segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

AVATAR ('Avatar') EUA, 2009. Direção: James Cameron


O que justificaria que, num ímpeto de fúria reativa, considerássemos um dado filme como sendo o pior que já assistimos até então? A sujeição crescente às hipérboles qualitativas decorrentes da assimilação do maior número possível de filmes similares (leia-se: empapados de clichês cinematográficos) corriqueiramente lançados no circuito comercial de exibição? A percepção de que o discurso geral pretendido pelo roteiro vai de extremo encontro às pretensões comportamentais defendidas pelos personagens? A insipiência da megalomania tecnocrática enquanto supressora da verossimilhança genericamente convencional? Seja qual for o argumento interrogativo utilizado como pressuposto para defender o mais recente trabalho como diretor de James Cameron (após 12 anos de resguardo ficcional!) enquanto infinitesimamente interessante resvala na abominável malevolência do roteiro escrito pelo próprio cineasta, que pouco faz mais do que deturpar uma corruptela histórica do que teria sido os principais processos de colonização destrutiva realizados por nações que se acreditavam mais desenvolvidas do que outras.

Por mais que insistamos em acreditar – enquanto desencargo extremado de consciência benevolente – que este filme possua qualquer germe distante de pacifismo em seu enredo, a renitente construção de falsas dicotomias no roteiro estraçalha a confiança do espectador, que é imperdoavelmente dizimado por imagens, sons e vislumbres imaginativos que projetam uma verdadeira ode à belicosidade. Não é preciso nem se demorar muito em análises do enredo para se perceber que as oposições entre comportamentos pró-científicos X atividades militares pró-destrutivas ou entre humanos ambiciosos X Na’vi pacifistas são completamente falaciosas, dado que ambas são completamente interdependentes. Ou seja, os cientistas deslumbrados do filme só puderam prosseguir em seus estudos justamente porque consentiram de antemão em financiar o plano de exploração avassaladora dos minérios valiosos do planeta Pandora, da mesma forma que o pacifismo ultra-ecológico dos omaticayas é levado a cabo através da produção avassaladora de armas, que vão desde os arcos que tornam famosa a sua hostilidade defensiva até as metralhadoras que os aliados dos mesmos empunham na batalha final. Algo ainda mais chocante: nem mesmo a oposição entre Jake (Sam Worthington) e seu desabrido superior militar é realizada de maneira sincera, dado que a perspectiva roteirística abre espaço para que compartilhemos de vários pontos de vista caros somente a este segundo personagem, provando que mesmo que o enredo tome partido explícito pelo apaixonado paraplégico, esta tomada de partido é tão negativamente complexa quanto aquela que invalida as palavras de Neytiri (Zoë Saldana), quando crê que a entidade parateológica de seu planeta manter-se-á neutra diante da guerra travada entre invasores e nativos pela posse da região arbórea onde se concentra a cobiçada reserva do mineral unobtânio. Em suma: “Avatar” é um perigoso disseminador das mentiras ideológicas veladas por seu aparente mecanicismo moral.


Comparando-se este filme com obras tão diversas quanto “A Missão” (1986, de Roland Joffé), “O Último dos Moicanos” (1992, de Michael Mann), “Pocahontas – O Encontro de Dois Mundos” (1995, de Mike Gabriel & Eric Goldberg) ou “Apocalypto” (2006, de Mel Gibson), com as quais guarda similaridades tramáticas, percebemos facilmente o quanto ele é deletério em suas corruptelas invertidas das histórias reais de dizimação indígena, amalgamadas com propagandas inassimiláveis dos projetos invasivos dos Estados Unidos da América contra países supostamente terroristas, validando uma expressão comumente encontrada nos telejornais, mas que é impunemente utilizada por Jake Sully: “combater o terror com o terror”. Tal expressão, inclusive, deslegitima um princípio básico da fidedignidade ecológica, que é precisamente a fixação em métodos repelentes de violência, e não a subsunção cavalar a ela que é promulgada pelos personagens, ostensivamente pintados em cores de guerra.

Imaginar os competentes atores Wes Studi e CCH Pounder por debaixo da maquiagem dos omaticayas faz com que perguntemo-nos que estranhas motivações teriam levado-os a defenderem (no sentido indutivo do termo) personagens radicalmente opostos às causas raciais que eles sub-repticiamente defenderam ao longo de suas discretas carreiras. O mesmo pode ser dito sobre a exuberante Sigourney Weaver, impassível numa personagem ainda mais ranzinza do que aquela vivificada em “Alien - A Ressurreição” (1997, de Jean-Pierre Jeunet) e que comete um indecente ato de traição pessoal quando, ao ser resgatada por Jake depois que leva um tiro e carregada a um lugar sagrado dos Na’vi para tentar ser curada, imagina-se coletando amostras dos vegetais que a cercam. Percebemos neste instante que, por mais bem-intencionada que ela se mostre ao longo da projeção, ela compartilha dos mesmos ideais possessivos contra os quais está lutando, provando mais uma vez que sua conivência com os planos de dominação do pernicioso Parker Selfridge (Giovanni Ribisi) é mais intencional do que o roteiro demonstra. Sobre o protagonista Jake Sully, lamenta-se que seus atos heróicos precipitados, principalmente no que se refere à rápida adaptação ao seu ágil avatar ou à domesticação bem-sucedida de uma perigosa e gigantesca ave de rapina (que, de uma hora para outra, ele comemora como sendo “sua”), não concedam tempo para que ele deixe de ser o personagem antipático, frustrado e resmungão que exerce a função eventual de narrador, visto que sua repulsa inicial em participar de uma missão em que pouco mais é do que o substituto puramente genético do seu irmão gêmeo mais capacitado e recentemente morto – com quem é irritantemente comparado (e dimunuído) em mais de uma situação – é pronta e esquematicamente esquecida. Sobre os demais atores, resta lamentar que eles submetam-se crassamente a estereótipos tão pavorosos quanto inverossímeis.


Já que os gastos exacerbados que o diretor James Cameron inoculou neste filme funcionam como um fator de consideração sub-qualitativa para alguns exegetas, convém dizer que os aparatos técnicos são pouco destacáveis em relação à pletora sufocante de efeitos especiais que identificamos em qualquer pretenso arrasa-quarteirão anual. Além disso, a trilha sonora irritantemente triunfalista de James Horner prejudica ainda mais a esvaziada dramaticidade de seqüências como aquela em que os aliados de Tsu’tey (Laz Alonso) são mortalmente atingidos por seus inimigos robotizados. Quanto ao desempenho directivo de James Cameron, percebemos aqui uma verdadeira involução em relação aos trabalhos anteriores, visto que a propalada tridimensionalidade computadorizada deste filme fica muito aquém das inovações animadas engendradas pelos Estúdios Pixar, para ficar apenas num exemplo imediatista, sendo muitas das cenas protagonizadas pela tribo Na’vi inconvincentes, em especial no que tange às tentativas desesperadas do diretor de fotografia Mauro Fiore e da equipe responsável pela direção de arte em deslumbrar o espectador com relances de fauna e flora que apenas transpõem para um exotismo supostamente alienígena animais e vegetais de aparência misteriosa que podem ser encontrados no próprio planeta Terra, completamente dizimado no contexto do século XXII em que se passa o filme.


Voltando-se às desesperadas tentativas iniciais de se provar por meio de auto-interrogações que a ruindade atroz detectada em cada um dos fotogramas concernentes aos 166 minutos de duração deste filme ultrapassam a mera repulsa subjetiva e dizem respeito aos péssimos exemplos morais perpetrados e difundidos pelo roteiro intencionalmente escamoteado de James Cameron, nosso temor é sorrateiramente aumentado quando soubemos que o diretor já anunciou o intento de produzir continuações para esta saga. Tendo-se em mente que a trama atualiza defensivamente o genocídio pseudo-civilizatório e pondo-se em destaque que o título do filme é apologético à virtualidade das ações individuais, dado que Jake só assume consciência pacífico-ecológica quando está na pele do omaticaya que lhe serve de avatar, podemos perguntar objetivamente a que tipo de prática real este filme se filia.

Na menos pior e conivente das hipóteses, a uma variação oportunista de sentimentalidade, em que a possibilidade de redenção conscienciosa ofertada a Jake é veementemente negada aos demais militares com que temos a oportunidade de observar, visto que, pela lógica interna do enredo, quem age com más intenções deve morrer pelo bem de quem deseja sobreviver. Num dos processos iniciatórios de Jake enquanto omaticaya, ele é elogiado pela “morte limpa” que induz a um animal futuramente servido como alimento para os demais membros da tribo. Fica, portanto, a mensagem para quem realmente quiser levá-la à frente...

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

SINÉDOQUE, NOVA YORK ('Synecdoche, New York'). EUA, 2008. Direção: Charlie Kaufman.


No plano dicionarístico, sinédoque pode ser definida como sendo o “tropo que se funda na relação de compreensão e consiste no uso do todo pela parte”. Por motivos óbvios para quem conhece o estilo rocambolesco dos roteiros de Charlie Kaufman, tal definição (ou sequer o pronunciamento da figura de linguagem constante do título) não é diretamente manifesta no filme, apesar de sua aplicação ser demasiado prática e não obstante o conhecimento da mesma ser essencial para se compreender o processo que tanto aflige o amargurado protagonista.

