quinta-feira, 23 de agosto de 2012

NA ESTRADA ('On the Road') EUA/Inglaterra/ Brasil/França, 2012. Direção: Walter Salles.

Apesar de não ser (ou parecer) tão essencial na análise deste filme uma comparação tramática com a obra de Jack Kerouac que lhe deu origem, pode-se dizer que o roteiro de Jose Rivera não traiu o romance acerca da reprodução de seus principais fatos e percursos geográficos. No que tange à composição dos personagens, entretanto, as diferenças são cavalares.

 Se o romance original, publicado em 1957, apresenta algumas limitações compositivas que não necessariamente resistiram ao tempo – sendo muito mais compreendidas por quem conhece a fundo as peculiaridades do moralismo estadunidense do final da década de 1940, quando se passam os eventos – no filme, algumas transmutações personalísticas prejudicam deveras a adesão empática ao périplo do protagonista. Na obra kerouaquiana, Sal Paradise, alter-ego do escritor, conhece Dean Moriarty após um divórcio, ao passo que, no filme, o encontro se dá após o velório do pai do primeiro, o que não apenas reforça o eco narrativo com a busca sintomática do segundo pelo pai desaparecido como transforma o narrador num filhinho-de-mamãe antipático e psicologicamente amorfo.

A atuação desenxabida de Sam Riley hipertrofia a má composição do personagem, muitíssimo menos interessante que a sua inspiração literária. E, só por este detalhe, pode-se antecipar que não tinha como este filme dar certo...

Em contraponto à atuação apática de Sam Riley, Garrett Hedlund tenta dotar Dean Moriarty do cafajestismo sedutor que explica o porquê de todos a seu redor ficarem tão apaixonados por ele, mas, para além da extrema beleza física do ator e de sua imponente voz grave, os méritos actanciais não são bem-sucedidos: compreendemos que ele seja irresponsável, mas não apreendemos o fascínio que o narrador insiste em atrelar a ele.

Surpreendentemente, as duas melhores presenças humanas em “Na Estrada” correspondem a personagens secundários, no caso, Marylou, a (ex-)esposa adolescente de Dean e Carlo Marx, um poeta homossexual inspirado em Allen Ginsberg. A primeira, muitíssimo bem-vivida pela criticamente subestimada Kristen Stewart, é sabotada pelo conservadorismo exibicionista do roteiro – que insiste numa pudicícia visual não condizente com seu liberalismo oral advindo do livro – mas, ainda assim, protagoniza pelo menos uma excitante cena, em que masturba simultaneamente os dois amigos protagonistas, enquanto um deles dirige um automóvel em alta velocidade.

O segundo, interpretado por Tom Sturridge, tem a seu favor um dos melhores diálogos do filme, quando, ao lamentar a indiferença de Dean Moriarty em relação a ele – não tanto pela sexualidade, mas por não retornar os seus telefonemas carentes –explica a Sal que o que sente “não pode ser definido como ‘coração partido’, pois isto seria muito banal, nem como ‘melancolia’, pois isto seria bastante langoroso, mas talvez possa ser adequadamente descrito como ‘pesar’”. Neste momento, entendemos o impacto ‘moriartiano’ sobre aqueles personagens.

Ainda em relação ao elenco, Viggo Mortensen tem alguns bons momentos como um personagem que lembra bastante William S. Burroughs, enquanto Amy Adams e Kirsten Dunst estão apenas corretas em suas composições de mulheres relegadas à espera conjugal, e Alice Braga dota a aguerrida imigrante (ao menos, no romance original) Terry de uma vacuidade atroz, naquela que periga ser a mais grave displicência adaptativa em relação ao texto original. A montagem de François Gédigier e a direção fotográfica de Eric Gautier apelam para uma agilidade elíptica e cálida, a fim de transmitir ao espectador o empreendedorismo emocional das quatro viagens do protagonista, mas não conseguem dirimir o enfado que se instaura ao longo dos 137 minutos de duração deste filme, musicado de forma pouco inspirada pelo competente e costumeiramente ousado Gustavo Santaolalla.

