. Quão luminosas são as aparições de Hanna Schygulla, admitindo que também é adepta da masturbação. Viva! 


Wesley Pereira de Castro.