Antes, porém, que mergulhemos nesta delirante trama cara à genialidade repetitiva (leia-se autoral) de Charlie Kaufman, convém investigar um dilema funcional estabelecido desde que o roteirista foi descoberto por Hollywood, no sentido de que sempre houve dúvidas no que diz respeito ao controle que ele supostamente exerceria sobre os diretores que se dispunham a transformar em imagens suas bizarras estórias. Tal dilema se manifesta por haver suspeitas de que os referidos diretores (no caso, Spike Jonze, Michel Gondry e, em grau menor, George Clooney) teriam seus talentos igualmente bizarros subsumidos às exigências roteirísticas de Charlie Kaufman, que comumente atuava na função adicional de produtor executivo, de maneira que a assunção do mesmo como realizador era uma previsão que não tardaria a ser posta em prática. Dito e feito: estreando como diretor, Charlie Kaufman exibe neste filme poucas diferenciações em relação aos estratagemas técnicos que os outros diretores citados adotaram em filmes precedentes, de maneira que se confirma a ditatorialidade positiva dos seus roteiros. E, como tal, “Sinédoque, Nova York” é um filme confuso e genial, repleto de imagens surreais e obsedantes, que vão desde a rápida focalização de um ato urinário misturado com sangue à constância na amostragem de uma casa continuamente incendiada. Em outras palavras: comparando-se este filme com obras igualmente geniais como “Quero Ser John Malkovich” (1999, de Spike Jonze) ou “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004, de Michel Gondry), poucas são as evoluções directivas perceptíveis, mas, ainda assim, o filme é digno de notoriedade avaliativa, justamente por causa da inventividade insuspeita de seu roteiro. E, por mais que este redunde em situações assumidas como tipicamente kaufmanianas (redundância muito coerente com a obsessão masturbacional de seus entrechos), os méritos do filme permanecem destacados, principalmente em virtude de sua acertada (e provocada) identificação com parcelas específicas da platéia, que transportam para a tela as crises inevitáveis da solidão humana contemporânea a que estão submetidos.


Oficialmente, a trama do filme tem início em 2005, quando o protagonista Caden Cotard (interpretado por Philip Seymour Hoffman) folheia um jornal e percebe a recorrência de ameaças patogênicas no mundo que o cerca, bem como aos demais integrantes de sua própria família, visto que sua filha de quatro anos reclama que está defecando verde. Quando sofre um acidente com a torneira da pia de seu banheiro, vai a diversos especialistas médicos e a indefinição acerca da doença de que estaria padecendo faz com que ele se torne escravo de uma hipocondria crescente. Paralelamente, sua esposa escultora (Catherine Keener) engendra por vias artísticas diversas da sua teatralidade e viaja para Alemanha com sua filha, enquanto Caden recebe um prêmio de incentivo cultural que o tornará obcecado em produzir uma peça ultra-realista, cujos ensaios auto-fungíveis estender-se-ão até o segundo final de sua vida. O que torna, entretanto, esta trama essencialmente estranha em algo avassaladoramente inusitado é a completa anarquia espaço-temporal a que o filme se filia, dado que não somente a cada vez que o personagem principal abre o jornal está escrita uma data diferente, como também a montagem do filme faz uso de inúmeros ‘faux raccords’, o que torna impossível uma localização espacial linear em relação aos ambientes percorridos pelos personagens, por sua vez duplicados ‘ad extremis’ através da compulsão do diretor teatral em fazer com que eles sejam reproduzidos por atores que serão vistos interpretando atores interpretando atores que interpretam pessoas – e assim sucessivamente.

Nesse sentido, o filme se torna um tanto enfadonho em sua meia-hora final de projeção, tamanha a quantidade de situações que se repetem dentro desta proposta intra-metalingüística do diretor/roteirista, mas o enfado que sentimos durante a projeção/exibição é também mais um dos elementos que capacitam o filme como sendo uma obra extremamente original dentro de seu desgaste repetitivo de uma fórmula enredística levada ao extremo por seu realizador. Afinal de contas, em meio à infinitude das situações representadas através do desejo do realizador teatral Caden em obter o efeito máximo de realismo em sua peça de ações simultâneas, há a construção de personagens riquíssimos em distúrbios psicológicos ocasionados pela crescente anomia moral da sociedade capitalista globalizada, que enxerga a mantença dos comportamentos solitários humanos como propulsora de consumo, seja de livros escapistas e/ou de auto-ajuda, seja de qualquer produto ou substância que permita ao seu comprador a ilusão de que está ocupado. Assim sendo, a percepção intradiegética de que um livro sobre anti-semitismo e degradação racistas escrito por uma criança de quatro anos foi transformado em filme de sucesso escancara a validade discursiva do ótimo roteiro aqui analisado, que não é somente autocomplacente em sua ode desistente/resistente à masturbação consoladora (vide a cena em que a segunda filha de Caden recebe um determinado valor em dinheiro para deixar de brincar com sua genitália), mas bastante ferino em sua admoestação contra a perfídia irrevogável do contexto sociocultural atual.


Considerando-se a abundância de defeitos (ou melhor, redundâncias) na feitura deste filme, ainda assim o mesmo permanece merecedor da alcunha quantitativa de “ótimo”, inclusive porque contém três das seqüências de humor negro mais geniais do cinema hollywoodiano contemporâneo: na primeira delas, bem rápida, a encantadora recepcionista Hazel (Samantha Morton) é mostrada aos prantos no interior de seu carro, depois que uma elipse brusca permite entrever que Caden recusou o convite feito por ela para fumarem maconha juntos, com evidente interesse sexual por parte dela; na segunda, quando viaja para a Alemanha, visando reencontrar esposa e filha que o abandonaram, Caden encontra o presente cor-de-rosa que enviara à pequena Olive (Sadie Goldstein, impressionante) jogado no chão de uma rua empanturrada de lixo. Uma doença oftalmológica, porém, o impede de chorar, não obstante sua evidente tristeza e, como tal, ele retira de seu bolso um recipiente providencial de lágrimas artificiais, para ser focalizado berrando de consternação no plano imediatamente seguinte; e, por fim, quando está prestes a morrer por causa de uma infecção decorrente das tatuagens floridas que a tornaram famosas como ‘stripper’ lésbica e iconcoclasta, Olive (agora interpretada por Robin Weigert) pede que seu pai comunique-se com ela utilizando fones de ouvido com tradução automática de alemão para inglês (e vice-versa), visto que ela não mais fala o idioma pátrio. Enquanto conversam, Olive reclama que seu pai nunca pediu perdão pela situação imaginária de “ser homossexual e ter um amante chamado Eric”, perdão este que, depois que pedido por Caden, não é concedido por Olive, que tomba fatalmente, enquanto caem as pétalas de suas imensas tatuagens.


Somente por conter estas três seqüências, “Sinédoque, Nova York” já se consolidaria como um dos filmes mais fabulosos lançados pelo cinema norte-americano típico na primeira década do século XXI, mas outras situações inusitadas e beirando o surrealismo são também dignas de nota, como o diário pessoal cuja escrita evolui à medida que os anos passam, mesmo que a sua escrevente esteja a milhares de quilômetros do espaço em que ele foi encontrado ou a causa da morte de Hazel, diagnosticada com câncer proveniente do excesso de ingestão de fumaça, atribuído mais aos cigarros que fumava antes de dormir do que à aparentemente interminável queimada diuturna de sua residência.


A trilha sonora extremamente melancólica de Jon Brion (que emula bastante os acordes entristecidos de Carter Burwell, músico periódico nos demais filmes roteirizados pro Charlie Kaufman), a montagem sincopada de Robert Frazen [que inclui planos mui significativos em rápidas aparições, conforme se constata na visão inicial, quase subconsciente do personagem Sammy (vivido por Tom Noonan), parado em frente à residência do protagonista], a homogeneidade de um elenco magnificamente escolhido a dedo (composto por, entre outros talentos, Hope Davis, Jennifer Jason Leigh, Samantha Morton, Emily Watson, Michelle Williams e Dianne Wiest) e a direção de fotografia proposital e acertadamente subserviente de Frederick Elmes (que, junto à direção de arte, ilumina a cidade com os tons obscuros e lunares pretendidos por um dos títulos pensados para a peça eternamente ensaiada de Caden) são elementos técnicos que dignificam ainda mais a opulência megalomaníaca – e, venhamos e convenhamos – (auto)justificada do filme, que, conforme dito, peca por estender ao limite da exaustão associativa as situações de metalinguagem no quartel final do enredo, quando as impossibilidades exibitórias da pretensiosa encenação de Caden tornam-se o foco da narrativa.

Felizmente, a opção emergencial por encenar o falecimento do protagonista através de instruções auriculares, depois que a cidade (ou o cenário?) é esvaziado em razão de uma hecatombe esdrúxula não perece forçosa e filia-se com emoção ao projeto inicial de fazer com que o protagonista – da mesma forma que qualquer espectador que com ele tenha se identificado, para além do automatismo da atuação do comumente ótimo Philip Seymour Hoffman – sucumba peremptoriamente aos males pós-modernos contra os quais não conseguiu lutar, justamente por estar impregnado por eles até o âmago (vide a sua adesão imitativa às pinturas microscópicas de sua esposa, para ficar num exemplo direto). Ao final, as (in)certezas dos personagens sobre a proximidade da morte e a inevitabilidade da solidão estão em acordo com um aforismo do poeta estadunidense Raplh Waldo Emerson, que apregoa que, ao contrário do que se crê, não é uma desgraça amar sem ser correspondido, pois “quem for realmente grande compreenderá que o verdadeiro amor não pode ser correspondido”. Com certeza, eis um assunto que Charlie Kaufman domina como ninguém!

Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

ATIVIDADE PARANORMAL ('Paranormal Activity') EUA, 2007. Direção: Oren Peli


Num artigo datado de 1947, o crítico marxista Georg Lukács averigua os conceitos de “arte livre” e “arte dirigida” e constata que, no interior do sistema de produção (cultural) capitalista, “a liberdade total de invenção torna-se, na realidade, uma servidão”. Segundo ele, a banalização das formas penetradas por um invencível prosaísmo ideológico leva os artistas a fecharem-se exclusivamente em suas subjetividades íntimas, de maneira que as pretensas invenções formais da atualidade desvinculam-se de conteúdos essencialmente novos, ao contrário do que é socialisticamente idealizado. Não obstante o referido texto abordar um contexto sociocultural e uma opinião política muito particulares, ele é válido para se abordar os fracassos estéticos da obra aqui analisada, sobrevalorizada enquanto filme bem-sucedido mais por causa das proporções econômicas dele oriundas do que necessariamente por seu caráter de novidade em relação à arte cinematográfica, visto que, com o passar dos anos, mais e mais filmes com aparência de vídeo caseiro hiper-realista são lançados no mercado com a intenção de encantar parcelas do público enfastiadas com a similaridade serial dos produtos hollywoodianos.

É por isso, portanto, que “Atividade Paranormal”, para além de possuir seus méritos discretos (quase todos atrelados à atuação espontânea do desconhecido Micah Sloat), vem sendo julgado de forma equivocada por seus admiradores e, como tal, injustamente maculado por preconceitos relacionados à sua inata legitimação modista. Afinal de contas, se deixarmos de lado por um instante os maneirismos videográficos do montador, roteirista e diretor Olen Peli, percebemos no entrecho de “Atividade Paranormal” um vácuo preenchido pela anunciação auto-provocada dos fenômenos contidos em seu título, estando muito aquém de obras congêneres, como a surpreendente reviravolta moral do clássico “Holocausto Canibal” (1980, de Ruggero Deodato) ou os arguciosos chistes técnicos do excelente “A Bruxa de Blair” (1999, de Daniel Myrick & Eduardo Sánchez). Em outras palavras: as tramas elaboradas que sustentavam o invencionismo formal das obras citadas não encontram eco em “Atividade Paranormal”, visto que, neste último filme, o que mais pode ser confundido com improviso é, no máximo, um eufemismo para precipitação epidérmica.


Investiguemos tal acusação no interior do próprio filme: nas primeiras cenas, Micah (Micah Sloat) testa o funcionamento de uma câmera recém-comprada para registrar fenômenos paranormais que estão a se manifestar na residência de sua histérica namorada Katie (Katie Featherston), por sua vez espantada com a opulência do equipamento conseguido por seu dedicado companheiro. Sabemos mais à frente que a captação profissional de imagens e sons engendrada por Micah equivale a ‘hobby’ ou aptidão secundária, visto que ele gasta seu tempo trabalhando na Bolsa de Valores de sua cidade, o que inflaciona as suspeitas acerca da edição intradiegética, que é obviamente diferenciada daquela posta em cena pelos estudantes de Cinema que protagonizam as duas extraordinárias obras anteriormente citadas e do amadorismo proposital de “Cloverfield – Monstro” (2008, de Matt Reeves), em que as pessoas que carregam a câmera-personagem são selecionadas fortuitamente. Assim sendo, os engodos hiper-realistas contidos nos letreiros inicial e final (em que a equipe técnica do filme agradece o apoio concedido pelo departamento de polícia local e pelas famílias dos atores-personagens e, ao final, revela que o crime cometido no clímax permanece não-resolvido até hoje) são negativamente problemáticos em função da inocuidade propulsiva do roteiro, já que, em muitas situações, os personagens forçam as aparições fantasmagóricas que afligem Katie, de maneira que as expectativas geradas por tais aparições soam enfadonhas (e, em alguns casos, até risíveis) para o espectador, felizmente confortado pela credibilidade naturalista do ator Micah Sloat, que, numa ampliação literal, carrega o filme nas costas, tal qual faz com a imensa câmera que hesita em largar até mesmo em momentos de extrema tensão e erotismo.
Somos, então, levados a inquirir sobre o quanto a participação dos atores/cúmplices desse tipo de projeto interferem na efetividade dramática do mesmo, posto que, nos três exemplos genéricos anteriormente citados, a onipresença da câmera era justificada por aspectos funcionais da construção do roteiro e dos personagens, e não forçosamente adotada, conforme acontece em “Atividade Paranormal”.

Se, num exercício oportunista de imaginação comparativa, transpuséssemos as bases enredísticas dos filmes citados para um contexto tradicional de abordagem narrativa, as mesmas permaneceriam críveis, dado que cada uma delas possui expressão conteudística sobressalente ao formato sustentacular de exibição, expressões estas que vão desde o impacto desmoralizador de “Holocausto Canibal” até o espanto catastrófico de “Cloverfield – Monstro”, passando pelo revisionismo documental de “A Bruxa de Blair”. Comparando “Atividade Paranormal” com seus modelos tramáticos mais próximos [“O Enigma do Mal” (1981, de Sidney J. Furie) e “Poltergeist, o Fenômeno” (1982, de Tobe Hooper)], o mesmo demonstra-se incapaz de sustentar, noutro contexto hipotético de abordagem factual, tanto o horror gerador de impotência do primeiro filme quanto o estudo causal de costumes familiares de época aplicado no segundo, sendo, ao invés disso, preenchido por expectativas e provocações (vide a cena em que um tabuleiro de ‘Ouija’ incendeia-se espontaneamente) quase irritantes em sua insistência. Por isso, deve ser destacado e elogiado o ótimo desempenho actancial de Micah Sloat, que acerta ao dotar as passagens transitivas do filme com um senso de humor contagiante, efetivo tanto na imaturidade demonstrada à beira da piscina, quando ele realiza brincadeiras vulgares com seu dedo médio, quanto no hilário momento em que ele se vale de uma piada interrogativa do grupo britânico Monty Python para “entrar em contato” com a entidade que apavora sua namorada. Katie Featherston, por sua vez, é prejudicada pela histeria previsível de sua personagem, que gradualmente se torna mais e mais clicherosa, chegando ao cúmulo de atenuar o pavor imediato que advém da atordoante cena final, quando ela é mostrada com olhar tipicamente desnorteado e um penteado hipercodificado sobre a sua face. Entretanto, no plano da sugestão fisiológica, esta cena final é bastante fecunda ao amedrontar o espectador, que, com certeza, sentir-se-á perseguido por associações subconscientes de retroalimentação do medo após a sessão do filme. Ou seja: mesmo que o filme exiba mais defeitos que virtudes, ele é bastante exitoso na tarefa inicialmente proposta de assustar a platéia.


Feitas todas estas considerações, e pondo-se em evidência o fato de que o filme é realmente apavorante, “Atividade Paranormal” talvez se torne uma experiência fílmica mais agradável (no plano estético) quando revisto, no sentido de que, assim, os efeitos vãos que provêm da exacerbada criação de expectativas convertem-se num componente analítico do que se é pretendido ao se lançarem anualmente inúmeras obras como esta, em que o estupor imediato do público é sinonimizado como reação hipodérmica prevista (e aguardada) por seus produtores e distribuidores capitalistas. Nesta revisão, portanto, os caracteres do relacionamento amoroso entre Micah e Katie podem ser beneficiados num cotejo com “Mar Aberto” (2003, de Chris Kentis), por exemplo, em que o comportamento para-matrimonial numa situação de horror inelutável assume contornos paradigmáticos mui dignos no que se refere às características psicológicas dos personagens.

Nesse sentido, as ocasiões mais interessantes de “Atividade Paranormal”, como o momento em que o casal protagonista se abraça no chão depois que sobrevivem a um ataque ectoplasmático ou sempre que eles são filmados dormindo, são dotadas de um valor transcendente às suas limitações formais natas, vendidas como inovações. E é aqui que uma pertinente citação lukacsiana merece espaço: “o perigo de todo utopismo é o de ficar muito aquém daquilo que, com toda probabilidade, pode ser efetivamente realizado no caso do aproveitamento flexível das possibilidades reais”. Eis um caso!

Wesley Pereira de Castro.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

TÁ CHOVENDO HAMBÚRGUER (2009). Dir.: Phil Lord & Chris Miller


Não obstante o cinema hollywoodiano enfrentar crises eventuais de popularidade e/ou de foco temático e ostensivas transformações, reinvenções e emulações técnico-formais, a manutenção do ciclo familiar – tendo na relação entre pai e filho o seu ponto forte – continua sendo o valor ideológico que mais impulsiona a produção de peças cinematográficas que variam em torno da mesma fórmula narrativa: alguém é incompreendido e escorraçado pelo círculo social que o rodeia, tem a chance de se redimir, torna-se bastante orgulhoso neste processo, arrepende-se e consegue restituir a ordem anteriormente estabelecida, com a diferença de que agora é aceito pela mesma sociedade que o rejeitou antes, valendo-se para tal justamente dos estratagemas que faziam com que ele fosse rejeitado.

Assim acontece em dramas, comédias, faroestes e em qualquer outro gênero fílmico que obedeça às convenções instituídas pelos estúdios financiadores. Tanto é que, com base nesta percepção, estabeleceu-se o seguinte esquema para o acompanhamento do cinema norte-americano geral: situação – ação – situação modificada. Ou seja, os mantenedores deste esquema comungam da idéia de que os problemas conjunturais da sociedade podem ser resolvidos através da ação de um indivíduo em particular, o que explica porque seus admiradores respeitam tão fervorosamente o sistema representativo de governo, em que as razões da maioria são costumeiramente associadas à satisfação obediente. O filme aqui comentado pouco adiciona aos fatores constitutivos do supracitado esquema, sendo previsível, consentidamente inverossímil e, o pior de tudo, atrelado às piores mazelas do ‘status quo’ familiar. Fica a pergunta: isto impede que ele seja muito divertido e assistível?