Conforme insinuado anteriormente, se o livro já apresenta algumas evidentes manifestações arrítmicas, no filme, estas foram subsumidas a uma equanimidade entre o tédio que os personagens alegam sentir em mais de uma seqüência e o aborrecimento que toma de assalto o espectador, exposto ao obtuso anacronismo moral da encenação.

À guisa de conclusão, cabe trazer à tona um questionamento acerca da estranha (ou oportunista) decisão do roteirista em estender o assédio que Dean sofre de um homossexual mais velho (vivido por Steve Buscemi) em sua terceira viagem pelos EUA, convertendo o que era apenas uma bravata de meia-página no romance em uma cena de sexo prostituído que deixa Sal Paradise, a ponto de este brigar com seu amigo pródigo por causa disso. Se, na biografia do escritor Jack Kerouac, é bastante emulado o suposto envolvimento homoerótico com o companheiro Neal Cassady (que inspirou o personagem Dean Moriarty) e esta mesma emulação é fundamental para se entender o imediatismo com que Sal decide se atirar na estrada ao lado do amigo ou com o interesse de reencontrá-lo, por que esta a mencionada cena de desentendimento entre amigos, que beira a homofobia, foi efetivada? Seja qual for a resposta para esta indagação, perdura no filme um alquebramento lamentável: o de que ele é uma traição hodierna ao espírito ‘beatnik’!

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

VOU RIFAR MEU CORAÇÃO (Brasil, 2011). Direção: Ana Rieper.

O primeiro entrevistado do filme descreve resumidamente uma desventura com sua esposa e, a fim de metonimizar o que sente ao narrar o fato, traz à tona uma canção interpretada pelo cantor Amado Batista, cuja letra diz o seguinte: “era uma tarde tão triste quando ela partiu/ Na curva daquela estrada, ela, então, sumiu/ Era como folha seca, que vai onde o vento quer/ Me enganei quando dizia tenho uma mulher”.

Tal seqüência, precipitadamente conduzida, dá a tônica do filme: a diretora intentará estabelecer um panorama observacional acerca dos mecanismos de identificação tramática que arregimentam a vendabilidade da chamada “música brega” no Brasil, principalmente na região Nordeste, já que a maior parte do filme foi filmada em cidades sergipanas, alagoanas e pernambucanas.

Ao contrário dos documentários tradicionais, a equipe técnica deste filme não tem preocupação em identificar os depoentes ou as cidades que serviram como cenário (salvo durante os créditos finais), o que cria um desconforto inicial em espectadores dependentes de trâmites informativos para a fruição relacionada ao gênero. Além disso, o escopo escolhido pela diretora, roteirista e produtora Ana Rieper para a análise do fenômeno “brega” transita quase aleatoriamente entre canções que louvam o amor irrefreável e as litanias iracundas pós-traição, o que deixa entrever uma desorganização constitutiva elementar. Seria muito conveniente se esta aparente desorganização fosse um efeito proposital do filme, a fim de justificar o fato de que “toda pessoa apaixonada é ridícula”, conforme assevera o inspiradíssimo Odair José, mas, do jeito como foi apresentada, parece decorrência imprevista do excesso de confiança auto-elogiosa da produção.

