domingo, 8 de novembro de 2020

MEMÓRIAS DO MEU CORPO (2018, de Garin Nugroho)


 

Inspirado nas lembranças do coreógrafo Rianto, este filme possui o aspecto de superprodução indonésia. Como tal, incorre na pudicícia daquilo que é excessivamente comercializado, tornando apenas indicial algo que é latejante: apesar de o biografado ser um extraordinário dançarino, são poucas as cenas de dança; não obstante a palavra “corpo” substituir os pronomes pessoais nos diálogos, a nudez é retratada de maneira temerosa. A sexualidade é quase tântrica, de modo que, entre as promessas do início e a canção executada no desfecho, há muita supressão. Esse é um dos temas do filme!




No afã por demonstrar o cabedal de traumas que maculam um corpo ao longo da existência humana, o roteiro serve-se da metáfora recorrente do buraco com brilhantismo, seja enquanto receptáculo da vida (no que tange à contemplação induzida de uma vagina, ainda na infância), seja enquanto externação de um dom (a capacidade de antever quando uma galinha porá ovos, a partir da inserção dos dedos na cloaca do animal), passando pelas diversas feridas que Juno sofre, voluntariamente ou não, por causa das agulhas que manuseia…




Os instantes em que o verdadeiro Rianto comenta os fatos são ótimos em sua pujança cênica, e os dois intérpretes de seu alter-ego Juno são magistrais, mas há algo de inconvincente ou reiterativo na assimetria devocional (e platônica) ao boxeador por quem ele se apaixona. Ao final, o corpo é a única casa, conforme afirma o dançarino. E ele pode levar-nos a qualquer lugar. Sobressai-se, portanto, a beleza do percurso.



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

UM ASSUNTO MEIO DELICADO (2016, de Marcelo Ikeda).


     À página 135 do livro "Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil", organizado por Paulo Henrique Silva, aparece a seguinte afirmação: "como realizador, [Marcelo] Ikeda tem uma produção expressiva". Segue-se uma lista de realizações, onde não consta o filme resenhado nestas linhas. Apesar de publicado em 2019, o texto de Ailton Monteiro e Diego Benevides sobre "Crítica de Cinema no Ceará: a apreciação como prática coletiva" obliterou intencionalmente este curta-metragem realizado em 2016. E não foi por desatenção. Há muitos aspectos na difusão deste filme em particular que exigiram a sua retração exibitória. Quais seriam estes? Talvez o próprio título explique... 



    Nos créditos finais, há uma pista valiosa: em meio aos agradecimentos da produção, uma advertência, "nenhum animal irracional foi maltratado durante as filmagens". O embate entre aluno avaliado e professores avaliadores, que ocorre num momento-chave do filme, demonstra a veracidade deste aviso: muitos egos foram machucados aqui! E a cautela do realizador quanto à apresentação deste ótimo produto de catarse coletiva deixa claro que quem se sentiu atacado pelo enredo reagiu com violência. Ignorando, inclusive, quem maltratou antes e com maior intensidade. Talvez isso seja uma questão extrafílmica. Portanto, voltemos ao que o filme apresenta, por si mesmo, em seus dezoito minutos de duração.



    Logo no início, o desconforto de um personagem, Evan (Evan Teixeira), que precisa confessar algo para sua mãe. Deveras nervoso quanto à possível reação incompreensiva dela, ele ensaia persistentemente a melhor maneira de encetar o diálogo. De supetão, percebemos vários temas caros a um curta-metragem anterior do realizador, "Carta de um Jovem Suicida" (2008). A recorrência denotaria uma obsessão pessoal com algo ainda não devidamente assumido? Logo perceberemos que não apenas isso: num recurso genial de adesão à metalinguagem, o filme trava. E o "assunto meio delicado" do início sai da esfera íntima e adentra o campo acadêmico, a discussão intelectual. O que é privado é também público, quando convertido em Arte!




    Numa encenação genial, em que o próprio diretor, junto a dois outros professores, atua como si mesmo, aquilo que até então víamos como drama é julgado enquanto atividade universitária. O que parecia defeituoso internamente (o abuso de certa teatralidade, por parte dos atores) é questionado como defeito técnico, pela banca avaliativa. Seria um chiste, uma autocrítica, uma provocação e/ou tudo isso ao mesmo tempo? É irrelevante responder. Marcelo Ikeda - roteirista, diretor, professor e personagem - convida-nos a sentir, a lembrar de situações semelhantes, em que estivemos envoltos numa esfera de reprovação, apenas porque insistíamos em desabafar algo. Eis um tema que parece abarcar toda a filmografia ikediana: a urgência salvaguardadora do desabafo!




    Por mais que Evan, o aluno, tente defender-se, há toda uma conjuntura de "experiência" que o desautoriza, em termos de imaturidade (por mais que essa seja trazida à tona, enquanto depoimento autoral, por ele próprio). Num diálogo posterior com um amigo, a chaga da rejeição/incompreensão revela contradições ainda mais delicadas: depois que esbraveja contra a europeização afetada de seus detratores, Evan reclama que, ao invés de estrear no Festival de Tiradentes, seu filme deveria ser exibido em Locarno. Quem o julgaria por ter ambição? Quem se identifica com seu elã colérico? Na derradeira seqüência, no escuro, a leitura de um maravilhoso poema de Sara Síntique. Tal qual o supracitado curta-metragem anterior, "Um Assunto Meio Delicado" revela-se um filme de amor, um grito em defesa da necessidade de declarar aquilo que arde por dentro. Um trabalho de mestre, portanto: parabéns por tamanha (auto)consciência e sensibilidade, Marcelo Ikeda! 




Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

NOTÍCIA DE JORNAL: Mostra divulga premiados da 44ª edição



 PRÊMIO DA CRÍTICA

"A imprensa especializada que cobre o evento e tradicionalmente confere o Prêmio da Crítica, também participou da premiação elegendo Glauber, Claro como o melhor filme brasileiro e Mosquito como o melhor entre os estrangeiros.


 

Dirigido por César Meneghetti, o longa Glauber, Claro foi escolhido "por apresentar um original exercício estilístico, em que revela a forma visceral com que Glauber Rocha filmava à base de improvisações e muito inspirado no cinema político".


 

Já o moçambicano Mosquito, de João Nunes Pinto, leva o prêmio "pela maneira pulsante e criativa como retrata um período histórico ao borrar as barreiras entre o real e o imaginário, construindo uma obra antibelicista ao mesmo tempo em que critica o papel colonizador de seu país". 


