quinta-feira, 10 de novembro de 2022

A MÃE (2022, de Cristiano Burlan)


 

Uma das principais funções do título de um filme é sintetizar as perspectivas que o espectador buscará naquela obra, seja em termos de identificação seja no que diz respeito a uma necessária catarse em relação às angústias cotidianas. Ao escolher um artigo singular definido feminino mais o substantivo comum mais pronunciado, desde a infância, por qualquer indivíduo, o diretor Cristiano Burlan sabia do potencial melodramático do seu título, alavancado pela tragicidade relacionada ao modo como a sua própria mãe havia falecido (assassinada a facadas por um companheiro). Num primeiro impulso, esperamos encontrar neste filme uma estória de abnegação, centrada no desespero de uma mulher, em busca do filho desaparecido…

Porém, esse mesmo título evoca utilizações anteriores do poder de síntese. De maneira imediata, mais de um crítico deve ter associado “A Mãe” ao título homônimo de um romance do escrito Máximo Gorky [1868-1936], sobre o desamparo de uma dona de casa, inicialmente alienada, que, ao saber da prisão política de seu filho, torna-se cada vez mais consciente das obrigações ativas que a fazem reconhecer que é parte de uma comunidade. E é basicamente o que acontece aqui!

Rodado no início de 2020, “A Mãe” enfatiza o relacionamento terno entre uma imigrante paraibana, chamada Maria (vivida por Marcélia Cartaxo, premiada no Festival de Gramado por este papel) e o adolescente Valdo (Dunstin Farias). Ela trabalha como camelô, vendendo óculos escuros falsificados, enquanto ele costuma faltar às aulas para jogar futebol e cantar ‘rap’ com seus amigos. Até que, numa noite, ele não volta para casa, o que faz com que Maria perceba a fragilidade das relações entre os vizinhos do bairro em que vive, na Zona Leste paulistana.

Em vez de optar por uma representação langorosa da perda do filho, já que os dois parentes tratam-se de maneira mui carinhosa desde o início, o diretor e roteirista (em parceria com Ana Carolina Marinho) opta por uma abordagem sóbria, que visa a criticar uma espécie de terrorismo institucional, financiada pela consideração de que, como diz um dos personagens, “a ditadura só vai acabar quando não mais existir Polícia Militar”. Ainda que Valdo não seja um criminoso – prefere estar com um microfone nas mãos que com o cano de um revólver, como ele mesmo canta na letra de “Soldado Romano”, repleto de referências bíblicas inteligentes –, tudo indica que ele foi assassinado por policiais, irritados pelo modo não indulgente com que ele reage a uma abordagem preconceituosa de rotina. Ocorre que isso instaura uma súbita ruptura entre Maria e seus vizinhos, já que ela passa a ser tratada com frieza por uma amiga e com desconfiança por um traficante local, irritado com o comparecimento freqüente da polícia naquela região, após as denúncias da mãe aflita.

Partindo de um evento também autobiográfico – o assassinato do próprio irmão – , Cristiano Burlan utiliza este clímax dramático (o sumiço de um ente querido) para demonstrar tanto a fragilidade das instituições estatais quanto a sanha auto-organizadora de indivíduos obrigados a amadurecerem ideologicamente, de maneira imediata. Num primeiro momento, Maria age (e é tratada) de maneira ríspida, quando responsabiliza a secretária de uma escola pela falta de aviso quanto às faltas recorrentes de Valdo, e agressiva, quando é ignorada ao denunciar para um escrivão policial o sumiço de seu filho. Mas, após a conversa atenta com uma mulher que precisou fortalecer-se ao receber a notícia, via transmissão radiofônica, do assassinato do filho, ela é dotada de um tipo de força que ressignifica todo o seu cotidiano – não sendo casual que o ‘rap’ executado durante os créditos finais, novamente a cargo do intérprete Dunstin Farias, chame-se justamente “Antígona”.

No percurso errático da protagonista, em busca de notícias sobre o desaparecimento em pauta (mesmo suspeitando do que tenha ocorrido), Maria encontra outra imigrante proveniente do Nordeste (interpretada pela corroteirista Ana Carolina Marinho), numa das várias viagens de ônibus captadas pelo filme, o que representa um alento frente aos contínuos maus-tratos da sociedade sudestina. Diante de um cadáver desconhecido, no Instituto Médico Legal, ela sorri de maneira nervosa, ao perceber que aquele não é seu filho. Sem saber como despejar a sua fúria contra o descaso alheio, ela age de maneira rude quando a dona de um boteco vende de maneira hiperfaturada a meia-dúzia de ovos que, apenas uma semana antes, comprara por um valor menor. “Aumentou”, diz a vendedora, de maneira ressequida. Maria tem vontade de quebrar tudo, sentindo-se frustrada e solitária. No fogão, a panela de pressão serve como potente metáfora.

Noutro momento que parece deslocado, mas é fundamental para o desfecho militante do filme, Maria interage com a personagem de Helena Ignez sobre o sofrimento experimentado pelas mães de filhos desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil. Numa imagem derradeira, mulheres seguram um cartaz das Mães de Maio, à guisa de equiparação histórica acerca do que é vivenciado pela protagonista. O drama individual é, por dedução, espelhado socialmente, demonstrando, mais uma vez, que a intimidade é política, através de sua publicização.

Além do referido prêmio de interpretação feminina, “A Mãe” também foi laureado nas categorias Melhor Direção e Melhor Desenho de Som, na edição deste ano do Festival de Cinema de Gramado. Para quem é acostumado a assistir aos documentários ensaísticos do realizador, talvez cause algum estranhamento essa empreitada ficcional, ainda que algumas de suas obsessões temáticas e reivindicativas possam ser facilmente reconhecidas. O modo como o local onde Maria mora é apresentado, por exemplo, de maneira rigorosamente descritiva, sem que as condições de miserabilidade sejam enfatizadas enquanto justificativas para um tratamento marginal dos indivíduos, mas, pelo contrário, enquanto causa desse problema, já que se trata de um reflexo do descaso estatal.

Num breve descanso em sua rotina corrida de sobrevivência sob o Capitalismo, Maria conversa com um pastor-poeta, que lhe recita alguns versos rimados de Patativa do Assaré [1909-2022], enquanto deixa para a exortação conscienciosa que acontecerá ao longo do filme. Fica a advertência: “encontramos em nós uma força que nem sabíamos que tínhamos”, acrescenta uma mãe depoente. Quantos e quantos dramas que nem este não acontecem diariamente? Mais que nos conduzir a um choro tangencialmente reparador, este filme obriga-nos a prestar atenção duradoura em quem está ao nosso lado em instantes de aflição. Relembremos o que o título evoca, portanto.



Wesley Pereira de Castro.

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