quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

ERA UMA VEZ EU, VERÔNICA (Brasil/França, 2012). Direção: Marcelo Gomes.

Tá tudo padronizado no nosso coração/ Nosso jeito de amar, pelo jeito, não é nosso não”: estes versos singelos, cantarolados no filme pela compositora Karina Buhr (que divide a trilha sonora do mesmo com Tomaz Alves Souza), e posteriormente retomados pela protagonista (vivida com despojamento por Hermila Guedes), quando, em seu consultório psiquiátrico de hospital público, não consegue fazer com que um de seus pacientes se sente, dão a tônica do filme em relação àquilo que ele tem de mais valorativo e, ao mesmo tempo, mais problemático: a aproximação formal e conteudística com a crise existencial que aflige a personagem-título da primeira até depois da última cena.

Se, por um lado, esta aproximação denota que, em seus filmes ficcionais, o diretor Marcelo Gomes ostenta o mesmo respeito pelo personagem que opta por acompanhar narrativamente tanto quanto fizera em seus elogiáveis, ainda que convencionais, documentários biográficos [“Oscar Niemeyer – O Arquiteto do Século” (2000, co-dirigido por Marc-Henri Wajnberg) e “Paulo Coelho: O Alquimista da Palavra” (2001), por exemplo], por outro, escancara uma confusão estilística que não conjuga adequadamente, no plano discursivo, a suruba praiana que aparece nas cenas inicial e final, os planos estáticos das coberturas do apartamentos que circundam a área em que a protagonista vive e as captações em câmera na mão dos expectantes e transeuntes com quem Verônica se depara nas ruas e nos corredores do hospital.

 Em outras palavras: o filme divaga tanto quanto a protagonista, deixando-se perder em truísmos sobre o sentido da vida que, politicamente, rechaçam a decisão final da médica em aceitar a proposta de emprego numa clínica articular, a despeito de toda a simpatia e disponibilidade assistencial que demonstrou em suas consultas ordinárias no Hospital Central.

 Comparando-se este filme com elogiados filmes pernambucanos recentes, nota-se nele um retorno titubeante à esfera privada dos sentimentos que, enxergado num panorama político mais geral, pode parecer um tanto regressivo. Entretanto, o filme não é desprovido de interesse nem tampouco age de forma oportunista ou meramente justificadora dos atos e escolhas da protagonista, mas, conforme dito anteriormente, irmana-se a ela em sua indefinição conjuntural.

A própria análise dos versos destacados da canção “Mira Ira” denota a adesão, tanto da personagem em si quanto do eu-lírico enredístico, a um ‘status quo’ sufocante, contra o qual parece que não há mais possibilidades de enfrentamento, salvo uma atitude conciliatória em prol da resolução de males setoriais (no caso, a doença do pai de Verônica, vivido encomiasticamente por Waldemar José Solha) em detrimento da filiação às tentativas de melhoria do serviço público. “Bem Vindas”, a canção de Karina Buhr que aparece no filme quando Verônica é compensada prazerosamente ao ser atingida por ondas do mar, complementa esta impressão conciliatória através dos versos que se seguem: “morte que cai bem, vinde em mim, agora que sou despreocupada comigo”. Isoladamente, isto não é um defeito, mas, no cotejo com os efervescentes “Febre do Rato” (2011, de Cláudio Assis) e “O Som ao Redor” (2012, de Kleber Mendonça Filho), a cujas equipes técnicas o diretor agradece nos créditos finais, tal opção adesiva é bastante delicada.