 

Júri - Prêmio da Crítica: Ailton Monteiro, Barbara Demerov, Barbara Santos, Bruno Carmelo, Inácio Araújo, Isabel Wittmann, Jorge Cruz, Leonardo Sanches, Luiz Carlos Merten, Luiz Joaquim, Luiz Zanin, Marcelo Muller, Márcio Sallem, Maria do Rosário Caetano, Matheus Mans, Nayara Reynaud, Neusa Barbosa, Robledo Milani, Rodrigo de Oliveira, Ubiratan Brasil, Úrsula Passos, Wesley Pereira de Castro".

terça-feira, 3 de novembro de 2020

* Mostra SP 2020: O LIVRO DOS PRAZERES (2020, de Marcela Lordy)


     A fim de ser justo em relação aos méritos femininos deste filme, convém esquecer, por alguns instantes, que ele é a adaptação daquela que talvez seja a obra-prima da escritora Clarice Lispector [1920-1977]. Entretanto, o seu maior chamariz é justamente ser derivado de "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", publicado em 1969. Nos créditos finais, a diretora resolve parcialmente o problema: trata-se de uma "adaptação livre", sendo justificadas as translações contemporâneas e classistas do enredo. Funciona? Sim e não. Como a vida, às vezes... 



    Não obstante o sumo existencialismo da obra original, o roteiro deste filme demora a assumir a sua verve melancólica. Como tal, a protagonista vivida por Simone Spoladore também demora a angariar empatia por parte do espectador: no início, seus valores pequeno-burgueses e sua inconstância comportamental (leia-se: sexual) são signos insuficientes de seus devaneios e desamparo. A montagem um tanto incoesa realça esta aparência: os momentos que mostram Lorelei em sala de aula não se coadunam muito bem com o restante de seu cotidiano. E a péssima composição dos personagens masculinos prejudica bastante a pretensa sinestesia do filme: é difícil dispor-se a sentir o que a protagonista sente quando ela envolve-se voluntariamente com homens tão desenxabidos. Javier Drolas, por exemplo, fica refém das barreiras idiomáticas: está inexpressivo! A toxicidade de seu Ulisses tem pouco a ver com a docente inspiração original... 



       Como a ênfase publicitária do filme está em sua feminilidade, enfatizemos estes aspectos: depois que o irmão da protagonista (mal-interpretado por Felipe Rocha) sai de cena, redimensionamos o despertencimento familiar de Lóri, que não se sente rica nem amada. A vida é, para ela, um automatismo, que desemboca na sexualidade desenfreada, obviamente. Que não satisfaz. Após a transa um tanto automática com o atraente colega Carlos (Gabriel Stauffer), a personagem vomita compulsivamente. E, se ele é um ótimo consertador de pias, não a escuta, não preocupa-se com o que ela sente. Culpa dele? Culpa dela? Culpa do filme? Culpa da sociedade machista, obviamente. 



    Da metade do filme em diante, a trilha musical de Edson Secco torna-se mais evidente, a fim de promover maior imersão emocional por parte do espectador. Os diálogos advindos do livro passam a ser literais, ainda que proferidos em contextos distintos. O inusitado (e inconvincente) final feliz que o diga! Entretanto, a diretora é consciente da fragilidade - e dificuldade - da adaptação, de maneira que preferiu seguir um rumo narrativo mui pessoal, o que é deveras lícito. As cenas derradeiras, por exemplo, estendem-se, até os créditos de encerramento. Os dois pontos, à guisa de provocadora (in)conclusão, são reiterados, utilizados de maneira ostensiva, ocupando toda a tela. É um filme esforçado, portanto: encontrará alento em parte disposta de seu público. Ainda que o resultado geral seja irregular, pela abordagem audaciosa, a diretora e roteirista é merecedora de aplausos!



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 31 de outubro de 2020

A ESTAÇÃO DE TREM (2000, de Sergei Loznitsa)


 

Para quem já testemunhara a crueza estilística deste diretor no longa-metragem ficcional de estréia "Minha Felicidade" (2010) ou no ótimo episódio que se destaca em "As Pontes de Sarajevo" (2014), regressar às suas raízes documentais é uma tarefa imperativa. O modo como ele capta a beleza dos pequenos instantes nos intervalos das rotinas atribuladas de trabalho faz com que redimensionemos o flagrante pessimismo de suas obras mais recentes. Porém, as chagas desoladoras do cotidiano sempre estiveram lá!




Conferir "A Estação de Trem" após ter dormido mal é uma tarefa inglória porém sintomática: os vinte e quatro minutos de duração parecem durar bem mais. E o sono que induz não é letárgico, mas denuncista, fatalista. Uma tentação perigosa em relação a um descanso interditado: o sono surge como epítome da exaustão, nas esperas imensas em não-lugares de encontro, como alguns catalogam sociologicamente o cenário explicitado desde o título.




No curta-metragem, fotografado e montado como uma versão ‘flou’ de alguma produção do Chris Marker [1921-2012], vemos várias pessoas dormindo enquanto esperam os seus respectivos trens. Camponeses, em sua maioria. Trabalhadores. Malfadados herdeiros da dissolução trágica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Não obstante ter nascido na Bielo-Rússia, foi na Ucrânia que o diretor se estabeleceu. No filme, é toda uma nação que dorme, provisoriamente inativa, após a dilaceração de jornadas sucessivas de labuta, enquanto aguarda o veículo que os conduzirá a outro lugar, outro momento histórico. Insetos zuem, enquanto as locomotivas não aproximam-se. A imobilidade acabará nalgum momento? O despertar individual corresponde a um levante nacional? Quem sabe algumas respostas sejam encontradas nos curtas-metragens posteriores do diretor…



Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP 2020: AS VEIAS DO MUNDO (2020, de Byambasuren Davaa)


     Apesar de filmado numa região inóspita da Mongólia, o que mais chama a atenção nesta obra mui singela é a naturalidade com que aborda um tema caro às filmografias orientais, o conflito entre tradição e modernidade assimétrica. Sem precisar recorrer aos discursos politicamente redundantes, a diretora atinge méritos altissonantes em sua profissão mui orgânica de valores ecológicos: no desfecho, a canção que justifica o título do filme emociona-nos sobremaneira. Há uma denúncia contundente sendo realizada, em meio ao estratagema da simples estória de amadurecimento filial... 


    O protagonista do filme é um garotinho de doze anos de idade, magnificamente vivido pelo carismático Bat-Ireedui Batmunkh: chamado Amra, seu cotidiano é bastante parecido com os de seus colegas de escola. Vive numa região rural, com uma família de origem nômade. Passa boa parte do tempo brincando com seu telefone celular, o que faz com que temam que ele fique com a "vista quadrada". Sua mãe prepara queijos e seu pai envolve-se comumente em querelas contra a exploração mineradora na planície onde habita. O sonho de Amra é participar de um concurso local de talentos. Até que ele obtenha êxito, novos desafios surgirão... 


    O roteiro destaca-se pela naturalidade com que aborda as situações: a rotina da família Erdene, as reuniões de moradores, as atividades escolares, tudo isso é apresentado de maneira cúmplice, como se a diretora não apenas fizesse parte daquele contexto rural, mas fizesse questão de compartilhar aquela quietude conosco, a fim de que militemos conjuntamente contra a destruição ambiental perpetrada pela exploração capitalista. A letra da canção que Amra canta, em homenagem ao seu pai, é exemplar neste sentido: insiste que "o ouro só traz sofrimento". As veias do mundo seguem abertas! 


