sexta-feira, 25 de novembro de 2022

SOL (2021, de Lô Politi)


O título monossilábico deste longa-metragem faz menção simultânea a dois substantivos: um deles é a contração nomenclatural de Solange, esposa de um dos personagens, falecida antes dos eventos apresentados, mas conservada, em efígie, na carranca de madeira que Teodoro-pai (Everaldo Pontes) esculpe em sua homenagem; o outro é o astro luminoso onipresente, que dota de muito calor e luz os cenários atravessados por Teodoro Filho (Rômulo Braga), que viaja até o interior da Bahia para reencontrar alguém que não via há muito tempo, mas que ressurge continuamente através de 'flashbacks' aquáticos, que logo converter-se-ão em 'flash-forwards' igualmente elementares. No desfecho, o mais jovem dos Teodoros imagina banhando-se com a sua filha Duda (Malu Landim), mais ou menos como o seu próprio pai fazia consigo. Como a relação entre pai e filho foi interrompida por conta de eventos que desencadearam muita culpa e vergonha - e, por conseguinte, várias tentativas de suicídio - será que isso também ocorrerá na relação geracional posterior? 


Por motivos óbvios, isso não é respondido pelo roteiro, escrito pela própria diretora, tanto quanto outras questões fundamentais permanecem irresolvidas ao longo do enredo, quiçá atreladas ao pseudo-pragmatismo do protagonista, mal construído em suas características íntimas. No afã por conectar-se com a filha, a quem não vê há muito tempo, e relutando em afeiçoar-se novamente ao seu pai, este personagem soa incoeso, pouco crível no desenvolvimento de suas atitudes e aquém do talento do ator a ele vinculado. A cena em que Teodoro Filho, bêbado, entra numa festa de rua onde está sendo executada uma versão em relato masculinizado da canção "Supera" - que ficou famosa na interpretação da cantora Marília Mendonça [1995-2021] - é vexatória! Por mais que a eficiente (porém xaroposa) trilha musical de Guilherme Barbato e Janecy Nascimento esforce-se para fazer com que nutramos empatia pelo protagonista, ele é desagradável em múltiplas instâncias, o que, infelizmente, estende-se para a avaliação do filme como um todo... 


Em meio às tentativas soçobradas de dotar de válida dramaticidade duas relações familiares interseccionadas, ambas prejudicadas pela falta de comunicação, o filme desemboca em situações tendentes à chantagem emocional, como quando Teodoro Filho pede à sua filha que descreva tudo o que está fazendo quando entra num banheiro ou quando ela explica o porquê de não poder ingerir xaropes, apesar de apresentar uma tosse renitente. Everaldo Pontes passa a maior parte do tempo calado, mas, quando pronuncia alguns poucos diálogos, demonstra que é, de fato, um dos melhores atores nordestinos de sua faixa etária. Pena que esta produção não faça jus ao talento dos envolvidos. As situações são tão atropeladas, em sua intenção afobada de sensibilizar o espectador, que tudo permanece atravessado pela lógica do pantim. Idem quanto às pouco convincentes aparições de Luciana Souza. Uma pena!


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

AUTODECLARADO (2022, de Maurício Costa)


Ainda mais complexo que o racismo explícito e/ou institucionalizado, o espectro do racismo estrutural instaura-se diuturnamente através de polemismos que desviam o foco orgânico da luta coletiva contra o preconceito. Ao fomentar conflitos envolvendo a controversa figura da pessoa parda - as comparações individuais efetuadas através do colorismo, por exemplo -, o fenômeno do racismo estrutural dificulta a compreensão generalizada acerca da necessidade e urgência das cotas raciais, em concursos públicos e universidades. E este é o tema nodal desde documentário, que traz a questão à tona desde a seqüência inicial, quando apresenta uma reportagem do programa "Fantástico", da TV Globo, na qual investigou-se o caso de um candidato que pintou-se de preto para concorrer às vagas destinadas às pessoas negras... 


Estruturado como se fosse um debate em rede social, este filme mescla depoimentos contundentes com a reconstituição de uma avaliação racial - quase como um julgamento -, na qual as características fenotípicas de uma jovem são analisadas por um grupo de contratadores. Paralelamente, acompanhamos os casos de denúncias de fraudes envolvendo a autodeclaração, além dos relatos pessoais de quem, desde a infância, convive com a chaga do racismo. O diretor, neste sentido, foi muito exitoso na coleta das falas, que vão desde os esclarecimentos contundentes do teólogo militante Frei David até as declarações de sociólogos sobre manifestações contemporâneas de lombrosismo, passando pelas valiosas contribuições da pesquisadora antirracista Winnie Bueno. Além disso, conhecemos um jovem sulista acusado de "não ser nem branco nem preto" e conhecemos os dilemas vivenciados por diversas pessoas, sob o jugo categoricamente indefinido da mestiçagem... 


Dentre os depoimentos com forte apelo emocional, temos: as lembranças de uma jovem de classe média que era discriminada pelos cobradores de ônibus, que estranhavam que ela não descesse numa comunidade aquisitivamente carente; as rememorações íntimas da brasiliense Bárbara Kruczynski, que chegou a ser ofendida por namorados por causa da coloração de seus órgãos sexuais; e as provocações compartilhadas pelo colunista Spartakus Santiago, que, ao referenciar o impacto da canção "Bixa Preta", de Linn da Quebrada, em sua trajetória, reclama que já foi questionado publicamente tanto como negro como enquanto homossexual. 


Não obstante a longa duração do filme (quase duas horas) e a utilização de uma linguagem midiático-televisiva, o ritmo deste documentário é envolvente, de modo que ele consegue ser didático e entretenedor ao mesmo tempo, conduzindo-nos a uma auto-reflexão obrigatória, quando uma situação paraficcional é deixada em aberto, sendo-nos direcionada de maneira interrogativa. As menções recorrentes à lógica binária do "preconceito de marca X preconceito de origem", cotejando o modo como o racismo implementou-se no Brasil e nos Estados Unidos da América, é outro aspecto mui positivo desta obra, que urge por divulgação. Façamo-la, portanto.



Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

DIÁRIO DE VIAGEM (2020, de Paula Kim)


A transcrição autobiográfica em livros ou filmes é uma tendência subgenérica acometida por uma ambigüidade essencial, no sentido de que os responsáveis por esse tipo de obra podem incorrer na condescendência ou no punitivismo em relação a fatos da própria vida. E, de fato, isso também ocorre neste filme, em que a diretora e roteirista - estreante em longas-metragens - projeta dramas pessoais na concepção da protagonista, vivida com corajosa entrega por Manoela Aliperti. Se os tormentos anoréxicos (e extensivamente depressivos) experimentados por ela asseguram a identificação com quem padece de transtornos semelhantes, pela intensidade com que são retratados, os elementos circundantes engendram a impressão oposta, o afastamento subjetivo, visto que os privilégios classistas da família em pauta podem desencadear interpretações malogradas, em âmbito político. Um ponto de partida interrogativo: por que o enredo faz tanta questão de reforçar que os eventos ocorrem durante a aplicação ministerial do Plano Real, de 1995 em diante? Considerando-se que a protagonista Liz é aburguesada, a insistência desse elemento histórico-econômico soa problemático em relação à fruição dramática do filme... 


Apaixonada por Literatura e pelas artes em geral (e também por Matemática), Liz viaja para a Irlanda, a fim de realizar um intercâmbio estudantil pouco explorado nas interações posteriores, exceto no que diz respeito ao interesse platônico da protagonista por Lucas (Daniel Botelho). Sentindo-se malquista pelos colegas de classe, ao ganhar um caderno de seu pai (Eucir de Souza), Liz resolve redigir as suas inquietações, de trás para a frente, a fim de metonimizar um processo similar ao de transformação de lagarta em borboleta. Na narração em 'off' que conduz o filme, Liz confessa-se para este diário, a quem chama de "Pupa". Em sua precocidade adolescente, ela compara-se indiretamente a Anne Frank [1929-1945], mas seu pai faz questão de estabelecer uma distinção fundamental: "enquanto ela viveu sob a guerra, tu desfrutas de paz e abundância". Repentinamente Liz decide parar de comer, submetendo-se a uma rotina violenta de supressão alimentar, que causa-lhe também amenorréia, automutilações e os tiques involuntários. Isso faz com que ela distancie-se cada vez mais dos poucos amigos e da família. Muitas garotas passam por esse mesmo tipo de sofrimento juvenil, de modo que o filme goza de uma boa comunicação com este público-alvo. Entretanto, a falta de nuanças na apresentação dos personagens secundários - principalmente a mãe de Liz (numa interpretação deveras inexpressiva da mui talentosa Virgínia Cavendish) - expõe as múltiplas fraquezas do filme, que levam-nos a julgar a protagonista quase da mesma maneia cruel com que ela trata a si mesma!