Para o espanto desesperançoso dos amantes de cinema, a resposta à pergunta acima é não! O filme possui momentos bastante inspirados de diversão e, conforme pôde se perceber a partir de amostras experimentais de receptividade espectatorial, funciona muito bem em seus intentos inoculadores de devoção familiar, não sendo raro que as crianças que assistiram a este filme acompanhadas por seus pais saiam da sessão dizendo que os ama, tal qual fazia o protagonista em relação ao seu próprio pai e à mulher que ama e que, dentro em breve e no plano extra-campo, possibilitará que ele seja também um pai de família merecedor das mesmas declarações de amor. Entretanto, a satisfação que o roteiro deste filme consegue causar tem muito mais a ver com a exigüidade qualitativa de produções similares – concomitante à sua impressionante impregnação quantitativa – do que necessariamente com suas virtudes roteirísticas internas, a cargo dos próprios diretores. Ignorando-se a já mencionada inverossimilhança situacional, que é amparada pelas convenções do gênero animado, o roteiro de “Tá Chovendo Hambúrguer” é uma execrável ode ao desperdício, visto que, por detrás de seu discurso sobre as dificuldades alimentícias dos moradores da cidade onde se passa a trama, reside um poderoso avatar capitalista em que as leis de mercado são rigorosamente respeitadas, de maneira que a disposição rígida do pai do protagonista em manter-se confinado à sua loja de sardinhas – não importa o que esteja acontecendo do lado de fora ao longo de vários anos – cumpre uma obrigação espúria da segmentação econômica que costuma funcionar como antonomásia indébita de uma região. Quando se pensa no que é feito com os restos de comida que ficam amontoados pelo chão depois que as chuvas gastronômicas passam, (são atirados aleatoriamente ao longe, visto que, nas palavras do vilanesco prefeito, o que está longe dos olhos, está também longe da barriga”), a referida ode assume aspecto de catástrofe mundial, aspecto este que é disfarçado quando o filme brinca com os clichês de filmes sobre terremotos, furações e tempestades, relacionando tudo a macarrão, pizza, frangos assados e, como diz o título original, almôndegas.


Insistindo-se em buscar uma virtude que seja originalmente cara a este filme, temos na reiteração algorítmica de todas as seqüências em que o jovem cientista Flint Lockwood resolve construir, consertar ou simplesmente pôr em funcionamento as suas máquinas e invenções um elemento bastante positivo, que pode passar despercebido para boa parte de sua platéia-alvo, mas, ainda assim, é um poderoso elogio ao uso da prudência na resolução de conflitos. Afinal de contas, Flint faz questão de mencionar em voz alta o verbo correspondente a cada ação que efetua, configurando um esquema metalingüístico na estrutura mesma do enredo, que, dessa forma, é ao menos sincero em sua pretensão mantenedora. A cena em que a repórter Sam Sparks, já vestida como a ‘nerd’ de rabo-de-cavalo que fora na adolescência, diz ao cientista Flint que ele não precisa fingir que é alérgico às mesmas substâncias que ela para despertar sua atenção namoratória é igualmente merecedora de panegíricos, pois tangencialmente põe em evidência a mesma necessidade de manter-se sincero diante de uma meta a ser cumprida.

Assim sendo, rememorando-se retrospectivamente as imagens dos primeiros diálogos românticos do casal, revestem-se de nova beleza os olhares encantados dele e dela quando percebem que têm em comum não somente o desejo de serem aceitos pela sociedade e as ambições científicas, como também um linguajar erudito e minucioso em suas definições físico-químicas elementares.


O saldo geral de “Tá Chovendo Hambúrguer”, portanto, escapa da mesmice a que ele estaria confinado em virtude de suas obrigações mercadológicas justamente pela assunção impressionante dos mecanismos justificadores destas mesmas obrigações, que chegam ao cúmulo da obviedade em todas aquelas seqüências que explicam a subsunção inicial da cidade de Swallow Falls (traduzida como Boca da Maré, no Brasil) ao comércio de sardinhas. Se, nalguns momentos, irritamo-nos deveras com a falibilidade reclamante dos argumentos do protagonista no que diz respeito à alimentação parca e repetitiva de seus vizinhos, noutros, ficamos satisfeitos ao perceber a construção progressivamente relevante do personagem Bebê Brent, que, inicialmente condenado a beneficiar-se vitaliciamente de sua fama enquanto modelo infantil, logo se percebe como capaz de trabalhar em equipe e assim contribuir para a megalômana tarefa de salvar do mundo. E esta é a mensagem que fica, até que sejam lançadas novas miríades de desenhos animados de longa-metragem incorrentes na forçada redenção entre pai e filho e obliterem as preciosas dicas sobre entendimento do sistema capitalista que este filme equivocado sub-repticiamente revela – e que, pensando bem, ao fazê-lo, escamoteia.

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

BESOURO (2009). Direção: João Daniel Tikhomiroff.


“Não posso porque sou menino. Não posso porque sou pobre. Não posso porque sou negro”: com essas três reclamações inter-relacionadas, somos apresentados ao personagem principal, ainda criança, contemplando o coleóptero que lhe servirá de apelido. Diante dele, seu mestre Alípio (Macalé) adverte-o que o mesmo crescerá e talvez deixe de ser pobre, mas será negro por toda a vida. Portanto, deveria ele se orgulhar de tal condição racial. A narração de Milton Gonçalves, sobreposta ao mesmo texto escrito, explica que a trama se passa no Recôncavo Baiano, em 1924. A prática de capoeira é até então proibida pelos coronéis da região e o personagem-título agora é adulto, vaidoso e irresponsável. Quando Mestre Atílio é morto numa emboscada, Besouro é culpado por desleixo em suas funções protetorais e, disposto a corrigir seus erros, faz um pacto de reverência com a entidade Exu (Sérgio Laurentino) e torna-se um mítico defensor dos negros que “libertados há quase 40 anos, ainda são tratados como escravos”.

Esta é, basicamente, a sinopse do filme aqui resenhado e, comungada a deslumbrantes imagens publicitárias fotografadas por Enrique Chediak, enchem de interesse o olhar do espectador. Infelizmente, porém, os pretensiosos e inúteis virtuosismos de câmera e montagem comandados pelo diretor João Daniel Tikhomiroff, o roteiro omisso dele mesmo e de Patrícia Andrade e a péssima interpretação do protagonista Aílton Carmo chafurdam o ótimo projeto que este filme poderia render. Ao invés de um saudável pontapé inicial no subgênero de artes marciais no Brasil, “Besouro” assemelha-se a um piloto de seriado televisivo concluído às pressas e ignorando as contradições ideológicas de seu entrecho. Sabendo-se que a Globo Filmes está envolvida na produção, a intenção talvez tenha sido essa mesma!

Ainda que as propaladas coreografias de lutas ensaiadas pelo chinês Huen Chiu-Ku justifiquem o chamariz com que é tratado, a edição frenética de Gustavo Giani e o excesso de câmeras tremidas e/ou subjetivas diluem o impacto visual do filme, que se assemelha bastante a um arremedo de videoclipe proto-surrealista. Poucas são as cenas envolvendo o personagem principal que não estejam envoltas numa confusão espaço-temporal entre passado, presente e fantasia sobrenatural. A exacerbação divulgadora dos caracteres enciclopédicos do candomblé ‘for export’ que permeia o filme amalgama-se a um discurso alegadamente revoltoso em que os germes seriam apenas plantados na luta contra a exploração (visto que, como diz o avantesma de Mestre Alípio, “a morte não existe. A morte é apenas viver debaixo da bota alheia”), mas os personagens do filme são sintomaticamente perseguidos por aquela condição que o educador Paulo Freire constatou nos povos dominados da América latina: a tendência a serem “hospedeiros” do poder dominante e, dessa forma, levarem a cabo os seus intentos progressivos de dominação, mesmo quando parecem se revoltar contra eles. Nesse sentido, a composição do personagem Quero-Quero (vivido pelo erotógeno ator Anderson Santos de Jesus, que lega a melhor interpretação do elenco) denuncia a obliteração conscienciosa que se instala quando “um afago faz esquecer a chibata anteriormente recebida”.

A subsunção crescente deste personagem às ordens veladas do coronel Venâncio (Flávio Rocha, correto), quando este parece empolgado durante suas apresentações de capoeira, é o corolário definitivo do tipo de comportamento obediente que mascara a violência das novas configurações escravagistas. O problema é que essa mesma composição personalística é instaurada por um capricho maniqueísta do roteiro: Quero-Quero precisa agir de forma desagradável apenas para que sua namorada de infância Dinorá (Jessica Barbosa) termine o romance com ele e se entregue ao desenxabido Besouro. Em outras palavras, não há um mínimo de sinceridade nas transições comportamentais dos personagens, seja no que diz respeito à malevolência sub-reptícia de Quero-Quero, seja no que diz respeito à redenção incredível de Besouro.

Outro aspecto em que tal falta de sinceridade composicional interfere de forma gritante é a trilha sonora: se, no plano intradiegético, a percussividade somática dos berimbaus encanta figurantes e espectadores, no plano extradiegético, o ofuscamento de Gilberto Gil, Nação Zumbi e Rica Amabis em meio a explosões eletrônicas e odes sintetizadas demonstram a escandalosa tendência do filme à diluição mercadológica: tudo nele é minuciosamente planejado para ser vendido, desde a sensualidade forçada das cenas em que Dinorá e Besouro dançam e fazem amor até a paralisia imagética da cena final, quando fica subentendido que o filho de Besouro continuará a saga vingativa contra os coronéis baianos que mataram seu pai.