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

SOL ALEGRIA (2018, de Tavinho Teixeira & Mariah Teixeira)


 

      Numa das cenas iniciais, uma locução radiofônica apresenta-nos à voz do pastor Tirésias, figura política recém-eleita na distopia brasileira viajada através do filme. Quando o protagonista – interpretado pelo co-diretor – consegue reunir todos os membros de sua família marginal, o político evangélico é assassinado, numa tentativa corrupta de viagem aérea. Aparece o logotipo titular da obra, enquanto os seus personagens fogem alucinados pelas paisagens paraibanas. O principal refúgio é um convento assaz heterodoxo, onde cultiva-se maconha e energia anal. Estão alicerçados os parâmetros discursivos de um dos filmes brasileiros mais anárquicos dos últimos tempos.


    Emulando bastante o cinema brasileiro setentista – apelidado justamente de “cinema marginal” ou “pós-novo” - este filme posiciona-se frontalmente contra os determinismos conservadores que instalaram-se hodiernamente no cenário político do Brasil. Com a ascensão da direita ao poder, as ameaças de censura cultural reinstalam o pavor associado à ditadura militar que erigiu-se através de um golpe de Estado, em 1964. Um forte moralismo convertido em justificativa-chave para emendas legislativas faz com que o cenário político brasileiro esteja atualmente regido pelo signo do regresso, do atraso, da condenação traiçoeira destinada a qualquer manifestação de originalidade subversiva. E é contra tudo isso que o cineasta paraibano Tavinho Teixeira investe vigorosamente.



           Por motivos óbvios, este filme é abundante em cenas de nudez e sexualidade incontida. Desafia ostensivamente os clamores censórios hodiernos e possui ecos paródicos de inúmeras obras cinematográficas, musicais e televisivas. Como é praxe na curta mas eloqüente filmografia teixeiriana, as referências metalingüísticas são exacerbadas, bem como as homenagens discursivas: impossível não pensar no clássico espanhol “Maus Hábitos” (1983, de Pedro Almodóvar). Mas as intenções do brasileiro são diferentes: o inimigo que ele expõe está imponentemente vivo nos tempos atuais, e beneficia-se absurdamente das brechas de atenção desencadeadas pelo agendamento jornalístico. A obnubilação pretendida pelo acúmulo de impropérios presidenciais tem a ver com as medidas de protofascismo aprovadas sorrateiramente. E, com isso, o meio ambiente, a previdência social e os preceitos educacionais são devastados enquanto discutimos sobre a vilania intrínseca ao conservadorismo neo-ditatorial. Tempos difíceis nós vivemos!


    Voltando a “Sol Alegria”: no afã por deixar em aberto o elogio a este filmaço: desenhado como um “filme de estrada”, não há necessariamente uma trama, mas um percurso. O pai (interpretado pelo próprio Tavinho Teixeira) apresenta-se de maneira circense como um ex-fascista, como um “cidadão de bem” de outrora, agora liberto de seus ditames persecutórios; a mãe (Joana Medeiros) é uma ativista que entoa celebremente versos da cantora argentina Mercedes Sosa; o filho (Mauro Soares) aparece nu ao longo de quase todo o filme, veste uma jaqueta de couro à la Kenneth Anger, e confronta o pai em pleno espetáculo de assunção de princípios; a filha (interpretada por Mariah Teixeira, co-diretora e filha do diretor na vida real) é descrita como “a última mulher fértil do mundo”; e, além destes, há um agregado de nome Toreba (interpretado por um ator com a mesma alcunha), frenético e efusivo, espécie de mentor espiritual da família em pauta. Seus interesses: a deflagração de um caos que restaure a ordem da liberdade de expressão. O maior empecilho: a surrupiação distributiva que o filme vem sofrendo. Nossa missão, enquanto espectadores críticos: divulgar a pujança emergencial desta obra de puro alvitre revolucionário. Imperfeito sim, mas radicalmente contrário à hipocrisia dos Aparelhos Ideológicos de Estado!



Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP: #EAGORAOQUE (2020, de Rubens Rewald & Jean-Claude Bernardet)


 

     No auge de seus 83 anos de idade, o crítico Jean-Claude Bernardet hoje prefere atuar em filmes que escrever sobre eles. Em razão de uma acentuada perda da visão, ele precisou redefinir a sua relação com o cinema. Apesar de compartilhar a direção do filme com Rubens Rewald e de utilizar seu próprio nome no filme, não interpreta a si próprio, mas a uma caricatura de si mesmo. Idem para o filósofo Vladimir Safatle, que chega a utilizar imagens suas em entrevistas antigas e canta e discute ao lado de sua filha, Valentina Ghiorzi. Ele também se auto-interpreta sob o signo da caricatura, quase como se estivesse a zombar de sua tendência à retórica política…



    Construído de maneira excessivamente fragmentada, como se fosse uma retrospectiva televisiva de final de ano, este filme deixa evidente a sua ironia autocrítica desde o título, onde insere uma “hashtag” pré-interrogativa, demarcando o que pode ser compreendido como uma audiência de “bolha”. Nas vinhetas que compõem o filme, a pergunta titular surge em distintos contextos, como indicativo de ausência de uma resolução concreta para os problemas apresentados. Conforme lido num artigo de jornal, no início do filme, “a esquerda só sabe reagir, e não propor”. Os diferentes embates do personagem de Vladimir Safatle, ao longo da narrativa, comprovam esta falibilidade estrutural do pensamento acadêmico: ele evita responder a uma pergunta do saudoso provocador Antônio Abujmara [1932-2015], quando é-lhe questionado se ele “fala a língua do povo”; queda paralisado na representação de uma discussão de interesses com o pernambucano Valmir do Côco; e tem as suas boas intenções organizacionais dispensadas enquanto signo histórico da colonização branca, num debate com os militantes de uma favela paulistana.



    Bastante barato, de termos de orçamento, o filme possui seqüências comprometidas por questões de direitos autorais, no caso de um vindouro lançamento cinematográfico: o personagem Vladimir é interpelado numa peça teatral de José Celso Martinez Corrêa e possui um rol gigantesco de coadjuvantes importantes, que vai de Mano Brown a Carmem Silva e Guilherme Boulos, em imagens de arquivo. A atriz negra Palomaris Martins surge como um terceiro vértice do elenco, no papel da gerente de um banco comunitário, que realiza empréstimos aos moradores usando uma moeda específica, o Sampaio. Insistindo que há, sim, a possibilidade de concatenar empreendedorismo e comunidade, ela é mais uma das personagens a realizar o questionamento titular ao personagem safatleano. O filme, portanto, não se propõe a responder nada, mas justamente ao viés contrário: acumula perguntas, assumindo o caráter de chiste discursivamente masturbatório.



    Há cenas de relativo impacto, como quando Bernardet corta o próprio peito com uma faca e depois exibe-se para a sua empregada doméstica, numa conversa sobre o alto preço dos produtos alimentícios; o recital de uma canção de Patti Smith por Safatle e sua filha; e o momento em que Bernardet canta a “Internacional Socialista” durante o banho. Mas é um filme que apenas gira em torno de si mesmo, como muitas das reuniões políticas hodiernas. Cumpre a sua função enquanto exacerbação metalingüística, portanto.  