Lançado e distribuído na esteira de um culto alternativo a canções que, na época em que foram lançadas, costumavam ser execradas pela crítica, “Vou Rifar Meu Coração” deixa-se deslumbrar pelos depoimentos colhidos e oferece pouco de efetivamente cinematográfico (no sentido formalmente concatenador do termo), sendo, porém, inequivocamente interessante por causa da riqueza popular contida nas histórias de vida coletadas. O plano móvel em que a câmera adentra uma residência humilde para, de repente, focalizar o concerto de Amado Batista que está sendo reproduzido na televisão de última geração ligada numa estante escancara a autoconfiança promocional do filme, francamente desenxabido nas imagens paisagísticas que intercalam os depoimentos. Estes, entretanto, são amplamente permeados por fascínio e identificação: da confissão de uma mulher que alega que, se fosse consumidora renitente de bebidas alcoólicas, só sairia dos bares aos trancos, em decorrência de sua adesão irrefreável aos desígnios da luxúria, à simpatia conformada dos casais que se conheceram em bordéis, passando pelas emocionadas (mas subaproveitadas) declarações do romântico e ex-viciado em cocaína Nelson Ned, a maioria das pessoas entrevistadas neste filme adquirem facilmente a compaixão da platéia, visto que suas reações – eventualmente permeadas por ingênuas contradições – aos truísmos amorosos confirmam mais uma vez um inteligente comentário de Odair José, que alega que “tanto um pedreiro quanto um médico sentem a mesma dor de amor: a diferença é que um vai chorar no cabaré e o outro na varanda de seu apartamento à beira-mar”.

 As duas laudatórias citações a Odair José deixam patente o quão rica foi a sua participação no filme, acrescentando importantíssimos detalhes discursivos, como, por exemplo, quando ele menciona a rejeição inicial por parte das gravadoras à sua intenção de gravar uma música sobre um homem que se apaixona por uma prostituta (“Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”) e as dificuldades taxonômicas na definição de “Música Popular Brasileira”, que encontram uma reverberação mais agressiva nas colocações de Agnaldo Timóteo, que, se incomodam inicialmente por causa da prepotência comparativa, logo conquistam a nossa adesão por causa de sua corajosa confissão de carência homossexual, tão digna de figurar entre as canções bregas quanto qualquer outra forma de amor. Nesse sentido, é muito bonita a seqüência em que dois homens são mostrados se beijando enquanto dançam sozinhos numa casa de espetáculos periférica, ao passo em que a entrevista que a diretora conduz com a travesti Marquise é ridiculamente contaminada por pleonasmos interrogativos. Mesclando, portanto, situações deveras oportunas (toda a seqüência envolvendo o prefeito de Monte Alegre que descreve, sem rodeios, os reveses associados à convivência paramarital com duas mulheres, em duas casas distintas, bem como a exibição de fotos dos casais interseccionados, ao som da antológica “Sonhos”, de Peninha) com momentos absolutamente oportunistas (a entrevista com Elvis Pires e as lamentavelmente parcas declarações do seminal Lindomar Castilho), “Vou Rifar Meu Coração” chama a atenção mais por seu conteúdo dissociável da forma fílmica que por sua elaboração artística propriamente dita.

Afinal de contas, neste quesito, ele é tão subsumido aos estratagemas comerciais quanto alguns dos estabelecimentos focalizados como lugares de convivência (e consumo) dos personagens reais. Noutro contexto apreciativo, isto não seria um problema, mas uma espécie de exortação metalingüística ao entrosamento do filme com seu objeto de estudo. A conjunção simplória de intervenções cotidianas (uma mulher caminhando pelas ruas de uma cidade interiorana e sendo acompanhada de perto por uma câmera, focalizações de pores-do-sol, a participação pouco expressiva do recém-falecido cantor Wando) só denota a pusilanimidade do filme, quando comparado, por exemplo, com a grandiosidade estética de “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, de Karim Aïnouz & Marcelo Gomes), para ficar apenas num exemplo imediato. Ana Rieper talvez até seja bem-intencionada e/ou apaixonada pelo gênero brega, mas, neste filme, o que se destaca sobremaneira é a ambição de capitalizar méritos antropológicos com esta investidura proto-analítica. Infelizmente, ela parece se conformar com a superficialidade erroneamente atrelada ao seu tema.

Wesley Pereira de Castro.