Não ignorando a gravidade dos temas abordados, lamenta-se que a indefinição do enfoque narrativo prejudique a nossa empatia em relação à personagem principal. Na maioria das vezes, claro, torcemos para que ela se recupere, sendo dignos de menção os esforços apresentados no desfecho elíptico do filme, em que a personagem demonstra-se disposta à recuperação, alguns anos depois que os seus distúrbios são diagnosticados. Porém, a maneira passivo-agressiva com que ela se relaciona com as pessoas ao redor beira a inverossimilhança reconstitutiva, como quando, na Irlanda, Liz reclama que algumas brasileiras que estavam consigo no avião não são suas amigas ou na cena em que uma garota se oferece para assinar em um curativo em seu pulso. O comprometimento actancial da jovem atriz com a sua personagem é aplaudível, mas o processo de construção tramática da mesma é incoeso - para além do que é permitido pelo registro da rebeldia adolescente. Trata-se de um filme que merece ser aproveitado para finalidades terapêuticas, por causa da maneira acessível [leia-se: previsível] com que ele é montado, mas que talvez funcionasse melhor como trama seriada, em que os desleixos ideológicos (vide a maneira como a empregada doméstica da família é tratada) tornar-se-iam menos evidentes. Em conjunto com o 'site' sobre "realidade prejudicada" idealizado pela diretora, "Diário de Viagem" é exitoso nalguns objetivos, mas nem sempre se sustenta enquanto peça cinematográfica. Vale pelo esforço compartilhado: ainda que não sejam suficientes, boas intenções importam!


Wesley Pereira de Castro. 

A MÃE (2022, de Cristiano Burlan)


 

Uma das principais funções do título de um filme é sintetizar as perspectivas que o espectador buscará naquela obra, seja em termos de identificação seja no que diz respeito a uma necessária catarse em relação às angústias cotidianas. Ao escolher um artigo singular definido feminino mais o substantivo comum mais pronunciado, desde a infância, por qualquer indivíduo, o diretor Cristiano Burlan sabia do potencial melodramático do seu título, alavancado pela tragicidade relacionada ao modo como a sua própria mãe havia falecido (assassinada a facadas por um companheiro). Num primeiro impulso, esperamos encontrar neste filme uma estória de abnegação, centrada no desespero de uma mulher, em busca do filho desaparecido…

Porém, esse mesmo título evoca utilizações anteriores do poder de síntese. De maneira imediata, mais de um crítico deve ter associado “A Mãe” ao título homônimo de um romance do escrito Máximo Gorky [1868-1936], sobre o desamparo de uma dona de casa, inicialmente alienada, que, ao saber da prisão política de seu filho, torna-se cada vez mais consciente das obrigações ativas que a fazem reconhecer que é parte de uma comunidade. E é basicamente o que acontece aqui!

Rodado no início de 2020, “A Mãe” enfatiza o relacionamento terno entre uma imigrante paraibana, chamada Maria (vivida por Marcélia Cartaxo, premiada no Festival de Gramado por este papel) e o adolescente Valdo (Dunstin Farias). Ela trabalha como camelô, vendendo óculos escuros falsificados, enquanto ele costuma faltar às aulas para jogar futebol e cantar ‘rap’ com seus amigos. Até que, numa noite, ele não volta para casa, o que faz com que Maria perceba a fragilidade das relações entre os vizinhos do bairro em que vive, na Zona Leste paulistana.

Em vez de optar por uma representação langorosa da perda do filho, já que os dois parentes tratam-se de maneira mui carinhosa desde o início, o diretor e roteirista (em parceria com Ana Carolina Marinho) opta por uma abordagem sóbria, que visa a criticar uma espécie de terrorismo institucional, financiada pela consideração de que, como diz um dos personagens, “a ditadura só vai acabar quando não mais existir Polícia Militar”. Ainda que Valdo não seja um criminoso – prefere estar com um microfone nas mãos que com o cano de um revólver, como ele mesmo canta na letra de “Soldado Romano”, repleto de referências bíblicas inteligentes –, tudo indica que ele foi assassinado por policiais, irritados pelo modo não indulgente com que ele reage a uma abordagem preconceituosa de rotina. Ocorre que isso instaura uma súbita ruptura entre Maria e seus vizinhos, já que ela passa a ser tratada com frieza por uma amiga e com desconfiança por um traficante local, irritado com o comparecimento freqüente da polícia naquela região, após as denúncias da mãe aflita.

Partindo de um evento também autobiográfico – o assassinato do próprio irmão – , Cristiano Burlan utiliza este clímax dramático (o sumiço de um ente querido) para demonstrar tanto a fragilidade das instituições estatais quanto a sanha auto-organizadora de indivíduos obrigados a amadurecerem ideologicamente, de maneira imediata. Num primeiro momento, Maria age (e é tratada) de maneira ríspida, quando responsabiliza a secretária de uma escola pela falta de aviso quanto às faltas recorrentes de Valdo, e agressiva, quando é ignorada ao denunciar para um escrivão policial o sumiço de seu filho. Mas, após a conversa atenta com uma mulher que precisou fortalecer-se ao receber a notícia, via transmissão radiofônica, do assassinato do filho, ela é dotada de um tipo de força que ressignifica todo o seu cotidiano – não sendo casual que o ‘rap’ executado durante os créditos finais, novamente a cargo do intérprete Dunstin Farias, chame-se justamente “Antígona”.

No percurso errático da protagonista, em busca de notícias sobre o desaparecimento em pauta (mesmo suspeitando do que tenha ocorrido), Maria encontra outra imigrante proveniente do Nordeste (interpretada pela corroteirista Ana Carolina Marinho), numa das várias viagens de ônibus captadas pelo filme, o que representa um alento frente aos contínuos maus-tratos da sociedade sudestina. Diante de um cadáver desconhecido, no Instituto Médico Legal, ela sorri de maneira nervosa, ao perceber que aquele não é seu filho. Sem saber como despejar a sua fúria contra o descaso alheio, ela age de maneira rude quando a dona de um boteco vende de maneira hiperfaturada a meia-dúzia de ovos que, apenas uma semana antes, comprara por um valor menor. “Aumentou”, diz a vendedora, de maneira ressequida. Maria tem vontade de quebrar tudo, sentindo-se frustrada e solitária. No fogão, a panela de pressão serve como potente metáfora.

Noutro momento que parece deslocado, mas é fundamental para o desfecho militante do filme, Maria interage com a personagem de Helena Ignez sobre o sofrimento experimentado pelas mães de filhos desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil. Numa imagem derradeira, mulheres seguram um cartaz das Mães de Maio, à guisa de equiparação histórica acerca do que é vivenciado pela protagonista. O drama individual é, por dedução, espelhado socialmente, demonstrando, mais uma vez, que a intimidade é política, através de sua publicização.

Além do referido prêmio de interpretação feminina, “A Mãe” também foi laureado nas categorias Melhor Direção e Melhor Desenho de Som, na edição deste ano do Festival de Cinema de Gramado. Para quem é acostumado a assistir aos documentários ensaísticos do realizador, talvez cause algum estranhamento essa empreitada ficcional, ainda que algumas de suas obsessões temáticas e reivindicativas possam ser facilmente reconhecidas. O modo como o local onde Maria mora é apresentado, por exemplo, de maneira rigorosamente descritiva, sem que as condições de miserabilidade sejam enfatizadas enquanto justificativas para um tratamento marginal dos indivíduos, mas, pelo contrário, enquanto causa desse problema, já que se trata de um reflexo do descaso estatal.