Wesley Pereira de Castro. 


* Mostra SP 2020: DIAS (2020, de Tsai Ming-Liang)


     Conhecido por suas obsessões em relação à incomunicabilidade humana, o cineasta malaio Tsai Ming-Liang concebe um dos maiores paradoxos em relação ao tema, no filme que estende suas marcas registradas a píncaros extremados: apesar de suas mais de duas horas de duração, "Dias" foi lançado internacionalmente sem legendas, visto que, para fins publicitários, é um filme sem diálogos. Porém, é justamente o filme do diretor em que seus personagens mais conversam, mais interagem positivamente...



    Na trama que se descortina mui lentamente, há apenas dois personagens: o recorrente Hsiao-Kang (interpretado por Lee Kang-Sheng, que protagoniza os filmes do diretor há décadas) e o belo garoto de programa Non (vivido pelo estreante laosense Anong Houngheuangsy). O segundo é um imigrante que sobrevive fazendo massagens eróticas para homens solitários; o primeiro, é um homem que envelheceu diante das câmeras, nos diversos filmes do diretor. Aqui, ele está às voltas com a dor no pescoço que o aflige desde "O Rio" (1997). Agora, lida com os seus anseios homossexuais com mais sobriedade, ainda que isso o angustie bastante. 



    O encontro entre os mencionados personagens dá-se após seqüências minuciosamente delineadas, vinhetas cinematográficas que expõem o cotidiano silencioso de ambos os homens: o mais jovem deles aprecia cozinhar, sendo muito higiênico quanto à lavagem dos vegetais que adquire, bem como em relação à limpeza de seu próprio corpo; o mais velho esforça-se para conter uma dor que progride para todos os órgãos. Numa mui demorada sessão de massagem, Hsiao-Kang e Non transam, mediante pagamento. Mas isso não oblitera a possibilidade de diálogo entre eles. Abraçam-se. Comem juntos. Pensam um no outro. Mas a tristeza pós-coito é implacável! 



    No primeiro enquadramento, o elemento central de toda a filmografia ming-lianguiana é abundante: a presença da água. Enquanto contempla a chuva torrencial, Hsiao-Kang deixa um copo cheio de água ao seu lado. Noutro lugar, Non lava coentro, alface e cebolinhas em seu banheiro, onde a água é também onipresente. Para quem já admirava o cinema deste diretor, encontra aqui o supra-sumo de seus interesses, a quintessência de suas persecuções. Uma obra-prima, em suma. 




    Intencionalmente vagaroso, "Dias" não tematiza o enfado. Pelo contrário, aliás: nas seqüências longas, pausadas e cotidianas, há muito a ser visto e (re)interpretado a partir dos rituais diuturnos levados a cabo pelos personagens, no enfrentamento de seus abandonos hodiernos. Não se sabe o que eles estão fazendo na Tailândia, mas compreende-se em seus silêncios o desamparo que é sentido por eles. A confluência entre eles é desejada, em múltiplos sentidos - conforme já aconteceu em várias obras do diretor, permeadas pelo erotismo inaudito. Este filme, portanto, torna-se, entre múltiplos aspectos, uma reflexão magnânima sobre a velhice. Trata-se de uma obra-prima, insistimos! 



Wesley Pereira de Castro. 



terça-feira, 27 de outubro de 2020

TARTUFO (1925, de F. W. Murnau)


 

Dentre os cineastas expressionistas, F. W. Murnau [1888-1931] destacava-se pelo modo como conciliava os enredos lúgubres, característicos da situação do país à época, com a inventividade formal concernente ao movimento enquanto vanguarda artística. Sendo assim, ele atinge êxito ao transmutar a pujança anti-hipócrita da peça original de Molière através de soluções visuais bastante pertinentes, como sombras que deambulam através de espaços diversificados, graças à fotografia tipicamente contrastada de Karl Freund.



Numa determinada seqüência, uma mulher seduzida pergunta ao personagem-título: “é pecado o que estamos fazendo?”. Ao que ele responde: quando se peca escondido, não se peca de fato”. Com isto, fica evidente o quanto ele beneficia-se dos engodos levados a cabo por falsos puritanos que anseiam por usurpar as fortunas (materiais ou não) das pessoas que se submetem à sua influência...



De acordo com o exegeta Siegfried Kracauer, o filme era também “tartufiano”, pois mantinha em estado de deleite “uma platéia ansiosa para manter intocado o que estava escondido”. Por isso, ele considerava desnecessária a estória-moldura contemporânea, em que vemos um velhinho ser explorado e lentamente envenenando por sua cobiçosa governanta. Porém, ela justifica o questionamento ousadamente direcionado ao espectador, num intertítulo: “tu sabes quem está ao teu lado?”.



Conforme demonstram filme e peça, os “tartufos” estão em todos os lugares, a maioria deles ocupando cargos políticos que autorizam que suas deformações ideológicas sejam perpetuadas ao longo dos tempos e tão aceitas quanto a limpeza equivocada que o velho interpretado por Hermann Picha cria encontrar em sua casa...



Wesley Pereira de Castro. 

FAZ SOL LÁ SIM (2018, de Claufe Rodrigues)

 

Ainda nas seqüências iniciais, quando o documentário apresenta-nos ao município alagoano de Marechal Deodoro, alguns depoimentos chamam a nossa atenção: num deles, um senhor comenta que em cada rua da cidade há pelo menos um músico; noutro, dois atores compartilham uma tradição local. Segundo eles, quando nasce uma criança na redondeza, os pais jogam um pouco de barro na parede. "Se cair, ele será pescador; se ficar grudado, ele será músico". A depender do que é mostrado no filme, muito barro deve ter ficado grudado nas paredes... 


Analisando de maneira bastante divertida os métodos de ensino - e, por extensão, de convivência social - utilizados pelas sociedades filarmônicas da cidade, o documentário estabelece de maneira sensível as diferenças entre cada uma delas: há a que não tem receio de incorporar músicas contemporâneas ao acervo; há a mais tradicional, em que até mesmo os cabelos dos partícipes são supervisionados e quem tiver tatuagem não pode participar; há aquela em que o maestro leva os seus protegidos em casa... Cada qual à sua maneira, essas organizações musicais amparam os jovens nordestinos, que vivem numa das regiões litorâneas mais bonitas do País. O que, infelizmente, não assegura-lhe melhores condições de trabalho ou oportunidades rentáveis: o sonho da maioria deles é ingressar na banda da Polícia Militar, mas pouquíssimos conseguem atingir este objetivo. Os casamentos precoces surgem como provedores de certo alento, para quem não consegue evadir-se da cidade ou progredir musicalmente... 