 Apesar de sua interpretação não ser ruim, Hermila Guedes não dispôs de muitas oportunidades para desenvolver a contento a sua personagem, composta de maneira um tanto precipitada, justamente por estar tão confusa quanto o próprio filme, conforme insistido aqui. Os momentos de folga da protagonista, em que ela dança com o pai colecionador de discos antigos, faz sexo com seu namorado Gustavo (João Miguel, desperdiçado) ou com parceiros carnavalescos casuais e interage com suas amigas sobre atos como masturbar-se em instantes de fome (um blague diogenesiano que justifica a magreza da protagonista), são alguns dos mais interessantes do filme, visto que o diretor retoma os artifícios que, em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2010, co-dirigido por Karim Aïnouz, que, neste filme mais recente, é creditado como consultor artístico), tornaram-se definidores do estilo modesto do diretor, notado desde o simpaticíssimo curta-metragem “Clandestina Felicidade” (1998, co-dirigido por Beto Normal), baseado num conto sobre a infância das escritora Clarice Lispector. O que Marcelo Gomes tem de mais meritório é a sua proximidade humanista com os dilemas de seus protagonistas, mas, conforme a mudança de perspectiva no hiperestimado “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005) deixa bastante evidenciado, isto nem sempre implica em coadunar-se com a escolha correta...

 Fotografado por Mauro Pinheiro Jr. de um modo que ratifica ainda mais esta imediação com os personagens, “Era uma Vez Eu, Verônica” também possui a vantagem contextual de desglamourizar a profissão de médico, visto que a protagonista é mostrada em toda a sua fragilidade, tão desamparada quanto qualquer um dos esquizofrênicos populares a que atende, a ponto de, em suas confissões pessoais num gravador, ela diagnosticar-se como paciente de si mesma. Os estratagemas confessionais auto-narrados do filme são, portanto, mui dignos em sua assunção de angústia, o que abona o seu sucesso entre jovens universitários ou recém-formados que se deixam identificar pelas dúvidas perenes da protagonista. É um filme deveras simpático, mas que, ao mesmo tempo, revela que simpatia inorgânica não é suficiente para erigir um talento, por mais que, intradiegeticamente, as longas filas formadas no hospital por pacientes interessados numa consulta com a doutora Verônica – que insistia em conversar com eles, ao invés de apenas diagnosticá-los, a ponto de levar uma delas em casa – insistam em querer desmentir esta constatação. Para utilizar um adjetivo convenientemente médico, isto é, no mínimo, bastante sintomático!

 Wesley Pereira de Castro.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

OS MISERÁVEIS ('Les Misérables') Inglaterra, 2012. Direção: Tom Hooper

O primeiro aspecto que ascende criticamente quando nos dispomos a analisar esta versão heteróclita da obra literária de Victor Hugo (1802-1885), adaptada diversas vezes para o cinema, é a sua dúbia configuração enquanto espetáculo (no sentido debordiano do termo): segundo o autor situacionista francês, um dos aspectos trifasicamente característicos do espetáculo é que ele é, ao mesmo tempo, “parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada”.

Confirmando o acerto do aforismo de Guy Debord, por mais descritiva que seja a trama literária original no que tange à exposição minuciosa da miserabilidade dos habitantes parisienses do início do século XIX e da injustiça régio-legislativa que se impõe sobre eles, tudo neste filme é convertido em pretexto para que sejamos melodramaticamente enlevados pelas extraordinárias canções de Herbert Kretzmer, Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, em que o amor ao próximo (inclusive em seu caráter namorativo) é erigido como instância máxima de redenção, a ponto de, ao final, ser declarado que “amar outro ser humano equivale a ver a face de Deus”.

 Por mais desmesuradamente ideológica que seja a sua concepção espetaculosa, esta versão musical de “Os Miseráveis” destaca-se positiva e arrebatadoramente por suas qualidades intrínsecas e, ainda que não possa ser devidamente comparada ao livro original no caso de uma inacessibilidade provisória, sobressai-se num cotejo com as principais adaptações cinematográficas do mesmo, tendo como principal elemento dignificador não apenas a surpreendente fidelidade aos eventos descritos na trama que lhe deu origem (com algumas alterações fundamentais, como, por exemplo, as condições do encontro entre o protagonista Jean Valjean e a personagem infantil Cosette) mas também a sua adesão hipertrofiada ao celebrado romantismo do autor francês, aqui convertido na exuberante extensão de uma célebre peça musical executada com êxito comercial na Broadway ao longo de várias décadas.

