domingo, 16 de abril de 2023

PACIFICTION (2022, de Albert Serra)


Um mote recorrente na filmografia assaz idiossincrática do catalão Albert Serra é a tomada de importantes decisões históricas e políticas num contexto geográfico permeado pelas orgias vampirescas. Roteirizado com a ajuda de Baptiste Pinteaux (que tem uma breve participação como ator, além de ser um colaborador habitual do cineasta), este filme escolhe o Século XXI como pano de fundo para as suas intrigas, sendo magistralmente sintético acerca das ameaças bélicas que rondam a contemporaneidade. Cada seqüência das quase três horas de duração é indispensável para a fruição do lento quebra-cabeças que é montado pelo diretor, permanecendo misterioso até o derradeiro efeito sonoro. Tudo nesta obra é cautelosamente estudado, a fim de mergulhar o espectador num torpor autocrítico, reiterando o que o protagonista pronuncia em determinado momento: "a política é como uma boate: as pessoas conversam no escuro, sem conseguirem enxergar umas às outras e demonstrando-se alheias acerca do que acontece ao redor"!


Esplendidamente interpretado por Benoît Magimel, o administrador De Roller passeia por lugares suntuosos de uma colônia francesa na Polinésia, intimidando de maneira sutil quem tenta aproveitar-se de sua influência. Não obstante agir como um dândi, desfilando com seu impecável terno branco, De Roller tem ciência da importância instrumental da violência, quando constata que a diplomacia é ineficaz para desvendar as intenções de seus interlocutores. E isto é apresentado de maneira tão erotizada quanto espetaculosa, seja através dos flertes progressivos com Shannah (Pahoa Mahagafanau), a funcionária transexual do hotel onde hospedam-se funcionários governamentais paranóicos, seja na contribuição que ele faz ao ensaio de uma dança folclórica que metaforiza uma rinha de galos: "as galinhas estão sorrindo", comenta De Roller. "É necessário parecer mais agressivo"!


O 'travelling' inicial apresenta-nos a uma zona portuária, onde percebemos diversos contêineres. No instante seguinte, penetramos na boate Paradise, comandada por Morton (Sergi López), onde os garçons servem bebidas aos clientes, utilizando apenas roupas íntimas. Um deles reclama, por achar tais vestimentas indecorosas, mas logo recebe como resposta: "é esse detalhe que faz tantas pessoas terem inveja desse lugar", o que pode ser estendido ao próprio estilo de Albert Serra, deveras incisivo na exposição associativa entre sexualidade e poder, como se estivesse a demonstrar, de uma vez só, variegadas teses foucaultianas. A tensão é amplificada à medida que o filme avança, visto que a impecável fotografia de Artur Tort - com quem o realizador já trabalhou em mais de uma oportunidade - faz com que os diálogos ambíguos dissolvam-se na beleza quase onipresente dos lusco-fuscos, em combinação com uma trilha musical tão fascinante quanto perturbadora. As ameaças nucleares são confirmadas, ainda que o submarino repetidamente mencionado pelos personagens não seja encontrado. O transe final depende da interpretação multissensória do espectador, mais ou menos como o cineasta reage aos agendamentos jornalísticos, rechaçados explicitamente no enredo. Estupendo! 



Wesley Pereira de Castro.