Num estratagema acertado, o diretor - com formação jornalística e experiência consagrada na emissora GloboNews - concede direito de voz aos mais diversos personagens, desde o maestro que confronta o depoimento de um colega, que alega que não mais haver rivalidade entre os músicos, em sua maioria adolescentes, até o senhor aposentado que afirma não ter enriquecido, mas agradece sorridentemente pela vida que a Música concedeu-lhe, malgrado a sua intensa rotina de trabalho. No terço final, o filme entrevista o fundador da banda de pífanos Esquenta Muié (que, infelizmente, falece durante o processo de finalização do documentário) e o célebre Nelson da Rabeca, que chegou a receber uma estátua, em sua homenagem, numa praça central de Marechal Deodoro. Porém, esta é comumente vandalizada. Por qual motivo? Talvez, porque ele e sua esposa não sejam nascidos naquela cidade e tiveram uma trajetória bastante nômade, "vivendo como ciganos", como ela afirma. O que não diminui a valorização de seus méritos culturais, reconhecidos até mesmo internacionalmente, como ele faz questão de frisar. 



Por causa do currículo profissional do seu realizador, o documentário possui um caráter de reportagem estendida, na maior parte de sua extensão. Mas é sempre agradável de ser visto, ainda que alguns relatos comovam-nos por sua dramaticidade inevitável: a despeito de sua riqueza musical, o município é lancinado por privações governamentais e pelas dificuldades socioeconômicas inerentes à região. Isso explica o porquê de muitos de seus moradores eventualmente confundirem tradição com moralismo excessivo, sendo comuns as censuras ao comportamento das mulheres nas falas captadas. Um ex-militar reclama que, naquela lugar, "as meninas costumam perder-se muito cedo". O simpático marido de uma maestrina, por sua vez, declara que ela é uma excelente jogadora de futebol, mas "não fica bem para uma mulher casada continuar divertindo-se dessa maneira". Não obstante a temática musical ser anunciada desde o seu título espirituoso e poético, "Faz Sol Lá Sim" serve também como radiografia de apanágios históricos do Nordeste. É um registro sincero, portanto - e contagiante! 



Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP: SOBRADINHO (2020, de Cláudio Marques & Marília Hughes)


 

A filmografia dessa dupla de cineastas radicados na Bahia é demarcada pela juventude: seja enquanto tema direto de seus filmes, seja pelo arrojo estilístico que permeia as suas narrativas revoltosas. No quarto longa-metragem que realizam, com enfoque assumidamente documental, a perspectiva geracional é diferente: acompanhando-se as lembranças da espirituosa Dona Pequenita, idosa que vive sozinha na cidade parcialmente inundada de Pilão Arcado, é promovido um reencontro com três assistentes sociais que voltam ao local, a convite dos realizadores. Estas participaram do processo de remanejamento habitacional dos moradores que viviam nos municípios alagados durante a construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, no início da década de 1970…



Retomando um assunto que forma uma trilogia indireta com o curta-metragem "Desterro" (2012) e com o longa semificcional "A Cidade do Futuro" (2016), os diretores contrastam o que é narrado por Dona Pequenita aos cinejornais da CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco, aos documentários efusivos da Rede Globo de Televisão e a apropriação melodramática da situação sertaneja numa telenovela de Janete Clair, “Fogo Sobre Terra”, lançada em 1974. Nas imagens em preto e branco, Juca de Oliveira e Regina Duarte formam um casal afetado diretamente pelos planos de uma empresa hidrelétrica, que planeja alagar a cidade em que vivem. Durante a produção, a telenovela sofreu muita censura, por parte do Governo Militar, pois temia-se que ela incitasse os espectadores a posicionarem-se de maneira contrária à construção da represa de Itaipú, então em curso naquele período. Hoje, todos sabem que tipo de ideologia a atriz supracitada apregoa…



No documentário, as assistentes sociais confessam que não compreendiam adequadamente as conseqüências do que faziam. Insistem que agiram com as melhores intenções e que não sabiam muito sobre o jugo da ditadura militar, pois viviam “soltas na buraqueira”. Eram recém-concursadas, jovens e motivadas por ideais de edificação nacional, conforme veiculado pelas campanhas publicitárias governamentais do período, amplamente falaciosas. Ao reverem as fotografias e filmagens realizadas durante o período de transporte das famílias para cidades construídas às pressas para recebê-los, elas exibem uma conscientização temporã acerca das agruras para as quais contribuíram. Uma delas, chora. Dona Pequenita, por sua vez, prefere cantar as marchinhas de Carnaval de que ainda se lembra. “Quem veve na beira do rio é tranquio”, repete ela, mais de uma vez, sorrindo.



Neste filme mais recente, os diretores demonstram que a juventude a que tanto vinculam-se não tem a ver exatamente com faixa etária. Conforme dito pelo co-diretor, em depoimento pessoal sobre a sua parceria com Marília Hughes: “temos muita paixão, energia e desejo de nos comunicar. Estou envelhecendo, mas ainda não perdi isso. Quero fazer as coisas com mais calma”. Está explicada a mudança de ritmo em "Sobradinho", portanto. As imagens e sons captadas por ele são mui acolhedoras!



Wesley Pereira de Castro. 



domingo, 25 de outubro de 2020

* Mostra SP: SIBERIA (2020, de Abel Ferrara)


     Extremamente católico, Abel Ferrara é um cineasta demarcado pelas contradições que se coadunam: ao realizar um filme atípico, realiza também um dos mais sintéticos de sua filmografia. E, ao escolher, mais uma vez, Willem Defoe como colaborador actancial, consegue que ele interprete de maneira um tanto automática e, ao mesmo tempo, esteja cada vez mais parecido com o que vislumbra para os seus personagens (numa comparação consigo mesmo), além de demonstrar o sumo talento de um dos melhores e mais prolíficos atores norte-americanos... 



    Não obstante o título bem definido deste filme, a geografia adotada pelo cineasta é emocional, mesclando diversos países numa mesma região, a do surrealismo eminentemente masculino. Em seu roteiro repleto de idas e vindas por traumas relacionais mal administrados, Abel Ferrara compartilha com o espectador psicoses que são suas, o que justifica o hermetismo inicial da trama. Pouco a pouco, vamos identificando os elementos, percebendo as recorrências temáticas (a associação entre sexualidade e maternidade, em destaque) e notando o quão incrível é a transmutação do protagonista em diversos personagens, como se o alter-ego-mor se subdividisse em vários outros, que - literalmente - carregam um mesmo código genético. A carga paterna é sobressalente: a filha do próprio diretor interpreta o filho do protagonista, que, enquanto personagem, é também o artífice postural de seu pai, a quem os médicos disseram estar morto. Como sói acontecer em vários de seus filmes - mais uma vez, numa aplicação de um dogma católico central - os filhos pagam pelos pecados de seus progenitores. Família é reduto de amor, mas também de aflição hereditária!