Num breve descanso em sua rotina corrida de sobrevivência sob o Capitalismo, Maria conversa com um pastor-poeta, que lhe recita alguns versos rimados de Patativa do Assaré [1909-2022], enquanto deixa para a exortação conscienciosa que acontecerá ao longo do filme. Fica a advertência: “encontramos em nós uma força que nem sabíamos que tínhamos”, acrescenta uma mãe depoente. Quantos e quantos dramas que nem este não acontecem diariamente? Mais que nos conduzir a um choro tangencialmente reparador, este filme obriga-nos a prestar atenção duradoura em quem está ao nosso lado em instantes de aflição. Relembremos o que o título evoca, portanto.



Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Mostra SP 2022: AGITAÇÃO (2022, de Cyril Schäublin)


No início do filme, algumas raparigas aristocratas conversam sobre as intenções do primo de uma delas, Pyotr Kropotkin (Alexei Evstratov), que pretende migrar da Rússia para uma zona fabril numa cidade montanhosa do interior suíço. De repente, elas começam a enumerar as principais diferenças entre o socialismo e o anarquismo, cogitando a importância da lógica territorial neste último sistema de governo, baseado na autogestão. É quando somos apresentados ao próprio Kropotkin, que alega estar desenhando um mapa cartográfico, envolvendo-se com os trabalhadores de uma fábrica de relógios...


De maneira regida por um tempo mui particular, em que vários personagens são apresentados simultaneamente, afeiçoamo-nos a algumas funcionárias da fábrica, com destaque para Josephine (Clara Gostynski), que nutre uma simpatia declarada pelas idéias anarquistas. Nalgum momento, ela apaixonar-se-á por Pyotr e lhe explicará como funciona o seu trabalho, sendo ela responsável pela inserção das rodas de agitação nos relógios, que produzem o tique-taque característico desses produtos. Pouco a pouco, esse tique-taque invadirá a própria banda sonora do filme, que erige várias simetrias paralelas, através de situações que se repetem e de enquadramentos que focalizam muitas pessoas em diferentes atividades, ao mesmo tempo. 


Em momentos pontuais, o roteiro permite a constatação de um humor melancólico, como quando uma mulher reclama da vacuidade de ter ganho um relógio-despertador num sorteio, visto que ela acorda todos os dias no mesmo horário, mesmo quando está em folga. Há inúmeras seqüências de pessoas ajustando os ponteiros dos relógios locais, o que é reforçado pela peculiar circunstância daquela cidade, que possui quatro fusos horários internamente regulamentados. O diretor da fábrica (Valentin Merz) insiste para que a medida temporal utilizada m seu estabelecimento imponha-se sobre os demais. Entremeando estas situações, as contínuas tentativas de mensuração de ações humanas corriqueiras, como caminhar por uma alameda ou produzir um determinado objeto. De um instante para o outro, as fotografias dos personagens supracitados têm seus preços aumentados, quando o vendedor percebe o interesse de potenciais compradoras. Tudo é regido pelo Capitalismo, portanto - e o filme critica isso de uma maneira tão charmosa quanto inteligente!


Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: NOITE OBSCURA - FOLHAS SELVAGENS (2022, de Sylvain George)


 

Ao final da árdua jornada – em todos os sentidos – de quase quatro horas e meia de duração concernente ao filme “Noite Obscura – Folhas Selvagens” (2022, de Sylvain George), continuamos imaginariamente o desfecho das trajetórias que acompanhamos durante a projeção do documentário. Nem sempre sabemos o que está acontecendo, mas sentimos: a câmera-cúmplice do cineasta põe-se ao lado de adolescentes marroquinos, que vivem ilegalmente nas ruas de Melilla, enquanto sonham em viajar para a França ou para a Espanha…



Antes de a fotografia assumir o seu tom estilizado de preto-e-branco, uma antecipação rubra é instalada, a fim de metonimizar a recorrência do fogo ao longo dos eventos apresentados: os rapazes cozinham em fogueiras improvisadas, acendem cigarros, se aquecem nas noites frias. Mas o fogo também diz respeito ao que eles almejam ser: cidadãos europeus. Estes adolescentes recebem a alcunha de ‘harragas’, que significa algo como “aqueles que queimam”, em referência aos documentos de identificação que eles atiram às chamas. À frente deles, o infindável mar…



Não obstante o realismo cru das imagens, que rendem longuíssimas seqüências (paradoxalmente demarcadas por ‘jumpcuts’), o ritmo deste documentário é sobremaneira experimental. A captação das ondas e do reflexo da lua nas águas do Mar Mediterrâneo rende imagens tão belas quanto abstratas. É como se compartilhássemos das lombras daqueles garotos, continuamente entorpecidos por alucinógenos improvisados, uma versão local do “loló”. Durante os devaneios provocados pela ingestão gasosa dessas substâncias, eles choram, cantarolam, lembram dos familiares que deixaram no Marrocos… E prometem que conseguirão chegar a algum país desenvolvido, a fim de se estabelecerem profissionalmente e conseguirem resgatar as pessoas que amam.



Em diversos momentos, acompanhamos estes garotos escalando muros, pulando cercas, ferindo-se nas pontas afiadas de arame farpado que circunda quase toda a região. Eles referem-se às suas atitudes conjuntas como “tomar o risco”, expressão que tem como objetivo o encaixe de ganchos nos imensos navios que aparecem eventualmente na costa. Enquanto aguardam as oportunidades ideais, que podem demorar indefinidamente, eles dormem nas cavernas da cidade litorânea, famosa por suas fortalezas com arquitetura modernista. E esperam…



No início do filme, verificamos a entrega de doações fornecidas por entidades assistenciais espanholas. Os adolescentes agrupam-se, de maneira improvisada, recebendo pão, leite e outros víveres. É um conforto benfazejo em meio à ameça dominante da fome, do abandono, do frio e dos maus tratos. As feridas e infecções são recorrentes, bem como as lágrimas, ao lembrar os entes queridos ou as histórias trágicas de infância. A longa duração do filme torna-se irrelevante perante o que eles testemunham. E esta é a intenção do diretor com essa extensão desmedida: convidar-nos a uma experiência de imersão no sofrimento daqueles imigrantes, que estão à margem das delongas infindáveis nas filas alfandegárias. Noutra seqüência mui demorada, acompanhamos os esforços de alguns homens, que prendem alguns produtos em seu corpo, com fita adesiva, no afã por deixarem-nos ocultos. Mais uma vez, aceita-se o risco (nesse caso, de aprisionamento), frente ao desespero da fuga.



Não há uma intervenção narrativa em ‘off’ no filme: no máximo, lemos alguns dizeres, correspondentes ao título poético, na abertura. Depois, somos atirados às ruas, juntos àqueles garotos, muçulmanos em sua absoluta maioria. Num instante de alívio, após nadarem e lavarem as suas vestimentas, eles recitam algumas orações, demonstrando que não rejeitam culturalmente as suas origens, apenas economicamente. Soldados desfilam, numa comemoração local que mantém uma tradição de caráter franquista. Estamos num território marroquino, colonialmente extirpado do próprio país. A reação imediata é a de chorarmos coletivamente, em apoio emocional ao desamparo daqueles jovens.



Em meio à fealdade decorrente das condições de pauperismo enfrentadas por aqueles garotos, a beleza exuberante da cidade, arquitetonicamente tombada. No esplêndido desenho de som deste longa-metragem, os ‘raps’ que eles recitam durante os seus delírios misturam-se às gargalhadas ébrias, às bravatas inconseqüentes, ao marulho contínuo e ao grasnar de algumas aves. O registro naturalista amalgama-se às intenções vanguardistas do realizador, configurando um produto fílmico de extrema singularidade. Quem enfrentar este percurso carregado de dor deparar-se-á também com uma obra de arte mui elogiável. Por vezes, questionamos algumas opções éticas do diretor (e/ou do câmera), que quedam inanes diante das agruras mostradas (vide o instante em que um garoto quase quebra as pernas, ao cair de uma parede muito alta). Mas cada segundo exibido é necessário enquanto testemunho de autenticidade documental. Aderimos ao drama destes imigrantes por dentro, no cerne mesmo de suas usurpações cotidianas!