A construção humorística do vilão Noca de Antônia (Irandhir Santos) é particularmente ridícula, tornando ainda mais grave o maniqueísmo contido no roteiro, que, para além de suas metonímias históricas, injeta uma puerilidade disfuncional na condução da trama, que demanda muito tempo nalgumas atividades (vide os ritos de passagem espiritual a que Besouro é submetido) e despreza a importância de outras (as estranhas relações empregatícias entre a mãe de Dinorá e seu patrão, por exemplo). Ao final, sobressaem-se as incômodas impressões de que o filme transcorre de forma muito rápida e intermitente, de que o personagem principal aparece muito pouco, considerando a sua exaltação mitológica, e de que, com certeza, ele inaugurará uma franquia exploradora dos arquétipos raciais do Brasil.

Comparando-se o filme com os correspondentes genéricos de Hong Kong que tanto emula, “Besouro” é débil em pelo menos duas grandes constatações: a falta de apoio hipercodificado no que diz respeito a produções nacionais similares, o que faz com que ele mereça ser elogiado por seu pioneirismo proposicional, mesmo que as ambições a ele relacionadas sejam deveras perniciosas; e a adoção espalhafatosa do imaginário religioso, que, para além de sua importância enquanto congregadora de pessoas, é apresentado aqui de forma pirotécnica e oportunista, não havendo espaço suficiente para as reflexões conscienciosas dos personagens, em especial, do antipático protagonista. Sendo assim, também merecem elogios alguns integrantes do elenco secundário (já mencionados) e a iniciativa geral no que diz respeito ao resgate de raízes da cultura negra brasileira, elevadas ao patamar de “patrimônio cultural da Nação”, conforme anuncia um letreiro final.

O diretor João Daniel Tikhomiroff, por outro lado, assume-se como parasitário em seu tecnicismo deslumbrante e incoeso, utilizando o colorido das imagens e a voz privilegiada do músico pernambucano Jorge du Peixe para obscurecer as mesmas raízes culturais que o enredo do filme fragilmente tenta resgatar...

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A ERVA DO RATO (2008). Direção: Julio Bressane.


A agudeza de visão, o rigor estético e o sarcasmo metalingüístico dos filmes de Julio Bressane são características que permitem livre associação entre seu fulgor criativo e o ‘corpus’ literário de Machado de Assis. Não é inesperado, portanto, que o autor de cinema aqui citado recorresse mais de uma vez ao escritor fluminense. Se em “Brás Cubas” (1985), ao invés de uma transcrição linear da narrativa do romance, o que foi levado às telas foi sua própria reflexão sobre o que vem a ser um personagem (aliado a lances insuspeitos de genialidade adaptativa, como oferecer um microfone a um crânio na primeira cena do filme), em “A Erva do Rato”, o diretor/autor amalgama contos diversos do escritor nesta trama excessivamente dialogística, que traz à tona suas obsessões estilísticas reconhecíveis. Na primeira cena do filme mais recente, por exemplo, ondas que quebram na praia são contempladas por alguns instantes para que, em seguida e no mesmo plano, focalizem um cemitério onde encontramos o casal protagonista, interpretado por Alessandra Negrini e Selton Mello. Dela, sabemos que esteve presa por roubo e que seus pais morreram. Dele, ouvimos que saber o nome das pessoas é o suficiente para que elas vivam juntas. Apesar de não conhecermos os nomes destes personagens, eles consentem que devem morar juntos. Lêem e escrevem um ao lado do outro, conversam sobre venenos, posam para fotografias, até que a presença freqüentemente incômoda de um murídeo na residência deles desestabilizará a alegada felicidade do casal. Ao final, o homem estará reproduzindo com um esqueleto as mesmas ações que compartilhava com sua amante. Na trilha sonora, um tango canta que somente uma pessoa encanta o eu-lírico da canção. A casa é mostrada vazia, de fora, depois que percebemos que a mesma água que fomenta os oceanos é aquela que move os córregos: eis o universo romântico de Julio Bressane!

Mais uma vez recorrendo à consulta roteirística e iconográfica de sua esposa Rosa Dias, Julio Bressane conta também com a colaboração recorrente do fotógrafo Walter Carvalho, que o ajuda a engendrar verdadeiros quadros cinematográficos que, conforme a sua propalada erudição pictórica faz perceber, remetem a obras mui elogiadas da arte mundial. O enquadramento em que percebemos numa parede a sombra do “espectador” de papel com que o personagem masculino presenteia a mulher é, nesse sentido, um dos mais belos do filme, metonimizando a falibilidade da colaboração entre a beldade fotografada e o obsessivo homem. Enquanto este último manipula afoitamente a sua câmera, permanece indiferente ao que está se passando ao seu redor, salvo por delirantes ameaças persecutórias referentes ao roedor que ele intenta matar com a distribuição de inúmeras ratoeiras pelo chão de sua casa. Em outras palavras: se pudéssemos reduzir um filme de Julio Bressane ao seu entrecho, nesta obra poderíamos discorrer sobre o modo como o ciúme arregimenta o egoísmo disfarçado de permissividade que tanto fecunda os atos alegadamente passionais de alguns seres humanos. Mas o filme é bem mais do que isso, bem mais do que isso...

Trabalhando novamente com a atriz com carreira consolidada na televisão que protagonizara seu filme precedente [“Cleópatra” (2007)], Julio Bressane extrai de Alessandra Negrini uma interpretação que prima pelo estranhamento. Ao invés de deixar entrever uma índole personalística (seja ela positiva ou negativa), a personagem feminina deste filme é constituída por lacunas entre diálogos, que são, por si mesmos, incompletos. Se num momento vemo-la redigindo comentários de exploradores portugueses sobre a flora peçonhenta do Brasil quinhentista, noutro momento, vemo-la descrevendo o formato do gato ideal para perseguir o rato que assombra seu companheiro masculino: “um gato de rua, sei lá, um gato caçador. Dizem que, lá na Pérsia, existe um gato com o rabo deste tamanho...!”. Selton Mello, por sua vez, contém o histrionismo com que é lembrado em premiadas interpretações e limita-se competentemente a recriar o mecanicismo ativo exigido pelo personagem, mecanicismo este que, num fascinante exercício de revelação, tem sua composição directiva apresentada durante os créditos finais, quando vemos o diretor Julio Bressane instruir os movimentos dos atores, que reagem como se estivessem mergulhados no transe que reconhecemos nos personagens.

Reconvocando a acertada e intencional comparação com o escritor Machado de Assis, Julio Bressane demonstra por que é o maior esteta cinematográfico brasileiro em atividade, realizando uma obra que possui imagens belíssimas que, por vezes, parecem existir isoladas do roteiro (vide o plano subjetivo que acompanha o percurso da ratoeira carregada pelo protagonista), mas que estão minuciosamente carregadas de moral crítica, técnica e política. Sem precisar incorrer em qualquer adesão de unanimidade adjetiva, para além dos elogios merecidos a toda a equipe técnica, e percebendo-se uma notável continuidade entre este filme e as biografias/hagiografias anteriores do cineasta, fica aqui uma certeza: Julio Bressane é um gênio que parece estar nos hipnotizando a cada segundo, mas que, em verdade, alavanca o aclaramento intelectual do público que se dispõe a embrenhar por suas imagens e sons carregados de estesia.

Wesley Pereira de Castro.

domingo, 23 de agosto de 2009

O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN" (2005). Direção: Ang Lee


Rastrear tematicamente a trajetória fílmica de Ang Lee, mesmo que seja de maneira superficial, é uma atividade que permite ao espectador perceber que seus trabalhos versam sempre sobre o mesmo assunto: o questionamento da autoridade patriarcal como condição indispensável para a realização emocional dos indivíduos. Tanto em suas obras mais apuradas [“Comer, Beber, Viver” (1994), “Razão e Sensibilidade” (1995), “O Tigre e o Dragão” (2000)] quanto em suas produções carentes de maior inspiração [“Tempestade de Gelo” (1997), “Hulk” (2003)], o que se detecta é um mesmo conflito existente entre as posturas socialmente externas de um pai de família e a emancipação individual (seja criminal ou filantrópica) de seus filhos. Em sua mais recente produção, o enfoque é o mesmo – o impacto de admoestações familiares, transmitidas por vieses masculinos de geração em geração, na vida de determinados indivíduos –, com o diferencial particularmente relevante de que os dois protagonistas envolvem-se num insuspeito e cativante romance homossexual. Sendo assim, é importante averiguar o quanto a descrição realizada por Ennis Del Mar (Heath Ledger) acerca da homofobia ativa de seu pai interferiu drasticamente na sua recorrentíssima taciturnidade comportamental e o quanto o silêncio opressivo do pai de Jack Twist (Peter McRobbie) acerca das posturas homoeróticas do filho (Jake Gyllenhaal) perturbou terminantemente a personalidade sexual deste último, de maneira que ele ostenta uma perene e característica insatisfação erotógena nos contatos que trava com diversas pessoas ao longo de sua trajetória de vida. Interessantemente, tal perturbação sexual descamba na poderosa competição de influências educativas que ele manifesta em relação a seu sogro (Graham Beckel) frente ao filho desobediente e afetado, competição esta que equivale a um dos poucos momentos em que Jack abandona a passividade ferrenha que estigmatiza os seus relacionamentos diferenciados com Ennis Del Mar e com sua esposa Lureen (Anne Hathaway), que, não à toa, comemora a súbita explosão de raiva de seu marido.