    Num dos diálogos mais elogiáveis (e reconhecíveis), o protagonista Clint comenta: "o meu maior pecado foi te amar demais - e tu sabes disso". Sua ex-esposa aparece em memórias, requerendo um acerto de contas, que dispersa-se em múltiplos massacres. Frases em vietnamita, russo, inuíte e hebraico, entre outros idiomas, dão a tônica da narrativa circunloquial, típica de um pesadelo, mas que revela-se um percurso possível de redenção. No desfecho, a empatia que Abel Ferrara tanto esforça-se para que sintamos em relação ao protagonista - variação de si mesmo - é alcançada. Musicalmente, o perdão é atingido. "Enquanto eu ando, eu me pergunto/ O que deu errado com nosso amor?/ Um amor tão forte...", canta Del Shannon. Em reação, Willem Defoe dança freneticamente!



    Servindo-se até mesmo de imagens telescópicas, a fim de transladar imageticamente os estágios emocionais do protagonista, este filme possui um ritmo lento e impregnado de contrição. Os encontros são fugidios, nem sempre imediatamente inteligíveis, mas todos acrescentam algo ao périplo existencial do protagonista. No desfecho, a narração de abertura - sobre as pescarias com o pai - e a leitura nietzscheana que surge numa das lembranças são assimiladas intimamente: tudo faz sentido! É um filme deveras pessoal, mas que não refuta o diálogo coletivo: deseja-o compulsivamente, aliás. O problema é que, entre o ato de ferir e a reação aos golpes infligidos, há algo que confunde as palavras, dificulta a equanimidade comunicacional: os gritos de dor!



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 24 de outubro de 2020

* Mostra SP: PILATOS (2019, de Linda Dombrovszky)


 

    Quando deparamo-nos com a sinopse deste filme, a primeira referência que salta aos olhos é "Sonata de Outono" (1978, de Ingmar Bergman), por causa das tensões que envolvem a convivência súbita entre mãe e filha. Mas o contexto é radicalmente distinto: aqui, a figura autoritária é a filha, que deseja controlar minuciosamente todos os passos de sua genitora. O apelo enredístico precisa do romance original para fazer sentido: “os mortos não respondem”, escreve Magda Szabó [1917-2007], uma das mais importantes autoras húngaras…


    No enredo, são inúmeros os bloqueios emocionais de mãe e filha: logo no começo, sabemos que o marido da protagonista falece de câncer. Sua filha, que é médica, vende a casa onde a mãe conviveu por tanto anos com o homem que amava, sem mesmo consultá-la. Ela sente falta até menos das notícias que ele lia, não por serem eram importantes, mas porque deliciava-se com a sua voz. Sua filha, entretanto, é pragmática: não quer lembranças desnecessárias ou móveis antigos. Sufoca a sua mãe com presentes desnecessários, ao passo em que deixa malograr o seu relacionamento recente com um psicólogo. É um filme curtíssimo, mas que existe bastante carga existencial por parte do espectador.


    Dividido em quatro capítulos relacionados aos elementos naturais, ele inicia-se com a Terra, onde conhecemos os baluartes relacionais de ambas as personagens; segue-se o Fogo, onde os conflitos instalam-se; tenta-se um novo estabelecimento de interesses com a Água; e o Ar é o suspiro que resta… Tal qual o clássico bergamaniano supracitado, os diálogos são intensos e sufocados. Em chave invertida, as brigas desencadeiam um cotejo violento com as lembranças familiares dos espectadores. Trata-se de um telefilme muito elogiável, que recebeu prêmios de interpretação em vários festivais: a veterana Ildikó Hámori está excelente no papel principal, mesclando a fragilidade submissa de sua personagem com a infelicidade despótica da personagem de Anna Györgyi. Palmas para a excelente direção feminina – também premiada – e para as interpretações de ambas!


Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP: PARI (2020, de Siamak Etemadi)


 Não é nada casual que, num dos encontros fundamentais que trava na Grécia, alguém peça para a protagonista (muito bem defendida por Melika Foroutan) explicar o significado de seu nome. "Pari significa algo com asas...". "Um anjo?", interrogam-lhe. Somente muito tempo depois, ela encontrará a palavra correta: "uma fada"! E isso aplica-se ao filme como um todo, visto que a narrativa transita entre o pasticho militante e o percurso feérico, com forte elã feminista. 



A despeito de alguns elementos narrativos pouco verossímeis que permeiam a chegada dos pais do estudante Babak à Grécia, estes são reinterpretados sob a chave da incomunicabilidade cultural: por mais carinhoso que seja Ahmadi (Bijan Daneshmand) em relação à sua esposa, ele carrega até mesmo em sua efígie os traços nacionais de opressão. Vamos descobrindo que ele age de forma até abnegada em relação a ela - visto que o filho que ela tanto busca sequer é dele! - mas inevitavelmente a aprisiona, conforme fica evidente em toda a seqüência do aeroporto, em que o vislumbre de uma porta deslizante que se abre metonimiza, no olhar de Pari, o quanto ela deseja fugir... 



Na abertura, a protagonista recita os versos enômanos do poeta afegão Rumi [1207-1273], que encontra posteriormente espalhados - e traduzidos para o inglês - no quarto onde morou Babak. Com isso, o roteiro antecipa a correspondência de caracteres entre ela e o filho: ambos desejam vagar pelo mundo, ambos possuem fascínio pelo comportamento típico dos dervixes. Por ser homem e jovem, ele consegue. Ela deseja, busca, mas sucumbe às necessidades matrimoniais, muito exigentes em seus país natal. Na Grécia, após mais de um mês de confinamento forçado, ela emancipar-se-á: a derradeira seqüência do filme, em que a protagonista é mostrada, de costas, contemplando o mar, é absolutamente sublime!



Os indícios que reforçam o comportamento desejoso de Pari são abundantes na trama: além dos já mencionados, o instante em que seu chador incendeia-se, durante uma manifestação, é deveras sintomático. É ela que possui a alma ígnea, não sendo mais capaz de conter a verve incendiária de seus anseios. Dessa maneira, a busca insaciável pelo filho converte-se no ato de encontrar-se comigo mesma, enquanto processo de transferência simbólica: os 'flashbacks' que mostram-na amamentando o pequeno Babak emulam o mesmo tom libertário dos poemas de Rumi e da anarquista que beija Pari, repentinamente. A protagonista é muito maior que o filme, portanto: por ela, todos os equívocos do irregular itinerário roteirístico justificam-se! 



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: NOVA ORDEM (2020, de Michel Franco)


 Durante e após a sessão, são abundantes os conceitos foucaultianos que aplicam-se à análise deste filme. Expressões como "microfísica do poder" e "sociedade da vigilância" são apenas algumas que precisam ser obrigatoriamente mencionadas, dada a rigorosa aplicação nesta obra poderosamente distópica, que é lançada num momento em que a extrema-direita política foi eleita em inúmeros países. Por vias democráticas, a perda constitucional de direitos foi aplicada: chegamos a um momento histórico em que os absurdos da realidade superam a mais apavorante ficção... É o caso deste filme!