 E, por mais que não faltem alvos problemáticos no filme, ele consegue ser otimamente notabilizado, visto que “Os Miseráveis” é um filme que nos obseda lacrimosamente e permite-nos vivenciar a glória de “um coração cheio de amor”, conforme cantarola alguns dos personagens do filme: caso ele tivesse sido dirigido por alguém mais consciente do poderio de suas contradições elementares, seria a obra-prima espetacular que tenciona ser em mais de um instante!

 Por motivos óbvios, a análise crítica deste filme deve levar sobretudo em consideração as convenções do gênero musical ao qual ele se submete e se converte muitíssimo bem, tendo conseguido desempenhos sobressalentes de um elenco não habituado a cantar: por mais que, de fato, a interpretação de Russel Crowe esteja aquém do que é desempenhado por seus colegas, a composição do personagem Javert é tão complexa em seu distanciamento da categoria inflexível de vilão que, pelo menos na execução da canção “Stars”, o ator neozelandês impressiona pela dramaticidade de sua inflexão; Amanda Seyfried também padece de um desempenho inferior aos demais, visto que a personagem Cosette é mal-delineada tramaticamente, mas ela é funcional quando inserida em diálogos cancionais, como, por exemplo, na magistral interação entre diversos intérpretes contida na excelente “One Day More”; Hugh Jackman declina musicalmente em um ou outro instante, mas seus desvios são rigorosamente compensados por sua incrível entrega actancial enquanto Jean Valjean, cuja efígie sofre transmutações profundas em cada fase de sua vida, o que justifica encômios não apenas para sua atuação como também para o impressionante trabalho de maquiagem do filme, também exitoso nas aparições de Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, bastante divertidos como os estalajadeiros furtadores que cuidam de Cosette na infância e que instauram um questionamento determinista de classe (a subsunção ao crime) no contexto revolucionário celebrado pelos amigos de Marius (Eddie Redmayne, magnífico). Se Aaron Tveit (Enjolras), o pequeno Daniel Huttlestone (Gavroche) e os demais entusiastas de um ataque direto ao poder constituído pelo novo governo francês erigido após a Revolução Francesa impressionam pela fidedignidade compositiva de seus papéis, esta configuração subtramática instaura a necessidade de alguns comentários adicionais.

 A extensão dos aspectos concernentes à insurreição popular mostrada neste filme em relação a outras versões cinematográficas do mesmo romance torna deveras suspeitosa a adaptação roteirística de William Nicholson (a partir do libreto composto pelos já citados autores das canções) e as opções directivas de Tom Hooper (que, apesar da opulência do filme, é tímido na demonstração de seus méritos como encenador): quais seriam os interesses que justificaram o deslindamento desta intensiva conclamação política num filme coadunado à sua delimitação enquanto espetáculo vendável? Por mais que a adesão do eu-lírico da trama ao idealismo de Enjolras pareça entusiástico (o modo sublime com que ele é focalizado ao morrer, com uma imensa bandeira vermelha estendendo-se diante de seu corpo dependurado numa janela demonstra bem isso), o sufocamento pela polícia do levante populacional contra as autoridades parisienses instiga o espectador a questionar as intenções reconstitutivas deste evento histórico, malfadado na práxis por causa da falta de colaboração dos habitantes que estavam sendo justamente defendidos pelas intenções libertárias do grupo revolucionário.