Admiravelmente fotografado e musicado pelos talentos respectivos de Rodrigo Prieto e Gustavo Santaolalla, “O Segredo de Brokeback Mountain” filia-se com destreza a um padrão academicista de cinema, que, por incrível e lamentável que possa parecer, estava em falta em Hollywood nos anos recentes, não obstante tal academicismo ser justamente um dos componentes basilares do clássico cinema hollywoodiano. No que diz respeito ao tipo de organização fílmica elemental adotada por Ang Lee, tal opção pelo academicismo exacerbado está diretamente vinculada à ambição demonstrada em filmes anteriores pela investigação minuciosa de traços peculiares da configuração familiar norte-americana, sede do tipo de [decadência tácita da] autoridade paterna que o cineasta tanto anseia por criticar (ou legitimar, segundo alguns de seus detratores mais sensatos). Sendo assim, o extraordinário bucolismo que emula dos lindíssimos cenários naturais fotografados por Rodrigo Prieto pode assumir, na ótima estrutura enredística de Larry McMurtry e Diana Ossana (por sua vez, adaptada de uma estória escrita por Annie Proulx), uma função de retorno utópico ao ambiente em que os protagonistas mais se sentiam amparados um pelo outro, ainda que eventualmente tal amparo fosse gerado pela proximidade extenuante de situações de perigo físico ou de pauperismo monetário. Inclusive, seguindo essa mesma linha de análise, a fetichização geográfica contida no desejo póstumo de Jack Twist – ter suas cinzas espalhadas no local onde vivera belos momentos de amor com Ennis Del Mar – serve como uma oportunidade bem-aproveitada para que o rústico fazendeiro John Twist possa sobrepor sua autoridade paterna sobre a prestimosidade namoratória de Ennis, não permitindo a realização do desejo explicitado em vida por seu filho através da conveniente (e também verídica) reclamação de que ele se achava muito especial para ser enterrado no túmulo da família. Não seria esta reclamação um corolário tardio do desconforto existencial que motivava Jack a assumir posicionamentos passivos em suas experiências sexuais, bem como enxergar na disputa pela atenção do filho com o sogro um instante fugidio de superioridade legisladora?


Mesmo que o grande chamariz publicitário desta obra esteja na espontaneidade do relacionamento homossexual que se desenvolve entre dois vaqueiros troncudos, pode-se argüir que esse tipo de sentimento não passa de uma evolução natural do tipo forçoso de companheirismo que cinge os habitantes das inóspitas localidades do Oeste americano. Hipertrofiando o grau de respeito mútuo que alguns tendenciosos psicanalíticos prognosticaram como homossexualismo recalcado em filmes consagradamente viris como “Rio Vermelho” (1948, de Howard Hawks) e “Rastros de Ódio” (1956, de John Ford), “O Segredo de Brokeback Mountain” na verdade filia-se a uma tradição recente de emotividade no proletariado rural que já fora anteriormente engendrada em filmes muito bons como “Terra de Paixões” (1998, de Stephen Frears) e “Espírito Selvagem” (2000, de Billy Bob Thornton). Ou seja, é perfeitamente natural que, mais cedo ou mais tarde, um roteiro tradicionalista detivesse suas preocupações sentimentais no envolvimento romântico entre dois homens, não sendo tampouco surpreendente que, num futuro próximo, algum diretor mais habilidoso e ousado se disponha a abordar o relacionamento de dependência sobressalente que pode se estabelecer entre um vaqueiro e uma égua, por exemplo. Entretanto, o que mais chama atenção na abordagem sincera do filme em relação ao assunto é o modo como os protagonistas mantêm-se alheios às radicais mudanças comportamentais que estavam se efetivando pelo restante dos Estados Unidos da América na época em que se inicia a trama do filme (década de 1960), alheamento justificado este que dota de ainda mais crueza o relato amedrontado que Ennis Del Mar faz acerca do momento traumático infantil em que presenciara a castração fatal de um rancheiro por causa da vivência paramarital que este compartilhava em relação a alguém do mesmo sexo. Dessa forma, independentemente de a morte de Jack Twist ter-se desenrolado ou não da maneira como Ennis imagina (um espancamento homofóbico), uma das principais conclusões moralmente comodistas a que o filme pode chegar é que talvez não valha tanto a pena assim pôr em prática sentimentos amorosos que ofendam a sociedade ao nosso redor, conclusão esta que deve ser urgentemente refutada, sob pena de macular o brilhantismo de muitas outras situações contidas neste belíssimo filme, como, por exemplo, o modo terno com que Ennis Del Mar cuida da sua camisa manchada de sangue que fora encontrada no armário de Jack Twist.


Obviamente, o filme merece valorização egrégia pelo modo como retrata o homossexualismo, concedendo ao tema uma impressão de naturalidade que, pertencendo ao modelo convencional a que se vincula, favorece bastante a luta de militantes pederásticos que já perceberam que a reivindicação dos direitos homossexuais com base na troca espúria de acusações sexualistas não passa de uma armadilha infundada. Afinal de contas, havendo os estímulos societais adequados, o indivíduo pode entregar-se sem maiores problemas aos instintos primários de bissexualismo absoluto que foram mencionados na abordagem pioneira de Sigmund Freud sobre a sexualidade humana. Além disso, tal qual foi predito por Aristófanes, um dos interlocutores de uma famosa obra de Platão sobre o amor, a fim de “curar” a sua natureza humana, o homem pode casualmente envolver-se com outro homem, de modo que possa haver saciedade erótica em seu convívio para, em seguida, poder “repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida”. É justamente sob essa perspectiva que as tendências uranistas se desenvolvem no melancólico Ennis Del Mar, enquanto que, no caso de Jack Twist, o que se percebe é um condicionamento relativamente pervertido que advém das frustrações familiares descritas alhures. Portanto, convém ressaltar a percepção acertada por parte de alguns críticos de cinema, que acharam previsível que a única mulher com que Jack se envolve durante o filme seja alguém que, desde o primeiro momento, assume completamente as rédeas (principalmente sexuais) do relacionamento, configurando um paliativo sublimatório para Jack no que diz respeito à sua passividade vitalícia, relacionada de um jeito bastante oportuno à sua vida prototipicamente mimada.

No intuito de fazer justiça aos melhores atributos fílmicos desta produção, cabe aqui um elogio extensivo (e, ainda assim, ínfimo) à sublime interpretação de Heath Ledger como Ennis Del Mar, num contexto em que cada um dos aspectos relacionados a tal personificação (caracteres físicos do ator, traços psicológicos do personagem e interpretação propriamente dita) mereça um breve comentário. No que diz respeito à interpretação actancial de Heath Ledger em seu sentido mais lato, é mister concordar racionalmente com os encômios unânimes que muitos exegetas do filme estão dedicando a seu trabalho, no sentido de que ele transmite com dramaticidade singular toda a angústia e determinismo solipsista que perpassa a existência terrena de Ennis Del Mar. No que se refere ao perfeito delineamento dos traços psicológicos e de caráter do personagem, cabe elogiar o modo acertado com que a equipe técnica do filme diegetiza suas inclinações subjetivas, de maneira que, além de o filme ser claramente narrado sob o seu melancólico ponto de vista, somos presenteados com antológicos momentos de cinema, como: a seqüência em que a suposta obrigação masculina de Ennis para gerar filhos serve como pretexto para a dissolução de um casamento prejudicado por problemas de atenção que não eram satisfatoriamente discutidos pela submissa Alma (Michelle Williams, deveras expressiva); a cena em que, num jantar de Ação de Graças, Ennis discute violentamente com sua ex-exposa, o que causa estupor paralisante no novo marido de Alma, desespero exo-sentimentalista nas filhas de Ennis e uma briga gratuita com um motorista iracundo; os bem-executados maneirismos fotográficos de Rodrigo Prieto, que é muito feliz ao focalizar Ennis através do espelho retrovisor circular do veículo de Jack (metonimizando brilhantemente a seletividade andromaníaca deste último) e ao mostrar Ennis em ‘contra-plongée’ frente a fogos de artifício após ter discutido com dois motoqueiros que ofenderam sua mulher (metaforizando mais brilhantemente ainda a explosiva condição interior da personalidade do protagonista); e a adequação, durante os créditos finais, de duas canções – “He Was a Friend of Mine” (interpretada por Willie Nelson) e “The Maker Makes” (cantada por Rufus Wainwright) – que respondem pela amalgamação idealista entre, respectivamente, a iconografia longeva do companheirismo ‘country’ e a elaboração artística de tendências homossexuais.Para finalizar, é impossível não se deslumbrar diante da figura física de Heath Ledger, um dos atores mais bonitos e charmosos da atualidade, cuja falta de envelhecimento no filme talvez possa ser explicada pelo mesmo argumento utilizado pelo genial cineasta Sylvio Back para justificar a ausência de modificações corporais nos personagens de “Aleluia, Gretchen” (1976): “quando as idéias não envelhecem, o corpo resiste”. Evitando-se aqui concordar com a misoginia sugerida em pontos estratégicos do filme, ignorando-se os problemas rítmicos instalados na patética seqüência em que a mãe de Jack Twist (Roberta Maxwell) está em cena e concordando-se inteiramente com a validade do adágio conformista [“quando não se tem nada, não se precisa de nada”] pronunciado por Ennis Del Mar em direção a sua filha involuntariamente volúvel Alma Jr. (Kate Mara), atesta-se: Heath Ledger é o ser humano mais adequado, num filme, para demonstrar o quanto pode ser sedutora, arrebatadora e problemática a contemplação passional de alguém do sexo masculino.