Wesley Pereira de Castro.

Mostra SP 2022: O DEUS DO CINEMA (2021, de Yoji Yamada)


 

Quem nunca assistiu a nenhum filme do nonagenário cineasta Yoji Yamada, encontrará em “O Deus do Cinema” (2021) uma maneira assaz graciosa de ser apresentada ao seu estilo, enciclopedicamente demarcado pela simplicidade. Apesar de ele ter realizado mais de noventa produções antes dessa, há algo de muito sintético no modo como o roteiro apresenta suas afinidades temáticas – sobretudo em relação ao diretor hollywoodiano Frank Capra [1897-1991], mencionado ostensivamente num diálogo entre personagens cinéfilos e na emulação contida no título internacional do seu filme, “It’s a Flickering Life”…



Em sua aplicação da fórmula contida na epígrafe desta resenha, pronunciada pelo protagonista Goh (Kenji Sawada) logo no início do filme, Yoji Yamada chega a adotar algumas soluções muito simplistas no roteiro, visto que ele é apressado no desenvolvimento das relações entre os personagens e nas indicações de que a pandemia da COVID-19 obrigou os produtores a improvisar algumas estratégias para finalizarem adequadamente o filme.



O enredo metalingüístico que justifica o título é obviamente inspirado em “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985, de Woody Allen), e é escrito pelo protagonista Goh (interpretado, na juventude, por Masaki Suda), que tenciona converter-se em diretor de cinema, depois que trabalha como assistente de um deles, e encanta-se pela atriz principal, Sonoko [vivida por Keiko Kitagawa, em homenagem à célebre Setsuko Hara (1920-2015)], sendo correspondido por ela. Entretanto, Goh é alvo do amor platônico da cozinheira Yoshiko (Mei Nagano), que, por sua vez, é pedida em casamento pelo projetor Terashin (Yojiro Noda), melhor amigo de Goh.



A trama de “O Deus do Cinema” possui dois tempos interligados: na atualidade, Goh é um idoso alcoólatra e viciado em apostas, o que faz com que a sua esposa e filha sejam continuamente perseguidas por agiotas. Depois de uma briga com Yoshiko (na maturidade, vivida por Nobuko Miyamoto), Goh resolve esconder-se no cinema de Terashin (interpretado na velhice por Nenji Kobayashi), onde assiste a um filme antigo e revive algumas memórias de juventude, quando descobrimos os dois triângulos amorosos interseccionados.



O tom da narrativa mescla o melodrama capriano com a comédia de costumes, com vistas a uma declaração de amor à Sétima Arte que intenta compensar as decepções do cotidiano. “Na tela, os finais são felizes”, repetem os personagens em mais de um momento, evidenciando o tipo de produção que interessa ao cineasta, conhecido pela simplicidade, conforme já mencionado. Num ‘flashback’ decisivo, o jovem Goh é incompreendido quando tenta enquadrar uma cena de maneira heterodoxa, o que faz com que ele desista do cinema, até ser redescoberto muito tempo depois como um “roteirista promissor”, aos 78 anos de idade. Como não recebeu a mesma atenção por parte dos críticos que vários de seus conterrâneos, mesmo sendo bastante prolífico, é como se Yoji Yamada defendesse o seu próprio ‘modus operandi’, visto que é reconhecido como um hábil artesão, sem a devoção recebida por Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu ou Kenji Mizoguchi…



Alguns desses diretores são também homenageados via pseudônimos e nas descrições de filmagens contidas nas memórias de juventude de Goh, Yoshiko e Terashin. O filme que Goh decide assistir antes de falecer é uma clara referência à obra-prima “Era uma Vez em Tóquio” (1953, de Yasujiro Ozu), o que rende um instante de suma beleza, à guisa de desfecho, num tipo de píncaro emocional bastante distinto do que estava sendo reproduzido na tela.



Co-escrito pelo próprio Yoji Yamada, o roteiro deste filme é baseado num romance da escritora Maha Harada, “Kinema no Kamisama”, publicado em 2011. Coube ao diretor adicionar elementos de nostalgia cinematográfica, a fim de homenagear tanto o estúdio centenário no qual ele trabalhou, o Shochiku, quanto um tipo de ode ao cinema de cariz ocidental. Em meio aos dilemas românticos dos jovens e às crises familiares e econômicas dos mais velhos, momentos de piada pastelão, como quando um porteiro reclama que está ficando careca quando ajuda a chamar uma ambulância para socorrer o jovem Goh, após um acidente, ou quando alguém decide ajudar a então faxineira Yoshiko a limpar algumas privadas e espanta-se com a sujeira. Vale lembrar que Goh atribui as suas inspirações roteirísticas a Buster Keaton e deparamo-nos com cartazes de filmes de Charles Chaplin na sala de projeção de Terashin.



“O Deus do Cinema” é, portanto, um filme muito simpático, que, a despeito de sua longa duração (duas horas e cinco minutos), é sempre entretenedor e repleto de romance. Há algo de muito desconfortável nos comportamentos de Goh enquanto aposentado, tratando a sua esposa de maneira displicente e insistindo que a sua filha Ayumi (Shinobu Terajima) é uma “psicopata”, já que ela convence os seus familiares a não mais pagarem as numerosas dívidas de jogo do seu pai. É nesse sentido que o garoto Yuta (Oshiro Maeda), filho de um casamento desfeito de Ayumi, surge como elo intergeracional, sendo o responsável pela adaptação contemporânea do roteiro esquecido do avô Goh.



Na cena derradeira, todos estão numa sala de cinema, assistindo a um filme clássico, em preto-e-branco. A mensagem conciliadora do cineasta é muito clara: ele acredita que os filmes podem (re)unir as pessoas, providenciando milagres. Desde que eles estejam desprovidos das complicações autorais que muitas vezes desencadeiam insalubres conflitos egocêntricos (vide o chiste envolvendo o perfeccionismo exacerbado de um diretor, que deixa Sonoko desconfortavelmente nervosa ao exigir que ela mexa uma xícara numa quantia mui precisa de vezes). Já que, no letreiro de abertura, um estúdio é reverenciado, o trabalho de equipe é valorizado enquanto extensão familiar e celebração da amizade. Na prática bem-intencionada, procede!



Wesley Pereira de Castro.

Mostra SP 2022: O CLUBE DOS ANJOS (2020, de Angelo Defanti)


 

A afeição que Angelo Defanti nutre pela obra do escritor Luís Fernando Veríssimo – que, em breve, converter-se-á num documentário – explica a extrema desenvoltura no modo como ele adapta o livro homônimo “O Clube dos Anjos”, famoso por pertencer à inventiva série “Plenos Pecados”. Nesse sentido, além da adoção de recursos literários (o modo como é introduzida a narração, através da gravação de fitas de vídeo, do protagonista vivido por Otávio Müller, por exemplo), o cineasta serve-se habilmente de expedientes teatrais, em sua benfazeja adaptação cinematográfica.



Contando com um elenco extraordinário, uma das grandes sacadas do roteiro é a exposição estereotípica dos personagens: a polarização quase redundante entre João (Augusto Madeira) e Pedro (Marco Ricca), respectivamente um comunista culpado e um empresário capitalista; a mania do cozinheiro vivido por Matheus Nachtergaele em fumar enquanto prepara os seus banquetes; a misoginia indisfarçada do mentor Ramos (António Capello), antes de sabermos que ele era homossexual; estes são alguns dos aspectos cartunescos desta obra, advindos diretamente do original literário.



Sendo assim, um relevante problema conceitual apresenta-se desde o início: exceto por ser o narrador, não há muito o que ser dito sobre o protagonista Daniel. Solteiro e não trabalhador, ele parece alguém desprovido de interesse pessoal, o que explica a fetichização excessiva da gula e a teimosia de referir-se em seus amigos como “imprestáveis” (na verdade, ele utiliza um palavrão). A insistência nos julgamentos de mau caratismo depositado sobre os seus convivas demonstra que ele próprio é também um mau caráter, o que não apenas ele não nega como desemboca na conclusão pouco empolgante do filme, em que a adesão dos companheiros de várias décadas à gula compartilhada deixa de estar atrelada à sensação de “sentir prazer no prazer do outro” para converter-se em intenções gananciosas, típicas da conjuntura classista dos personagens.