Antes do 'tour de force' directivo aplicado na longa seqüência do casamento, há um despejo de imagens estranhamente coloridas, em que pessoas nuas são cobertas de tinta verde e sinais de violência física - em larga escala - são detectados. A evacuação súbita de um hospital induz-nos a desesperadas interpretações, até que somos apresentados aos personagens centrais, pertencentes a uma riquíssima família da alta sociedade mexicana. A filha mais nova, Marianne (Naian Gonzalez Norvind), é a noiva. Ela será seqüestrada, o que desencadeará eventos acachapantes... 


Um dos grandes méritos do filme é a sua ambivalência moral: não obstante os aquisitivamente favorecidos serem comumente noticiados como os vilões da corrupção nacional, não importa qual seja o País, a protagonista é extremamente carismática e benevolente, o que aumenta o impacto das agressões que ela sofre. Porém, toda a frenética movimentação exordial é atravessada por questionamentos de lógica narrativa. Afinal, quem ousaria pedir tanto dinheiro a um patrão na cerimônia de casamento de um de seus filhos? Quem teria a audácia de se casar luxuosamente em plena erupção de um levante urbano? Como os manifestantes puderam escalar tão facilmente os muros (incrivelmente baixos) daquela mansão? As respostas a estes questionamentos não resvalam em defeitos de verossimilhança, mas em adesão prévias às convenções alegóricas. Conforme dito anteriormente, malgrado o realismo supremo do filme, trata-se de uma abordagem distópica, potencialmente aplicável a um futuro bem próximo... 



Fazendo excelente uso dos sons em 'off', a magistral direção de Michel Franco mantém-nos em pleno escândalo: independente de quem esteja sendo espancado, as táticas de tortura e chantagem são insuportáveis, sem contar os reiterados estupros sexuais, a fim de desestabilizar por completo os reféns, de ambos os sexos. Nalguns momentos, vê-se que os empregados das pessoas ricas colaboram com o seqüestro e com os assassinatos em massa, o que retroalimenta a contínua desconfiança entre classes. O roteiro leva a crise do Capitalismo ao seu píncaro, visto que não há união de uma classe contra outra, mas pobres X pobres, pobres X ricos, ricos X ricos, todo mundo X todo mundo. Numa conjuntura de corrupção escalonada, não há qualquer tipo possível de união, exceto quando provisória e oportunista, permeada por inúmeras mentiras. Em seu corolário extremado das noções de vigilância e punição estudadas por Michel Foucault [1926-1984], o filme serve como uma advertência equânime a todos os espectadores, para além de suas condições classistas: é isso o que o fascismo e a monetifagia fazem com as pessoas!



Se, sociologicamente, o filme é intencional e inevitavelmente lacunar, em termos narrativos ele é primoroso: cumpre as suas funções advertentes da maneira exacerbada pelo qual o diretor é conhecido, sendo ele um polemista acostumado às diatribes e polemismos, nem sempre no melhor sentido destas palavras. Aqui, ele conta com um elenco extremamente afiado e com uma equipe que obtém êxito na implantação de efeitos documentais e parajornalísticos à apresentação dos fatos: é difícil quedar emocionalmente incólume ao final da sessão. Seria essa mais uma confirmação da índole questionável de seu diretor, conforme reclamam os seus detratores? Toda e qualquer interpretação é válida diante do medo. Eis o real perigo. Atentemo-nos à realidade! 



Wesley Pereira e Castro. 

* Mostra SP 2020: MOSQUITO (2020, de João Nunes Pinto)


     A cartela que, nos créditos finais, anuncia que este filme foi livremente inspirado numa história verdadeira, é quase redundante: são amplamente conhecidas as versões similares de brutalização associada à guerra, que trazem à tona o que os homens têm de pior diante daqueles que deveriam ser reconhecidos como os seus semelhantes. E, não obstante ter como referência a I Guerra Mundial, as imagens de batalha que aparecem neste filme explicitam sobretudo as conseqüências de conflitos interiores... 


    Iniciado em 1917, o roteiro apresenta-nos ao jovem Zacarias, que chega em Moçambique, a fim de defender a nação portuguesa. Enquanto soldados matavam-se na Europa, este garoto, com apenas 17 anos de idade, testemunhará mazelas traumatizantes. Do mesmo modo que o protagonista de "Vá e Veja" (1985, de Elem Klimov), ele envelhecerá mui precocemente, sendo vital para a transposição fílmica deste efeito a completa entrega do jovem João Nunes Monteiro à sua interpretação. Sendo quase dez anos mais velho que ele, traduz em olhares aflitos e abandonados todo o estupor de seu personagem, que tem qualquer vestígio de inocência dilacerado pelas múltiplas guerras que enfrenta. Desde a guerra inicial contra a autoridade paterna, relatada numa carta, que o levou a alistar-se no Exército, até a guerra vilanaz de colonização na África, que maltrata de maneira inclemente pessoas completamente alheias à disputa das grandes potências nacionais. A submissão dos moçambicanos, que carregam os soldados portugueses nas costas durante um desembarque, escandaliza-nos desde o começo: é um filme sobre o Mal, naturalizado por seres humanos que apregoam a equivocada superioridade de uma raça sobre outras. 


    Inicialmente absorto, Zacarias esforça-se para compreender as regras de respeito hierárquico que balizam o relacionamento entre os soldados. É ensinado a tratar os seus servos africanos como inferiores a animais de carga, meras coisas que se movem em benefício do homem branco. Tem a sua virgindade sexual questionada, e é orientado a logo "enfiar a minhoca na terra preta", numa piada de alto teor machista, que revela a falta de caráter dos seus comandantes. Até que ele vê-se abandonado em meio à selva...



     Daí para a frente, o filme obedece a um percurso deveras assemelhado ao de "Aguirre, a Cólera dos Deuses" (1972, de Werner Herzog): Zacarias age com bazófia quanto a tudo com o que se depara, mas logo sucumbirá ao desespero de rezas culpadas, em que pede perdão "por ter pecado em pensamentos, palavras, atos e omissões", conforme foi ensinado, sem necessariamente acreditar. Seus monólogos de autodescoberta contagiam a banda sonora, bem como as frases de efeito proferidas por um ermitão que o resgata: "devemos andar na Música, e não na Matemática. A primeira foi concedida por Deus aos homens, enquanto a segunda foi criada pelos homens para tentar explicar Deus". A convivência forçada que mantém com alguns africanos, após ser capturado por uma tribo composta apenas por mulheres, o obrigará a amadurecer.  Zacarias sobrevive, foge... Até que um novo encontro o induz, mais uma vez, a gabar-se de uma autoridade que não possui. E que não se sustentará nem mesmo com o exercício da força, do poder de matar via empunhamento de uma metralhadora!



    Muitos dos efeitos alucinantes deste filme devem-se à perfeita confluência entre seus elementos técnicos: a magnífica fotografia de Adolpho Veloso, eventualmente embaçada nas laterais, e o esplêndido desenho de som tornam-nos cúmplices dos sentimentos atordoados de Zacarias, que vaga entre o embasbacamento ecológico e o ódio imputado por seu treinamento bélico. A trilha musical utiliza sons eletrônicos que reforçam o caráter transeúnico da imersão do personagem num ambiente sobremaneira inaudito. Até que ele constata, escandalizado, que a guerra para a qual foi convocado acabou...