Wesley Pereira de Castro.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A ETERNA MALDIÇÃO DO CACIQUE SERIGY (2009). Direção: Alessandro Santana, Bruno Monteiro & Mauro Luciano


Criticar o curta-metragem “A Eterna Maldição do Cacique Serigy” (2009, de Alessandro Santana, Bruno Monteiro & Mauro Luciano) será uma trabalho fácil ou difícil? Conheço e gosto pessoalmente dos três realizadores envolvidos e, se por um lado, foi-me difícil confessar de imediato que desgostei da obra, por outro, já fora advertido por um deles que eu não gostaria mesmo. Não somente conheço pessoalmente os tais realizadores, como também conheço algumas de suas idiossincrasias e discordo de algumas delas. Ou seja, o filme não me surpreendeu em nenhum momento. Sabia o que ia encontrar... e encontrei!

Antes, uma pequena sinopse: numa terra ainda inexplorada pelos comerciantes brancos europeus (supostamente, no século XVI), vemos personagens representando indígenas. Estes respeitam a natureza, ingerem fumos oriundos de plantas nativas e interagem ponderadamente entre si. Até que, um dia, surge um estrangeiro, montado num cavalo. Este prova do doce pecado da gula na terra que agora considera “um novo Éden” e estupra (ou inaugura a prostituição especular?) uma nativa ao som do hino sergipano, que logo se converte numa marchinha de carnaval. Ao saber do acontecido, o iracundo personagem-título consulta o pajé de sua tribo, a fim de saber como agir, como vingar a desonra de seu povo. Depois de uma luta vã com o invasor estrangeiro, o cacique revoltado lança uma terrível maldição sobre a terra em que vivera até então, dizendo que, a partir de então, nada mais prestará naquele lugar, que se tornará opaco, infértil, provinciano. Na trilha sonora, “O Cordão dos Puxa-Saco”. Na tela, uma indagação conclusiva: “é o fim!”

Aspectos a serem investigados a partir desta sinopse: conhecendo os realizadores como eu conheço, lamento reconhecer mais uma vez nesta obra um aspecto que pode ser prenhe de sentido, mas com o qual eu não concordo: esta tendência insistente em difamar a precariedade e a auto-desvalorização (cultural e socioeconômica) de Sergipe, num ímpeto que parece crítico, mas que, ao ser repetido ‘ad extremis’, torna-se vicioso e inocuamente rabujento. Não sei se minha sujeição pós-pós-moderna faz com que eu submeta-me ao pauperismo típico da “terra atrasada” em que vivo, mas não creio que as intenções dos autores ao despejarem suas reclamações em forma estética pós-cinemanovista funcionem a contento. Motivo 1 (detectado na pré-estréia de ontem): o público-alvo do filme está muito mais interessado em reconhecer seus amigos e conhecidos na tela do que entender que ali se tratam de personagens (quiçá alegóricos em relação à História de nosso Estado). Motivo 2: as citações a filmes clássicos de Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha não surtem efeito em audientes cujos arcabouços referenciais repousem num “presente contínuo” infelizmente consentido. Motivo 3: se pensarmos direito, nada do que foi visto na mal-projetada tela da Sociedade Semear é novo: misturar Mozart, Carmen Miranda, colorido tropicalista e História sumária é talvez uma fórmula em desgaste, que instaura efeitos cômicos involuntariamente disfuncionais, conforme detectados nas reclamações de pessoas na platéia acerca da má sincronização sonora, de uma montagem academicista e pretensiosa e de outros “defeitos” técnicos-formais que, conhecendo as aventuras ‘udigrudi’ dos realizadores, podem e devem muito bem serem intencionais.

Supondo que eu encontre novamente com Alessandro Santana e este me pergunte agora o que eu achei do curta-metragem, direi o seguinte: valorizo a sua produção, no sentido wellesiano de que “toda obra é boa, na medida em que exprime o caráter do homem que a concebeu”, mas arriscar-me-ia a sugerir, no âmago de minhas mais sinceras boas intenções, que ele seria muito mais fecundo se levasse à frente o que pretendeu no título de uma obra prévia e realmente dsconfortasse a platéia. Afinal de contas, nos dias acríticos de hoje, não há mais espaço para crítica sem perturbação verdadeira – e, com certeza, usar óculos escuros na escuridão de noites chuvosas não é um recurso sinceramente aliado á constatação!

Wesley PC> (prototipicamente)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

"SE EU FOSSE VOCÊ" (2005). Direção: Daniel Filho


“Quem diz que dinheiro não compra felicidade é porque não sabe o endereço da loja”: é com frases desse tipo que a personagem vivida por Glória Menezes assume-se rapidamente como instância normatizadora do filme, ou seja, como a pessoa responsável pela condução visivelmente antiética do roteiro. Descaradamente plagiado de uma vasta tradição hollywoodiana na produção de comédias sobre trocas de corpos [que se revela mais como mantenedora perpétua de ejetores ideológico-moralistas do que necessariamente como proporcionadora de diversão], “Se Eu Fosse Você” abandona, ainda nos 10 minutos iniciais de projeção, o único elemento que poderia transformá-lo num produto (anti)cinematográfico minimamente risível, elemento este que diz respeito justamente à comicidade inevitável que advém da inusitada situação que acomete o casal protagonista. Ao invés dessa comicidade, porém, os roteiristas escalados por Daniel Filho optam por engendrar um ridículo inventário ditatorial de costumes burgueses, favorecendo a construção de personagens estereotípicos absolutamente fúteis, cujas maiores preocupações existenciais estão em saturar o mercado publicitário com mais campanhas em que a sexualidade feminina seja banalizada, suportar o insistente assédio telefônico de uma mãe milionária, e convencer a filha adolescente a estudar na Europa, com o intuito de que a mesma “valorize as oportunidades que a vida lhe deu”. Diante da ignomínia feroz deste ponto de partida, é uma tarefa assaz balda adivinhar quais comportamentos personalísticos teriam sido modificados após a inversão sexual que compõe o mote central do enredo...


Falando-se novamente no principal mote enredístico de “Se Eu Fosse Você” (a troca de corpos e, conseqüentemente, de funções sociais desenvolvidas pelo casal protagonista), há de se lamentar demoradamente que a inverossimilhança seja o menor de seus problemas. Malgrado as famosas convenções espectatoriais de comédia permitirem a concretização desse tipo de situação fantástica – o que torna dispensável a justificação astrológica da seqüência de abertura –, o filme opta pela extrema ridicularização involuntária de comportamentos típicos da elite aquisitiva brasileira, investindo fortemente na provável identificação risória com facções da platéia que compartilham (ou intentam compartilhar) os benefícios classistas deslindados na trama. Porém, esta mesma identificação risória implica numa imperdoável caricaturização dos papéis familiares e profissionais supostamente distintos que são desempenhados por homens e mulheres na sociedade contemporânea. Nesse sentido, cenas como aquela em que, para provar à sua melhor amiga médica que está presa no corpo de seu marido, Helena começa a dançar ao som de “Perigosa” subestimam desavergonhadamente o entendimento já superficial do espectador, visto que se utiliza de uma música não-diegética com óbvias funções alienatórias. Tal subestimação, inclusive, pode ser também percebida quando Helena, ainda presa no corpo de Cláudio, apresenta a campanha de ‘lingerie’ que compusera a uma possível cliente, de modo que a previsível resposta conciliativa desta última é antecipada por um suspense ruidoso absolutamente pleonástico.


No que se refere à correspondência técnica das anormalidades contidas na trama, resta dizer que Tony Ramos serve-se bem da estereotipia efeminada que pulula em sua personagem, ao passo que Glória Pires, Patrícia Pillar e o restante do opaco elenco não fazem mais do que enganarem o espectador enquanto desgastados chamarizes epidérmicos. O mesmo, entretanto, não pode ser estendido à atriz Maria Gladys, visto que esta, ao personificar uma empregada doméstica que se intromete sobremaneira na vida pessoal de seus patrões, autoriza uma deprimente avacalhação da falta de ideais vitalícios da classe proletária, no sentido de que a única impressão de autoridade que a empregada doméstica Cida pode desfrutar é a recusa em vestir um uniforme ridículo na festa de aniversário de seu patrão!


Parágrafo conclusivo: já que o roteiro de “Se Eu Fosse Você” não tem sequer força suficiente para se tornar uma comédia romântica rasteira sobre as diferenças individuais que legitimam o equilíbrio de um matrimônio e, ao invés disso, prefere se assumir como um relato comemorativo da derrocada dos valores artísticos nas classes populares, vale repetir aqui a ilação atemorizadora de que a personagem de Glória Menezes é, sim, a tipificação personalizada com maior influência normativa no filme. Afinal de contas, é ela quem compra a empresa publicitária em que seu genro trabalha, é ela quem apazigua muitos dos conflitos surgidos na família de sua filha e é ela quem proclama que “mulher não nasceu para fazer terapia. Mulher nasceu para fazer compras”. Mais aterrorizante do que esta declaração, só mesmo a repetição, nos créditos finais, do assassinamento póstumo que o músico Guto Graça Mello comete em relação à obra magistral de Ludwig van Beethoven. Difícil (e insalubre) é continuar mantendo esperanças humorísticas em determinados produtos culturais de massa após a audiência a este filme, visto que, ao contrário do que acontece com a maioria quantitativa dos espectadores, a hipervalorização falsificada desta obra enquanto produção identitária nacional quase nos faz sentir vergonha de sermos brasileiros!