Devemos acrescentar que a conversão dos prazeres dos amigos de infância em uma organização que visa à concessão de “eutanásias festivas” (ou “retiradas orgiásticas”) para moribundos endinheirados justifica o modo inteligente com que o enredo trabalha com a noção de previsibilidade, nunca frustrando aquilo que imaginamos a partir dos sumiços dos personagens. Trata-se praticamente de um anti-suspense, substituído decepcionantemente pela piada disfuncional do encontro entre Daniel e o consultor Delgado (cujo sobrenome é confundido com a função de um delegado), numa reviravolta tramática que funciona melhor na literatura que na diegese audiovisual. Ao menos, isso contribui para acrescentar alguma ironia à decisão estimulada por Ramos, a de “saber o final do livro”, em sua ode à vida bem aproveitada por quem sabe que padece de uma doença terminal.



Dentre os peculiares recursos cênicos acrescentados como ingredientes fílmicos, dois merecem ser especificamente elogiados: a seqüência em que os intérpretes dos personagens adultos ocupam os lugares dos mesmos quando adolescentes, de maneira que seus traços personalísticos são metonimizados na maneira como eles interagem entre si; e as estratégias de iluminação concernentes às lâmpadas acesas durante a erupção de orgasmos gastronômicos individuais e ao alerta rubro que se instaura quando Tiago (André Abujamra) descontrola-se diante de uma sobremesa de chocolate. Aliás, esta obsessão pelos doces derivados de cacau, junto às múltiplas vezes em que Samuel (Paulo Miklos) chama alguém de “crápula” (no bom ou no mau sentido), são chistes que tornam ambos os personagens muito divertidos, confirmando o que foi dito sobre as vantagens da concepção intencionalmente estereotípica de seus caracteres.



Ainda que não termine tão bem quanto comece – o que chega a ser paradoxal, pois, mais uma vez, confirma o brinde derradeiro de Ramos, que sugere que seus parceiros chorem, depois de se alegrarem com a excelente comida, visto que ali, seria o início do declínio de suas vidas –, este filme demonstra de maneira assertiva uma tendência comum no cinema hollywoodiano: a de que adaptar livros de sucesso é um chamariz interessante de público. Sobretudo porque a adaptação não anula a versão original, ambas as obras convivem harmoniosamente, para além das discrepâncias comparativas entre elas. Nem bem a sessão termina e os espectadores já anseiam por (re)ler o livro em pauta. A fome sempre volta, eis a certeza mais repetida ao longo da projeção!


Wesley Pereira de Castro.

domingo, 30 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: INVENTÁRIO (2021, de Darko Sinko)


Nos instantes iniciais deste enredo compassado, somos apresentados a um cidadão trivial, que parece satisfeito com a modorra de sua própria vida: Boris Robič (Radoš Bolčina) é assistente de projeção numa Faculdade de Economia e janta com a sua esposa, Alenka (Mirel Knez), enquanto conversam sobre o abastecimento de carnes na despensa. Depois que senta-se, sozinho, em seu escritório para ler um pouco, Boris é surpreendido pelo barulho de vidro quebrando. Alguém atira em sua janela. Quem teria sido? 


Esse ponto de partida pode ser tanto chistoso quanto melancólico, a depender da perspectiva projetada pelo espectador, no que tange à identificação com o protagonista, mas, em ambos os casos, percebe-se que as feridas da guerra pós-esfacelamento da Iugoslávia seguem afetando as pessoas comuns. Após ser incitado a imaginar quem poderia ter alguma inimizade quanto a seu esposo, Alenka aventa que alguns ex-soldados vivem entre eles. O que Boris não consegue entender é por que alguém o odiaria a ponto de tentar matá-lo, de modo que ele consulta um amigo de juventude, que fôra (e ainda é) apaixonado por Alenka, e visita a sua mãe senil, num asilo, que pronuncia frases despropositadas sobre o fato de a sua nora não gostar verdadeiramente de seu filho. Até que entram em cena um homônimo de Boris, que aparentemente está tendo um caso, e a lembrança de uma apólice de seguros, que pagaria uma fortuna para a esposa e o filho de Boris, caso ele morresse subitamente... 


As reações do protagonista à constatação de que sua vida é considerada vã por outrem confirmam-se quando, ao tentar conseguir alguns dias de folga, ele ouve da sua chefa que "ninguém é insubstituível". Como tal, passa a desconfiar da própria esposa, o que rende algumas situações de comicidade taciturna, como quando ele inverte a ordem dos pratos colocados na mesa, temendo estar sendo envenenado. A condução plácida do filme evita os sobressaltos, ainda que haja uma reviravolta considerável no desfecho, que transfere para o espectador, mais uma vez, a interpretação definitiva acerca da possível nocividade com que Boris trata (e, por extensão, é tratado por) as pessoas ao seu redor. Como incremento argumentativo, temos a excelente seqüência da aula sobre "ética econômica", à qual Boris assiste enquanto exerce as suas funções empregatícias: é essencial compreender se há ganhos mútuos em nossas relações cotidianas, portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 29 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: TARTARUGA SOB O SOLO (2022, de Shishir Jha)


Numa cena aparentemente circunstancial, o casal protagonista assiste a um telejornal que menciona um evento sobre discussão dos impactos ecológicos dos intervenções humanas no meio ambiente, Isso desperta a atenção de ambos, visto que eles lidam com uma situação vicinalmente catastrófica, em que a mineração de urânio na região vem contaminando e matando animais e pessoas. Como este evento acontecia no Brasil, dá para traçar um paralelismo imediato entre o que ocorre no interior daquele povoado rural indiano e os crimes ambientais que são comumente noticiados na Bahia e em Minas Gerais. Em comum, a sensação de impotência frente ao envenenamento progressivo das reservas aquáticas naturais. E a vontade de resistir!


Além das questões referentes à tragédia ambiental, o casal lida com uma tragédia íntima, a morte de uma filha, o que faz com que a mulher (Mugli Baskey) aja de maneira depressiva, não queira sequer se arrumar, a fim de participar das celebrações locais. Seu esposo (Jagarnath Baskey) esforça-se para mantê-la motivada, sobretudo no que diz respeito à necessidade de continuarem vivendo onde estabeleceram residência, a despeito dos mandados contínuos de expulsão, provenientes de uma empresa mineradora. Ela sente-se solitária e desamparada, mas, depois assustar-se perante a possibilidade de uma nova ausência, adere à peroração musical do desfecho: "não alimente a tristeza, seja ela grande ou pequena". É um conselho que também serve para nós, espectadores. 


Demarcado por muitas canções, já trata-se de um filme que focaliza uma comunidade com costumes folclóricos, esse roteiro também possui personagens que chamam a atenção para o quociente de alienação política imiscuído entre as celebrações cotidianas: "enquanto estamos aqui cantando, eles nos expulsam de nossas terras", comenta alguém, antes de participar da leitura coletiva de uma notícia de jornal, sobre a exortação de um contexto em que uma formiga pode vencer um elefante. Trata-se de uma metáfora condizente com o aspecto cosmogônico da trama, evidente desde o título, referente aos trabalhos ancestrais de uma tartaruga e uma minhoca místicas. Ao ser decretado, desde o início, que "o verdadeiro fantasma é o urânio", o roteiro do próprio diretor permite a inserção de efeitos visuais numa condução tramática assaz realista, que demonstra algo essencial: em situações de combate, é urgente que apoiemo-nos mutuamente. Seja nas oferendas simbólicas que transmitimos aos nossos entres queridos, seja na colaboração característica dos mutirões, além da musicalidade concatenadora, que atravessa todos os momentos. Reiterando o ditado popular, juntos somos efetivamente mais fortes! 


