segunda-feira, 31 de julho de 2023

BARBIE (2023, de Greta Gerwig)


Convém ir direto ao ponto: para além de qualquer boa intenção discursiva que exista no roteiro deste filme, o seu fundamento evidente é publicitário, com a intenção de vender mais e mais produtos associados à boneca titular. Não é por acaso que, em diversos momentos, as peças de vestimenta masculinas e femininas aparecem como se estivessem numa vitrine de loja, com uma etiqueta em destaque. Faltou apenas o preço, no sentido de que este é cobrado através da mesma moeda simbólica identificada pela personagem Gloria (America Ferrera), numa fala involuntariamente aproveitada: a nossa imunidade cultural. Tal como ela compara a sujeição acachapante das mulheres da Barbielândia ao recém-trazido legado patriarcal à impregnação de doenças européias entre os povos indígenas violentamente colonizados, somos contaminados pelas pragas capitalistas espalhadas ao longo dos cento e quatorze minutos de duração. A pretensão emancipatória surge como um produto acessível a quem aceita submeter-se à lógica da vendabilidade, comprando para depois ressignificar, conforme representado pela Barbie Estranha (Kate McKinnon), que fica deformada - e consciente - depois que brincam muito com ela. Essa é a boa notícia, não é?



Analisando-se o impacto midiático causado pelo filme - desde que o seu 'trailer' foi anunciado! -, podemos concordar que, sim, a diretora e co-roteirista Greta Gerwig foi assertiva em seus propósitos, configurando-se numa mulher muito bem sucedida em Hollywood, tanto quanto a sua protagonista, a ótima Margot Robbie, que entrega-se com energia admirável à sua personificação. As influências estilísticas da realizadora são tão identificáveis quanto aplaudíveis [vide a detecção de elementos inspirados em "Playtime - Tempo de Diversão" (1967, de Jacques Tati) nas seqüências passadas no interior do escritório da Mattel ou a óbvia inspiração em "Asas do Desejo" (1987, de Wim Wenders) no desfecho], mas a montagem, o acúmulo de canções na trilha musical e o roteiro beiram o tom vexatório, em diversos momentos. Por um lado, chama a atenção o apelo denuncista de cenas como aquela em que a Barbie Estereotipada é assediada por vários transeuntes, enquanto passeia numa pista de 'skate', expondo o desconforto renitente a que as mulheres são sexualmente expostas no dia a dia; por outro, os monólogos "desipnotizadores" da supracitada Gloria fazem com que a conscientização das mulheres soe como interruptores acessados a partir da mera exposição imediata. Nesse sentido, a trama subestima muito mais a inteligência das personagens femininas que a dos homens idiotizados. Afinal, sem a existência do machismo estrutural naquela sociedade plástica, como Ken (Ryan Gosling) conseguiu converter tão rapidamente a Barbielândia em seu Kendom? 



Sem querer adentrar a debilidade argumentativa associada à mera substituição de um universo feminino por um masculino (ou vice-versa) como provedor de melhorias sociais, a inorganicidade basilar deste roteiro esbarra na pouca diferenciação entre a Barbielândia e o alegado Mundo Real: tanto que os bonecos conseguem aprender muito rapidamente as regras de convivência urbana, sendo a alegada alternatividade (empoderadora) do mundo das bonecas um mero cacoete. Pior que isso: a trama incorre num vício dominante nas produções hollywoodianas hodiernas, que é a concessão de poder resolutivo aos adolescentes birrentos. Num instante crucial, Gloria reclama quando a sua filha Sasha (Ariana Greenblatt) senta ao volante do carro da Barbie e toma a condução do veículo, mesmo sem saber dirigir. Dali por diante, é ela quem comandará as ações de resistência feminina, deixando clara a mensagem por detrás do feminismo de butique dessa produção: são os não-adultos que mandam! Todos nós somos os seus brinquedos, num contexto que, sabiamente analisado por críticos astutos, tem a ver também com a dominação expansiva desse tipo de enredo em relação às produções mais sérias. Eles venceram, ocupando quase todas as salas de projeção! E a cantora Billie Eilish compreendeu isso muito bem, ao compor a linda "What Was I Made For?": "dirigindo por aí, eu era um ideal/ Parecia tão viva, acontece que eu não sou real/ Apenas algo que você comprou"... 


Isso implica em dizer que os elogios ao filme, por grupos consideráveis de esquerda, são indignos de merecimento? Não necessariamente. Da mesma maneira que alguns arrasa-quarteirões setentistas ou oitentistas, "Barbie" é um filme sujeito a variegadas interpretações psicanalíticas, existenciais ou mesmo políticas, para além de suas intenções originais - ainda que, enfatizemos, as entrevistas com a diretora são mui esclarecedoras. Porém, a melhor cena do filme é justamente aquela que escancara o seu paradoxo central, que é a comercialização da Barbie Depressiva, que surge num arremedo descarado de comercial televisivo, repentinamente, entre uma e outra seqüência. Os números musicais são interessantes e a fala derradeira da personagem-título, mencionando uma necessária visita à ginecologista, reitera a adesão do filme a esquemas externamente reconhecidos de maturação feminina. Gostar ou desgostar do que ele oferece torna-se secundário frente ao seu escandaloso sucesso de bilheteria. Os acionistas da empresa Mattel agradecem! 



Wesley Pereira de Castro.