Wesley PC>

domingo, 18 de janeiro de 2009

BATMAN - O CAVALEIRO DAS TREVAS (2008) Dir.: Christopher Nolan


Ocultar evidências e, em seguida, escolher uma versão de verdade que satisfaça os anseios subjetivos de alguém que se acredita patrono da justiça é um tema recorrente nas obras de Christopher Nolan. Se, em “Amnésia” (2000), seu melhor filme até então, o protagonista desmemoriado contenta-se em assassinar um inocente a fim de sentir-se vingado pela morte da esposa e, em “Insônia” (2002), um policial é considerado heróico mesmo quando se descobre que ele baleara fatalmente um parceiro, o tema da obliteração factual aparece bastante evidente em “Batman Begins” (2005), no qual o mítico personagem principal assume dupla identidade a fim de saciar sua própria ambigüidade moral, e em “O Grande Truque” (2006), no qual mágicos ambiciosos servem-se do ilusionismo caro à profissão para disfarçarem seus sentimentos e emoções. Em “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008), tal recorrência enredística torna-se ainda mais portentosa. Para além de todas as falhas directivas e da excessiva confiança que é destinada ao esquematismo caricatural de algumas situações, o modo como a trama é resolvida intriga sobremaneira o espectador, que, com certeza, sai atordoado da sessão, sendo irrelevante se o mesmo gostou ou não do filme. Isso se deve principalmente à ótima composição dos vilões do filme, que não correspondem apenas ao Coringa e ao Duas-Caras, mas sim a todo um contingente de pessoas malévolas que assola a cidade de Gotham City, contingente este que encobre também o próprio personagem-título, atormentado por causa da inviabilidade das táticas de que se utiliza para combater o mal, visto que ele chega a servir-se de recursos antiéticos, conforme percebe o engenheiro Lucius Fox (Morgan Freeman), quando descobre que Bruce Wayne (Christian Bale) desenvolveu sonares investigativos a partir dos telefones celulares dos habitantes da cidade em que vive. Ou seja, ao invés de entender que a referida atitude antiética visa à captura do perigosíssimo Coringa, Lucius Fox pede demissão da empresa de Bruce Wayne, antevendo um dos inúmeros tormentos existenciais que balizarão a agonia justiceira do personagem ao final do filme.


Abusando de câmeras que perfazem movimentos circulares em volta dos personagens nos momentos de tensão, Christopher Nolan demonstra uma inabilidade regressiva enquanto diretor, que vai de encontro à sua astúcia como roteirista e ao seu imediatismo enquanto autor de argumentos. Anda que, enquanto diretor, ele não seja digno de méritos – já que o filme, em sentido técnico, difere pouco dos inúmeros filmes policiais e/ou de ação produzidos por Hollywood –, enquanto roteirista, Christopher Nolan futuca as mesmas feridas morais e ideológicas recentemente investigadas em filmes dirigidos por Clint Eastwood e Ben Affleck, para ficar apenas em exemplos recentes e óbvios. Quando Duas-Caras (Aaron Eckhart) afirma que “em um mundo cruel como o que vivemos, o único moralismo possível [e imparcial] é o acaso”, ele não somente está pleno de razão como assume-se como uma espécie de alter-ego da geração de cineastas a que Christopher Nolan se vincula, um grupo de artistas que trabalham mais em função da (auto-)referencialidade do que necessariamente em relação à novidade. Ou seja: Christopher Nolan é um autêntico cineasta hipermoderno, o que explica o excesso de paralelismos narrativos neste filme, em contraste com as discretas intervenções alineares. É pena, porém, que o sobejo de personagens e sua pretensiosa complicação tramática distraiam a atenção do espectador, desperdiçando lances inventivos, como a primeira aparição do Batman, que persegue Espantalho (Cillian Murphy), vilão do filme anterior, que aqui trafica substâncias ilícitas e usa como estratagema de fuga um comparsa mascarado como o Homem-Morcego. Quando prende o Espantalho, Batman é atacado por cachorros de grande porte, o que desencadeará uma espécie de cinofobia importante para o desenvolvimento de seu personagem e da própria trama, visto que, mais adiante no roteiro, o Coringa (Heath Ledger) proteger-se-á com cachorros da mesma raça e, quando tenta convencer o comissário Gordon de que deve ser perseguido “em nome da lei”, Batman pede que seu companheiro no combate ao crime “ponha os cachorros em cima dele”. Mas o momento que melhor se utiliza desta cinofobia sub-reptícia do personagem principal está na cena em que o brilhante personagem Coringa explica ao promotor Harvey Dent a sua isenção de culpa no planejamento de grandes crimes. Diz ele que é apenas um instrumento executor, alguém que age “tal qual os cachorros que correm atrás dos carros, mas que não sabe o que fazer quando alcança um deles”. Com este comentário, fica fácil entender o que o vilão quer dizer quando se auto-intitula um “anarquista criminoso de vanguarda”, como um bandido que não quer adquirir dinheiro como os demais vilões, mas apenas ver “o circo pegar fogo”, num comentário da advogada Rachel Dawes (Maggie Gyllenhall).


Um dos maiores avanços desta segunda aventura do “cavaleiro das trevas” dirigida por Christopher Nolan em relação ao filme anterior está justamente numa prática delicada: escalar uma atriz para viver uma personagem anteriormente interpretada por outra pessoa. Afinal de contas, Maggie Gyllenhall é muito mais expressiva que sua precedente Katie Holmes e, ainda que a personagem Rachel Dawes esteja envolta de uma espécie de pieguismo conseqüencial, que motivará não somente a equivocada sede de vingança de Duas-Caras, como também a ocultação de provas em favor de um “mito necessário” [vide a cena em que Alfred (Michael Caine) queima a carta que Rachel deixou para Bruce Wayne, na qual confessava seus intentos legítimos de se casar com Harvey Dent]. Já que a expressão “ocultação de provas” é novamente trazida à tona nesse texto, cabe aventar aqui uma inquietação em relação à mensagem final do filme, em que Batman prefere assumir os crimes perpetrados por Duas-Caras a fim de não macular a boa carreira do promotor Harvey Dent, tornando-se assim mais fora-da-lei do que já era considerado até então, com o pretexto de que e “ele é o herói que a cidade de Gotham City merece, mas para o qual ela ainda não está preparada”. Conforme o comissário Gordon (Gary Oldman) deixa bem claro, a construção de mitos é efetiva no apelo às boas intenções supostamente natas de cada indivíduo, o que provaria que o Coringa estava errado em sua obsessão por revelar a maldade inevitável de seres humanos confrontados com estado de pânico e dor (vide o plano de fazer com que os tripulantes de dois navios ativem explosivos um contra o outro a fim de salvarem-se de uma ameaça mortal) e que exemplos de bom caráter inibem o crime de maneira muito mais prática do que o tipo de combate violento e auto-justiceiro de que se vale o Homem-Morcego. Será mesmo? Cabe aqui uma reflexão extrafílmica.


Por fim, “Batman- O Cavaleiro das Trevas” merece um parágrafo especial sobre o trabalho do elenco. Ainda que a fotografia de Wally Pfister seja mui acertada em suas tonalidades predominantemente escuras, que a música de Hans Zimmer & James Newton Howard decresça qualitativamente em cenas românticas ou laudatórias e que o roteiro de Jonathan & Christopher Nolan seja demasiadamente crédulo e estereotipado ao nível da puerilidade em algumas seqüências (o que é justificado por sua base nas Histórias em Quadrinhos), é o elenco do filme o grande chamariz desta obra. Se Aaron Eckhart repete os trejeitos cínicos a que se habituara em filmes anteriores e Gary Oldman (quase irreconhecível!) transmite com prostração elogiável o desânimo e a desesperança do comissário Gordon, a já citada Maggie Gyllenhall dramatiza bem sua personagem, Michael Caine rouba a cena com seu humor irresistível e Morgan Freeman está quase dispensável, visto que seu papel é literalmente mecânico. Heath Ledger, por sua vez, está absolutamente hipnótico como o Coringa, roubando todas as atenções, inclusive do talentoso Christian Bale, que não dosa com suficiente êxito as necessidades vocais distintas de suas duas personalidades. Heath Ledger transforma a sua última aparição nas telas do cinema em um antológico testamento actancial, desafiando o desdém que alguns de seus fãs demonstravam em relação à popularidade do personagem que interpreta, que já fora eternizado magnanimamente por Jack Nicholson num filme de Tim Burton e assumia-se como delicado em virtude de seu extremo desgaste midiático. O formidável ator australiano, porém, realiza um verdadeiro espetáculo sempre que está em cena, transmitindo com exatidão superlativa toda a psicopatia de seu personagem, em especial quando descreve as diversas versões para o surgimento das cicatrizes que maculam seu rosto maquiado, versões estas que parecem todas verdadeiras e não-excludentes, o que só valoriza a dramaticidade inolvidável do passado imaginado do personagem, bem como o esperto truque do ator em passar a língua em volta dos lábios o tempo inteiro. Esta insistente movimentação glótica é explicável não somente enquanto tique nervoso mas também como fonte de irritação e provocação contra os seus inimigos – e é precisamente a Heath Ledger que pertence o momento mais impressionante de todo o filme, quando, depois de intimidar o convalescente Duas-Caras, ele explode vários cômodos de um hospital. É, então, fotografado em ‘contra-plongée’, vestindo um uniforme de enfermeira, aparentemente brincando com um detonador defeituoso. Quando estamos quase sorrindo da situação, achando engraçado o extremo despudor e sarcasmo do personagem, todo o prédio do hospital vem abaixo, em chamas altissonantes e estrondosas, que se fazem notar à distância por todos os demais personagens do filme. Com mais esta extraordinária vivificação personalística, Heath Ledger (04/04/1979 – 22/01/2008) é um ator que merece aqui um sinceríssimo adágio supra-personal: “descanse [realmente] em paz”!

Wesley Pereira de Castro.