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: A SAÍDA ESTÁ À NOSSA FRENTE (2022, de Rob Rice)


Antes que possamos organizar mentalmente aquilo que estamos achando deste quase-documentário sobre o 'white trash' estadunidense, percebemo-nos sentindo um afeto legítimo por aqueles personagens socialmente disfuncionais , mas legitimamente afetivos. De acordo com a sinopse, o elemento nodal é a doença terminal enfrentada pelo chefe de família Mark (Mark Staggs), porém essa é disfarçada até para nós mesmos, espectadores, a fim de não estragar os planos da carismática Cassie (Nikki DeParis), prestes a mudar-se para a cidade grande, em busca de melhores condições empregatícias. Acompanhamos, ao longo da curta duração do filme (1h27'), um cabedal de despedidas, que culmina na inevitabilidade da morte como aplicação da metáfora que um dos personagens tece, pendurado num balanço... 


Em mais de um momento, Mark é mostrado tentando resolver problemas via 'telemarketing', sendo aprisionado nas cadeias eletrônicas das mensagens automáticas. Sua esposa Tracy (Tracy Staggs) esforça-se para mantê-lo bem-humorado e para que ele não desista de tomar os seus remédios. O casal é cercado por vários cachorros, e vários de seus parentes interagem durante as festas de final de ano: alguns, com violência (o namorado de Cassie, por exemplo); outros com inusitada ternura, como o primo maconheiro da jovem. Em mais de um sentido, é um filme que não julga os seus personagens (colaboradores do projeto, em verdade), fazendo com que compreendamos os sentimentos, para além das condições evidentes de pauperismo. 


A fotografia é sobremaneira cálida, conforme requer o clima desértico daquele ambiente, e a montagem é elíptica, reforçando o caráter excessivamente independente da produção. Demoramos para compreender devidamente as relações entre os personagens, mas afeiçoamo-nos não apenas à candura de Mark e Cassie, mas também ao ex-presidiário que tornou-se um cristão amante dos animais, à transexual criadora de ofídios que sente-se chateada quando um parente invade um de seus quartos e àquela família extensa e heterodoxa como um todo, que sabe diferenciar muito bem "a glória de Deus" da "glória dos norte-americanos". Eis a realidade que transforma e é transformada, ao ser convertida em Arte! 


Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: CARVÃO (2022, de Carolina Markowicz)


Para uma diretora estreante em longas-metragens, o domínio rítmico de Carolina Markowicz é impressionante. A duração é muito bem aproveitada na implementação dos silêncios e o elenco heterogêneo está bastante integrado às composições de cada um de seus personagens: Irene, a protagonista, é uma mulher de temperamento centrípeto, quiçá por causa da negligência sexual de seu marido, Jairo (Rômulo Braga), homossexual inassumido, que tem um caso com um vizinho, também casado. Eles vivem numa cidade erma do interior paulista, e recebem uma proposta perturbadora de Juracy (Aline Marta Maia), uma enfermeira local: sacrificar, de maneira violenta, o pai de Irene e, no lugar dele, conceder refúgio a um traficante argentino (César Bordón), que forja a própria morte. A presença deste "gringo", entretanto, acentuará as crises de comunicação sufocadas nesta comunidade de gente tão trabalhadora quanto melancólica... 


O desconforto provocado pelas situações supracitadas é contrabalançado pelo incrível bom humor do filho de Irene e Jairo, Jean (Jean de Almeida Costa, esplêndido), um garotinho que, a despeito das dificuldades de acesso da região em que vive, demonstra uma habilidade surpreendente para resolver problemas. Revela-se safo tanto na interrogação acerca da possiblidade de pedofilia em relação a alguém que acaba de conhecer quanto na desenvoltura para conseguir cocaína. Na lida diária com a sua mãe, ele parece estar em perene conflito, enquanto sequer percebe que seu pai está em casa, de tão ausente que ele demonstra-se, quando está longe do homem que ama. Tudo conduz a um desfecho violento, portanto. 


Mui hábil na condução de seu próprio roteiro, a diretora evita a obviedade climática: ficamos sem entender muitas das situações apresentadas (não sabemos quais crimes Miguel cometeu, por exemplo), mas dispomos de suficientes informações para compreender o impacto daquelas relações forçadas tão destoantes. Excitada, Irene começa a perfumar-se em excesso, no afã por atrair a atenção sexual de seu hóspede arredio, que beija Jairo numa demonstração implícita de poder. Permanece sempre misteriosa a origem de Juracy, do mesmo modo que são sub-articuladas as conversas entre Jean e seus colegas de escola. A Jairo, resta embebedar-se, a fim de poder enfrentar o seu cotidiano de repressão. No rádio (e, por extensão, na sardônica trilha musical), canções religiosas, cantadas pelo padre Marcelo Rossi. A igreja é bastante enfeitada, mas o pároco reclama das dificuldades financeiras por ele enfrentadas. Na parede do quarto de Jean, um lema providencial: "ora que melhora". Isso não evitará que Miguel seja sufocado diante de uma ilustração que evoca a derradeira ceia cristã. Por fim, um estampido abruto. Trata-se de um filme para adultos! 


Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: O ESTRANHO CASO DE JACKY CAILLOU (2022, de Lucas Delangle)


Num primeiro momento, este filme parece abordar a mesma perspectiva dramática levada a cabo por Agnieszka Holland em "O Charlatão" (2020). Ou seja, a análise da conjuntura rural que permite que um camponês simplório perceba-se capaz de curar outrem, ainda que seja alvo de desconfiança pelas pessoas ao seu redor. Diferente da lógica biográfica daquele filme, aqui, o diretor estreante em longas-metragens opta por assumir a fantasia: inicialmente, enquanto reflexão acerca da solidão íntima de um personagem e, logo em seguida, como trama de gênero, num flerte ostensivo com o terror. Instaura-se o lastro da incompletude, através de interessantes pontos de fuga...  


O personagem-título (vivido por Thomas Parigi) vive com a sua avó curandeira (Edwige Blondiau), ciente de que, nalgum momento, dará continuidade ao seu trabalho místico. Ocorre que ele tem pretensões de converter-se em músico 'indie', apresentando-se eventualmente num bar local. O pedido de ajuda de uma moça chamada Elsa (Lou Lampros), molestada por uma impingem crescente nas costas, faz com que ele perceba o que lhe faltava na consecução dos atos de cura transmitidos por sua avó, a sensualidade. Elsa refere-se à observação do movimento das folhas como uma linguagem, o que deixa-lhe encantado. Porém, ao permitir o desenfreamento de seus anseios libidinosos, Jacky será obrigado a unir-se à sua comunidade na perseguição ao lobo que vem matando alguns animais na região. Calhará de esta ser uma mutação monstruosa da própria Elsa, que, convertida na fêmea de um lobisomem, admite "nunca ter se sentido tão livre na vida"!


Interpretado por um elenco que parece emprestado de um filme do Bruno Dumont, o roteiro deste filme metaforiza os receios da autodescoberta, no sentido de que a necessidade premente de tomar decisões obriga o indivíduo a lidar com situações inevitavelmente arriscadas. A fim de testar a possibilidade de ser capaz de curar um ser moribundo, Jacky envolve um pássaro ferido com as mãos, prendendo-o posteriormente numa gaiola, sem esperanças efetivas de que ele se recupere. Noutra seqüência,  ele estará aprisionando a própria Elsa em seu quarto, após deixá-la inconsciente com uma pedrada na cabeça. Ele não conseguirá conter os seus recentes instintos assassinos, da mesma maneira que, repentinamente, passa a ser reconhecido por seus vizinhos como herdeiro dos dons curativos de sua avó. Como expurgar alguém de um mal-estar quando é-se pessoalmente atormentado pela baixa autoestima e pela repressão afetiva? A pergunta aplica-se tanto ao protagonista quanto ao filme em si, visto que ele é maculado pela indefinição rítmica, entre a primeira e a segunda metade. Resta o impacto dúbio da tentativa!



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 23 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: CORAÇÕES GENTIS (2022, de Gerard-Jan Claes & Olivia Rochette)


Durante a sessão, muitas vezes esquecemos que estamos diante de um documentário, tamanha a desenvoltura dramática do casal protagonista, ambos com dezoito anos de idade mas uma maturidade exemplar. Enquanto Lucas revela-se indeciso, não obstante ser bastante arrojado enquanto acompanhante musical da talentosa Charlotte Meyntjens, Billie revela-se compenetrada em suas vocações acadêmicas, que desembocam na insegurança relacional: quanto mais ela estuda, mais desamparada sente-se, em âmbito social. Sabe que ama Lucas, mas teme não estar mais apaixonada por ele. E, de repente, chega a quarentena exigida pela pandemia da COVID-19...