 O interessante, entretanto, é que não apenas tal suspeição é constatada no filme como também pelo filme, já que um dos momentos mais empolgantes do mesmo é a execução dialogística da canção “Red and Black”, cujas cores simbólicas do socialismo e do anarquismo são ressignificadas pelos personagens, quando a intensidade da devoção política imperativa de Enjolras e seus companheiros, que associam o vermelho ao “sangue dos homens revoltosos” e o preto à “escuridão de uma era que tende a ser derrubada”, suplantam o desejo e o desespero eróticos com que o deslumbrado Marius insistia em ressaltar o fulgor passional pela inócua Cosette. Enquanto contraponto a esta situação, a construção desencantada da maravilhosa personagem Eponine (Samantha Barks, soberba ao confessar o seu amor plangente por Marius em “On My Own”), muito menos ambígua que em qualquer uma das suas aparições noutros filmes, deixa patente que, para esta versão da obra, os lampejos afetivos anteriormente abarcados num contexto generalizado de luta emancipatória são mais importantes em sua individualização, o que justifica internamente o retorno pretensamente inquestionado de Marius à classe social privilegiada de onde proveio e em relação à qual demonstrava publicamente a sua rejeição.

Nesse sentido, as festividades aristocráticas do conchavo amoroso entre ele e Cosette só não são tendenciosas acerca da regressão política do filme porque o próprio personagem tem evidenciada a sua fraqueza militante em mais de um instante, não sendo casual o emocionado pedido de desculpas aos amigos mortos na excepcional execução de “Empty Chairs at Empty Tables”, momento mais pungente e auto-elucidativo de todo o filme, que, na contramão das demais versões, torna o personagem Jean Valjean coadjuvante de sua própria história.

 Finalmente, vale observar que, tanto na emocionante versão dirigida por Richard Boleslawski em 1935 quanto na insossa condensação tramática conduzida por Bille August em 1998 – sem esquecer a medíocre incursão de Lewis Milestone [“O Implacável” (1952)] e a ampliação metalingüística de Claude Lelouch [“Os Miseráveis” (1995), em que o romance original é citado intradiegeticamente num cotejo com as aflições de humanos bondosos durante a II Guerra Mundial] – a perseguição de Jean Valjean pelo legalista Étienne Javert é o aspecto dominante da trama, ao passo em que, na adaptação cinematográfica comandada por Tom Hooper, a perspectiva fílmica é compartilhada por mais de um personagem, malgrado se possa reclamar que as aparições da sofrida Fantine sejam demasiado reduzidas. Ainda assim, Anne Hathaway desempenha o seu papel com tamanha garra e emotividade (sua interpretação para “I Dreamed a Dream” é tão insigne quanto a sua coadjuvação sutil em “At the End of the Day” e no epílogo um tanto sobrenatural sobre a definitiva redenção de Jean Valjean) que ela domina o filme quando está em cena, ainda que apareça efetivamente pouco nos 158 minutos de projeção do filme.

A imponência vocal do já elogiado Eddie Redmayne, a aparição breve porém comovente de Colm Wilkinson como o bispo que resgata Jean Valjean no início do filme e as vigorosas demonstrações de amizade constantes entre os revolucionários em canções como “ABC Café” e “Drink With Me” são manifestações conspícuas da grandiosidade de “Os Miseráveis”, grandiosidade esta que é tanto sedutora quanto responsável pela desconfiança de muitos exegetas perante as suas exigências mercadológicas enquanto produto cultural, visto que, ainda que as mesmas não sejam escondidas, disfarçam-se comodamente sob uma eloqüência emocional perigosa em sua insistência espetaculosamente hipnótica.

Apesar de toda a capciosa inflexão política verificada no prolongamento do terço final dos eventos narrados no romance, esta versão da saga escrita por Victor Hugo prefere as lágrimas devaneadoras e individualizadas à tomada de partido em prol das barbaridades cometidas contra os cidadãos aglomerados em multidões reclamantes (efeito adotado pelo filme desde a sua impactante abertura ao som de “Look Down”). Ainda assim, ele é bastante exitoso enquanto filme musical, correspondendo a uma das melhores e mais vigorosas encenações do gênero – ao menos, em termos hollywoodianos – do ainda emergente século XXI. Que atire o primeiro seixo condenatório quem nunca chorou (e cantou) por amor...

 Wesley Pereira de Castro.