     No desfecho, o filme é quase tautológico na exposição desumanizadora, que, conforme percebemos, poupou Zacarias, em comparação com outrem. Seu comandante diz que ele não viu o suficiente da brutalidade da guerra e que, por causa disso, seria incapaz de compreender o que os demais soldados enfrentaram, tentando explicar assim a malevolência de seus atos cotidianos, já em contexto "oficial" de paz. Fotografias reais da colonização de Moçambique por Portugal aparecem na tela, situando historicamente os eventos e forçando-nos a admitir que aquilo ainda continua a acontecer... As guerras não acabam: são apenas narrativamente transferidas! 



Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: LIMIAR (2020, de Rouzbeh Akhbari & Felix Kalmenson)


 

    A abertura remete a "Nostalgia" (1983, de Andrei Tarkovski): o ambiente iluminado por velas, a “Ave Maria” schubertiana na trilha musical, o plano longo e contemplativo, onde encontramos o protagonista num ambiente nevado, a observar a conversão geológica do infinito. Mas logo o filme muda de perspectiva: após os créditos iniciais, instala-se uma busca que será desenrolada até o último fotograma, cuja resolução é indistinta, em meio à neblina…


    A despeito do flerte inicial com a espiritualidade, a perquirição levada a cabo pelo protagonista é telúrica, profissional: é difícil identificar o que está sendo mostrado, mas, de acordo com a sinopse, acompanhamos um diretor de cinema, que percorre espaços ermos em busca de locações para seu próximo filme. O tema do mesmo é assaz pretensioso: uma investigação sobre o Universo, a partir da consciência do Homem enquanto força organizadora. A fim de compreender aquilo com que se depara, o diretor tenta aprender o idioma local enquanto come, aprecia as canções que ouve no rádio. Mas perder-se-á no vazio da incomunicabilidade


    Como era de se esperar, a fotografia do filme é deslumbrante. Ruínas históricas – identificadas como do século XI – são percorridas pelo cineasta, que é impregnado pela aura religiosa dos ambientes. Mas a espiritualidade é interditada, de modo que, em sua amplitude solitária, o filme parece advogar a misantropia. No afã por compará-lo a algum título semelhante, podemos encontrar alguns pontos de contato com o longa-metragem brasileiro "Fendas" (2019, de Carlos Segundo), sobre uma professora de Física quântica que, quanto mais mergulha em sua esotérica pesquisa, mais descobre sobre si mesma, deparando-se até mesmo com um inusitado pretendente romântico. Na pesquisa do personagem armênio, o que manifesta-se é desencontro e vazio. Os ruídos provavelmente balísticos que ouvimos na seqüência derradeira confirmam: não haverá a redenção prometida na abertura. Exceto, talvez, enquanto (re)interpretação pós-fílmica!


Wesley Pereira de Castro. 

SELFIE (2019, de Agostino Ferrente)


 

Em razão da franca acessibilidade digital – mais técnica que lingüística –, estão sendo abolidas muitas das convenções outrora exigidas nos produtos audiovisuais: é cada vez mais freqüente, por exemplo, que os telejornais insiram entre as suas manchetes anúncios de “notícias” captadas amadoramente, por pessoas comuns que tiveram a sorte de possuir um celular com câmera no momento em que algo inusitado acontece…


No cinema, isso ocorre há mais tempo: imagens trêmulas, fora de foco e com áudio pouco compreensível são consideradas adequadas à narrativa cinematográfica, para além das diatribes ensaiadas de alguns cineastas dogmáticos. A saturação deste formato chegou a tal ponto que é difícil distinguir produtos que prezam pela sinceridade na captação informal de imagens. "Selfie" é, neste sentido, uma grata exceção: o registro de uma amizade atravessada pelas pressões destrutivas das condições sociais periféricas. O anúncio de uma separação, portanto.


No projeto, os amigos Pietro e Alessandro recebem celulares potentes, a fim de registrarem as situações de seu cotidiano. Ambos têm 16 anos de idade, e vivem num distrito napolitano onde, há algum tempo, um adolescente foi injustamente assassinado pela Polícia, e a vinculação à Camorra surge como coerção onipresente. Eles resistem, ao manifestarem uma inocência atípica para a sua idade: o primeiro insiste em filmar as situações deprimentes de sua vizinhança, enquanto o segundo lida com o inevitável desamparo.


Formalmente, o filme abusa do recurso fotográfico em que os portadores dos celulares focalizam a si mesmos, em enquadramentos rudimentares, com vistas ao enfoque facial. Mas é justamente esse o grande mérito do filme: ainda que a montagem tenha sido realizada por alguém de fora, tudo o que é mostrado vem de dentro, é permeado pela esperança intermitente de quem diverte-se e trabalha nas condições disponíveis. Resta o consolo das típicas canções melodramáticas, que acompanham-nos por muito tempo após a enternecedora sessão…


Wesley Pereira de Castro. 

* Mostra SP 2020: PANQUIACO (2020, de Ana Elena Tijera)


 Visualmente, o filme é arrebatador. Mas esta característica traz consigo um problema diretamente relacionado: ele é "posado" demais, às vezes soa inautêntico, a despeito de sua fotografia irrepreensível. Em termos narrativos, por sua vez, este semidocumentário segue um percurso tão errático quanto o do personagem retratado, Cebaldo, um panamenho que vive há muitos anos em Portugal. Lá, ele trabalha num mercado de peixe e, por mais saudades que sinta de sua terra natal, torna-se cada vez mais aculturado. Tanto que, quando despe-se ao lado de um parente indígena, até mesmo sua pele parece esbranquiçada... 


Sobrepondo poemas e anedotas de quando os europeus conquistaram as Américas, de maneira violenta e invasiva, o roteiro do filme acompanha Cebaldo durante o seu retorno ao Panamá, a fim de enterrar alguém de sua família. Percorre os locais onde fôra criado e parece não mais reconhecer o que vê: estranha um pássaro que voa com um caranguejo no bico e carece banhar-se numa espécie de chá de ervas, a fim de retomar os seus vínculos espirituais. Neste sentido, o filme impressiona, compreende o deslocamento físico e anímico do personagem. Porém, estetiza demais, limita as epifanias concomitantes à realidade.


No Panamá, Cebaldo participa ativamente de uma festividade que celebra uma insurreição local: os moradores da cidade recriam as lutas com os invasores espanhóis e as mulheres cantam hinos. O olhar do protagonista é distante, como se tivesse esquecido o significado daquela cerimônia. Na tela, os versos que explicam o título do filme: Panquiaco foi um homem indígena que ensinou ao explorador espanhol Balboa o caminho para o Oceano Pacífico, em relação ao qual este proclamou-se descobridor. A Panquiaco, coube o sentimento involuntário de traição. Tudo isso aparece no filme, em alguma medida, mas o conjunto nem sempre é coeso. Beleza, por si mesma, não sustenta um bom filme! 


Wesley Pereira de Castro.