A direção utiliza com precisão os recursos de campo/contracampo durante as conversas dos protagonistas, mesmo quando estão em contextos íntimos: lemos o que eles escrevem em seus computadores e telefones celulares, além de praticamente adivinharmos o que eles estão pensando, tamanha a habilidade da condução ficcional de eventos reais. Neste sentido, a apresentação do casal adolescente, durante um passeio num balanço sobremaneira elevado em relação ao chão, surge como uma espécie de seleção profissional: diversas pessoas reagem ao temor suscitado por essa empreitada, manifestando reações distintas ao medo. Alguns prometem rezar, caso desçam em segurança; outros divertem-se com os gritos alheios. Lucas e Billie planejam o que farão quando estiverem na Universidade, em Bruxelas: "o que será que aconteceria se morássemos juntos?".


Os momentos de inspiração romântica são variegados, surgindo em meio a diálogos corriqueiros, desde a quantidade de semanas em que um cachorro está sem tomar banho até a escolha das palavras que serão aprendidas em inglês, já que ambos comunicam-se predominantemente em holandês. Há algo de assexuado no modo como o casal interage, em contraposição ao clima erótico que se insinua quando Lucas e Charlotte estão no mesmo quarto. Aliás, esta talentosa cantora é a melhor descoberta do filme, com seu estilo de 'trip-hop' que emula a banda britânica Portishead e o trio belga Hooverphonic. Infelizmente, a guinada alleniana no trecho final do documentário, quando Lucas e Billie refletem acerca do que perderam com o término do namoro, não possui o mesmo charme que o restante do filme, que torna-se um tanto formulaico em sua conclusão. Em questões namoratórias, quem é mais imitada, a arte ou a vida? 


Wesley Pereira de Castro.

sábado, 22 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: DISTOPIA (2021, de Tiago Afonso) + OBJETOS DE LUZ (2022, de Acácio de Almeida & Marie Carré)



 Graças às sessões gratuitas ofertadas pelo Sesc Digital, quem não mora em São Paulo pode assistir a dois curiosos documentários portugueses, que abordam assuntos tão opostos quanto inusitadamente relacionados: no primeiro caso, “Distopia” (2021, de Tiago Afonso), testemunhamos as alterações urbanas ocorridas na cidade de Porto, ao longo de mais de uma década; no segundo, “Objetos de Luz” (2022, de Acácio de Almeida & Marie Carré), um projecionista reflete sobre a importância das imagens em movimento, de modo que cenas clássicas da cinematografia lusitana são reproduzidas e/ou reconstituídas. Projetos completamente distintos, mas que sintetizam duas das principais tendências documentais contemporâneas…



Num dos filmes, a narração surge como comentário avaliativo, a partir da reflexão de uma criança, que não entende a ganância de quem já é rico. Surge uma explicação masculina, “a principal característica de quem tem muito dinheiro é querer mais dinheiro”, pronunciada depois que acompanhamos os lamentos de quem foi desalojado à força de uma área de barracos e conduzidos a bairros insalubres, “onde as crianças tornam-se rebeldes e mal-influenciadas”. O diretor coletou imagens valiosas do cotidiano dos pobres, apresentadas em blocos, que iniciam-se com a execução de uma “meia limpeza” e terminam com a certeza de que “os cães ladram, mas a caravana passa”. No desfecho, o poder da canção “Despejo na Favela”, de Adoniran Barbosa (em dueto com o brasileiro Gonzaguinha):



Não tem nada, não, seu doutor, não tem nada, não.

Amanhã mesmo, vou deixar meu barração.

Não tem nada não, seu doutor.

Vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator.


Para mim, não tem problema. Em qualquer canto me arrumo.

De qualquer jeito, eu me ajeito.

Depois, o que eu tenho é tão pouco.

Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás.

Mas essa gente aí, hein, como é que faz?”



As filmagens, apesar de muito duras em relação ao que apresentam (vide as seqüências de demolição dos edifícios no bairro do Aleixo), são também atravessadas pela poesia que grassa no dia a dia, sobretudo através da inocência das crianças, que aprendem a manusear a câmera – numa oficina promovida pelo próprio diretor – e apressam-se em elogiar os coleguinhas de escola, que habitam os mesmos espaços subplanejados que elas. Até que os oficiais de (in)Justiça apaguem as fogueiras dos ciganos e insistam em silenciar as suas canções. No processo crescente de gentrificação, a infelicidade dos moradores surge como incentivo ao consumo capitalista. Por isso, os maus tratos recorrentes da pequeno-burguesia hodierna: a realidade crua é desoladoramente distópica, como assegura o título do documentário.



O outro dos filmes segue um percurso idílico, de pretensa reparação dos malogros corriqueiros: contra a insatisfação oriunda da pobreza, a riqueza dos reflexos imagéticos e a beleza das projeções cinematográficas. Um narrador solene rememora as glórias do cinema português. Enquanto um fazendeiro bucólico apaixona-se por uma bela pastora de ovelhas – e eles fazem amor nos interstícios dos delírios provocados por um cogumelo de nome “namorado” –, (re)v(iv)emos situações clássicas de obras como “Os Verdes Anos” (1963, de Paulo Rocha), “Silvestre” (1981, de João César Monteiro), “Os Mutantes” (1998, de Teresa Villaverde) e “A Vingança de uma Mulher” (2012, de Rita Azevedo Gomes), entre outros. Durante os créditos finais, a execução de “Love Came Here”, canção de Lhasa de Sela que converte em versos sublimes os questionamentos do narrador. “A luz do Sol, que nasce e morre, como nós”, põe em xeque uma dúvida: existe um DNA específico para os raios luminosos? Nesta obra, a realidade é transformada quando filmada, melhorada através das induções de poesia.



Na verdade, “Objetos de Luz” talvez seja devidamente apreciado por quem já tem alguma afinidade com a história ibérica e, principalmente, por quem conhece os títulos fílmicos supramencionados. Vale lembrar que o filme também é efetivo na celebração da Revolução dos Cravos, que tem um momento-chave exibido num determinado instante. É um filme bonito, mas também hermético em sua proposta. Tanto quanto o outro, beneficia-se de uma curta duração, já que não ultrapassa os setenta minutos. Merece ser conferido pelos cinéfilos, portanto.



No cotejo entre ambos, “Distopia” demonstra-se emergente em seu relato protestante, defendendo a pujança afetiva e dançante que provém dos mais humildes, ao passo que “Objetos de Luz” retroalimenta uma confiança utópica na força de uma “luz que também mata” (conforme ilustrado pelo sangue que jorra do foguete que perfura o olho da lua meliesiana). Vistos em conjunto, esses dois filmes proporcionam opções variegadas de reações espectatoriais, já que a realidade é apreendida de maneiras completamente diferentes por pessoas diferentes. Cada qual a seu modo, eles metonimizam a valiosa gama de possibilidades que advém do gênero documental. Por isso, de maneira discreta, os recomendamos!





Wesley Pereira de Castro.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: MAGDALA (2022, de Damien Manivel)


Em sentido etimológico, a palavra religião está vinculada ao ato de "voltar a ligar", no que tange às conexões estabelecidas entre os homens e Deus e entre os homens e seus semelhantes. Num primeiro contato com a sinopse deste filme, pensamos numa extensão discursiva dessa etimologia, a partir do que é definido, nos créditos de abertura, como uma reinvenção dos "últimos dias de Maria Madalena"...


Não obstante a fidelidade a ser Jesus Cristo ser constante nos passos lentos da protagonista, que deambula sozinha por uma floresta, o elã religioso é substituído por uma psicose fetichista que ultrapassa a compulsão: quando não está urrando a falta de seu amado, a idosa Maria Madalena está urinando, banhando-se  ou lavando a sua manta, enquanto constrói diversas cruzes com gravetos e folhas. Os ensinamentos privilegiados que a prostituta redimida obteve a partir do convívio com "o filho de Deus feito homem" parecem desembocar numa inércia comportamental: afastada de todas as pessoas, a personagem-título (vivida de maneira compassada porém intensa por Elsa Wolliaston) caminha morosamente por entre as árvores, ao som de árias sobre um necessário ensimesmamento. Quando Jesus (Saphir Shraga) ressurge nas memórias de Madalena, isso ocorre sob o viés do erotismo lacrimoso. A morte do homem sagrado é representada através de metáforas óbvias, como o instante em que a protagonista segura um coração sangrando, à beira de um precipício cercado pela neblina...  


Sem conseguir despertar polêmica (já que a abordagem da personagem bíblica é iconograficamente respeitosa) e sem assumir uma postura ativa acerca da religiosidade (ainda que a ascensão ofertada na imagem final sirva como prêmio para quem tem fé), este filme chafurda na vacuidade. A pretensa lentidão estética revela-se modorrenta e desenxabida, não obstante o zelo fotográfico de Mathieu Gaudet. A velhice predominantemente silenciosa da personagem soa como um coma obsessivo e auto-induzido: o amor, quando expressado de maneira extrema, tende a provocar esta impressão patológica. Seria este filme uma crítica involuntária ao fanatismo cristão?  Mesmo nesta seara, ele demonstra-se lamentavelmente infecundo. 



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2022: VOCÊ TEM QUE VIR E VER (2022, de Jonás Trueba)


Apesar da curta duração deste longa-metragem (meros 64 minutos), acontece muito nas entrelinhas: conforme o próprio elenco comenta nalgumas entrevistas de divulgação, trata-se de uma obra que sintetiza o tipo de deslocamento interior que ocorreu durante o período quarentenário e que, por derivação existencial, justifica outro tipo de deslocamento, o espacial, em busca da readequação ao cotidiano social. Somos testemunhas de dois encontros: um deles, numa mesa de bar, ao som do emocionado concerto de um pianista; o outro, numa visita a uma residência interiorana, quando as obsessões temáticas do realizador são metonimizadas através de um livro do filósofo Peter Sloterdijk ("Tens de Mudar de Vida"), debatido ostensivamente pelos personagens. 


Na primeira seqüência, os quatro protagonistas reagem de maneira imersiva à composição merencória apresentada pelo músico Chano Domínguez. Sabemos que estamos diante de dois casais, aquele formado por Elena (Itsaso Arana) e Daniel (Vito Sanz), quiçá à beira de uma crise relacional, e aquele formado por Susana (Irene Escobar) e Guillermo (Francesco Carrill). Elena e Guillermo conhecem-se há mais tempo e relembram as mudanças ocorridas desde que eram adolescentes até o momento atual, em que ambos estão romanticamente comprometidos. Susana anuncia que está grávida e, pouco a pouco, isso faz com que Daniel sinta-se cobrado em relação às exigências heterossexuais tradicionais, a ponto de recapitular persistentemente a frase correspondente ao título original: "vocês têm de ir vê-la". 


O que deveria ser um convite corriqueiro assume ares de cobrança quase paranóica, a ser executado seis meses após o primeiro encontro, quando Elena e Daniel viajam para a pacata cidade rural onde moram Susana e Guillermo. Em meio aos diálogos, Jonás Trueba erige breves situações de suspense cotidiano, envolvendo gestos simples, como correr para depositar o lixo, antes que os funcionários de limpeza recolham-no, ou encontrar o cômodo no qual um dos cônjuges deixou a sua mochila. Na análise casual do livro sloterdijkiano, Elena dispara uma frase que serve como metáfora para o tipo de paradoxo que cerceia o universo actancial do realizador: "o dilema do homem contemporâneo é pensar como vegetariano e agir como carnívoro". No forno, Guillermo prepara um carneiro: "sei que consigo, mas não quero viver sem carne"!


Sobremaneira demarcado pelas canções que são executadas - "Lets Move to the Country", de Bill Callahan, por exemplo -, este filme gradualmente transmuta em imagens as considerações lidas por Elena, como a dinâmica existente entre Arte e Natureza (vide o momento em que ela pede para urinar no campo e percebe-se circundada pela vegetação) e as indecisões determinantes das posturas intelectuais, percebidas na reclamação de Susana acerca do modo como soube que uma parenta sua sofreu abortos, na estupefação de Daniel ao encontrar uma pintura antiga na casa de Guillermo ou na própria maneira com que o diretor Jonás Trueba aparece no desfecho, quando o filme converte-se numa espécie de 'making-of' de si mesmo, em Super-8. Um belo registro sobre o que é estar (e continuar) vivo hoje em dia, portanto. 


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Festival de Gramado 2022: MARTE UM (2022, de Gabriel Martins)


Numa das cenas que antecedem o belo plano final, Wellington (Carlos Francisco), o patriarca da família Martins, aceita a homossexualidade de sua filha Eunice (Camilla Damião) através de uma frase bastante sintética acerca do que testemunhamos até então: "tu pareces bem mais comigo do que imaginas". De fato, esta seqüência de reconciliação serve como validação de um aspecto essencial para a adesão emocional do espectador: a nuclearidade da família em pauta - composta por pai, mãe, filha mais velha e filho mais novo - é dividida em duas metades bastante definidas, complementares em suas oposições e tendentes à valorização discursiva (e intencionalmente corretiva) do matriarcado. 


Ainda que a elaboração da perspectiva narrativa pertença ao garoto Deivinho (Cícero Lucas), cuja paixão por astronomia justifica o belo título do filme, é Eunice quem desencadeia uma série de pequenas rupturas, essenciais para um novo alinhamento familiar, ao instaurar a constatação de que há algo assaz problemático em meio à harmonia parental: é ela quem faz com que percebamos o quão violento é o fanatismo do pai em relação à paixão futebolística (através de um acesso de raiva desencadeado quando ela traz a sua namorada, torcedora de um time rival, para assistir a uma partida decisiva entre Cruzeiro X Atlético Mineiro); é ela quem leva sua mãe Tércia (Rejane Faria) a refletir sobre o modo como ela transmite uma forma automatizada de machismo na divisão das tarefas domésticas; e é ela quem instiga Deivinho a assumir que o sonho de ser jogador de futebol é-lhe alheio... Tudo isso ocorre ao mesmo tempo em que ela própria parece desorientada quanto ao que deseja erigir na relação amorosa com Joana (Ana Hilário)!



Se, em termos estruturais, o roteiro escrito pelo próprio diretor demonstra-se concessivo no que tange à previsibilidade factual (desde que ouvimos Wellington falar pela primeira vez sobre os Alcóolicos Anônimos, intuímos que ele recairá na bebedeira num momento melodramático), em termos humanistas, o filme resolve-se muito bem, ao enfrentar o involuntário espelhamento periférico que acontece em relação ao bolsonarismo, evidenciado continuamente em transmissões televisivas. A direção fluída de Gabriel Martins é mui eficiente nesta reiteração confortadora, o que deve-se também à espontaneidade das interpretações, que aproveita com eficácia as personalidades do ex-jogador Juan Pablo Sorín e do comediante Tokinho. O mesmo, infelizmente, não pode ser aplicado ao 'rapper' Russo APR, deveras estereotipado como o colega de trabalho pretensamente "revolucionário" de Wellington. 



Estabelecidas essas oposições, o filme revela-se promissor no modo como opta por um otimismo sustentacular, necessário à conjuntura desanimadora dos dias atuais: escorando-se na bela mas excessivamente condutiva trilha musical de Daniel Simitan, "Marte Um" oferta-nos um desfecho de celebração ostensiva da vida, em meio à acumulação de tragédias cotidianas, eventualmente convertidas em brincadeiras desagradáveis, como a pegadinha audiovisual que incute a Síndrome do Pânico em Tércia. No desfecho, ela é flagrada dormindo, o que é logo imitado por seus parentes - exceto Deivinho, que teima em sonhar acordado, como exortador do público: mesmo que nossos anseios íntimos pareçam irrealizáveis, convém insistir neles, por mais que, inicialmente, isso seja incompreendido por quem amamos. A sinceridade de nossas entregas afetivas, em comunhão com a lógica de que merecemos acreditar que podemos estar sóbrios, "nem que seja por vinte e quatro horas", devolve à família à sua função original, o acolhimento. E, em seus descarrilamentos e quedas, este filme é sobre isso! 



Wesley Pereira de Castro.