domingo, 23 de agosto de 2009

O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN" (2005). Direção: Ang Lee


Rastrear tematicamente a trajetória fílmica de Ang Lee, mesmo que seja de maneira superficial, é uma atividade que permite ao espectador perceber que seus trabalhos versam sempre sobre o mesmo assunto: o questionamento da autoridade patriarcal como condição indispensável para a realização emocional dos indivíduos. Tanto em suas obras mais apuradas [“Comer, Beber, Viver” (1994), “Razão e Sensibilidade” (1995), “O Tigre e o Dragão” (2000)] quanto em suas produções carentes de maior inspiração [“Tempestade de Gelo” (1997), “Hulk” (2003)], o que se detecta é um mesmo conflito existente entre as posturas socialmente externas de um pai de família e a emancipação individual (seja criminal ou filantrópica) de seus filhos. Em sua mais recente produção, o enfoque é o mesmo – o impacto de admoestações familiares, transmitidas por vieses masculinos de geração em geração, na vida de determinados indivíduos –, com o diferencial particularmente relevante de que os dois protagonistas envolvem-se num insuspeito e cativante romance homossexual. Sendo assim, é importante averiguar o quanto a descrição realizada por Ennis Del Mar (Heath Ledger) acerca da homofobia ativa de seu pai interferiu drasticamente na sua recorrentíssima taciturnidade comportamental e o quanto o silêncio opressivo do pai de Jack Twist (Peter McRobbie) acerca das posturas homoeróticas do filho (Jake Gyllenhaal) perturbou terminantemente a personalidade sexual deste último, de maneira que ele ostenta uma perene e característica insatisfação erotógena nos contatos que trava com diversas pessoas ao longo de sua trajetória de vida. Interessantemente, tal perturbação sexual descamba na poderosa competição de influências educativas que ele manifesta em relação a seu sogro (Graham Beckel) frente ao filho desobediente e afetado, competição esta que equivale a um dos poucos momentos em que Jack abandona a passividade ferrenha que estigmatiza os seus relacionamentos diferenciados com Ennis Del Mar e com sua esposa Lureen (Anne Hathaway), que, não à toa, comemora a súbita explosão de raiva de seu marido.

Admiravelmente fotografado e musicado pelos talentos respectivos de Rodrigo Prieto e Gustavo Santaolalla, “O Segredo de Brokeback Mountain” filia-se com destreza a um padrão academicista de cinema, que, por incrível e lamentável que possa parecer, estava em falta em Hollywood nos anos recentes, não obstante tal academicismo ser justamente um dos componentes basilares do clássico cinema hollywoodiano. No que diz respeito ao tipo de organização fílmica elemental adotada por Ang Lee, tal opção pelo academicismo exacerbado está diretamente vinculada à ambição demonstrada em filmes anteriores pela investigação minuciosa de traços peculiares da configuração familiar norte-americana, sede do tipo de [decadência tácita da] autoridade paterna que o cineasta tanto anseia por criticar (ou legitimar, segundo alguns de seus detratores mais sensatos). Sendo assim, o extraordinário bucolismo que emula dos lindíssimos cenários naturais fotografados por Rodrigo Prieto pode assumir, na ótima estrutura enredística de Larry McMurtry e Diana Ossana (por sua vez, adaptada de uma estória escrita por Annie Proulx), uma função de retorno utópico ao ambiente em que os protagonistas mais se sentiam amparados um pelo outro, ainda que eventualmente tal amparo fosse gerado pela proximidade extenuante de situações de perigo físico ou de pauperismo monetário. Inclusive, seguindo essa mesma linha de análise, a fetichização geográfica contida no desejo póstumo de Jack Twist – ter suas cinzas espalhadas no local onde vivera belos momentos de amor com Ennis Del Mar – serve como uma oportunidade bem-aproveitada para que o rústico fazendeiro John Twist possa sobrepor sua autoridade paterna sobre a prestimosidade namoratória de Ennis, não permitindo a realização do desejo explicitado em vida por seu filho através da conveniente (e também verídica) reclamação de que ele se achava muito especial para ser enterrado no túmulo da família. Não seria esta reclamação um corolário tardio do desconforto existencial que motivava Jack a assumir posicionamentos passivos em suas experiências sexuais, bem como enxergar na disputa pela atenção do filho com o sogro um instante fugidio de superioridade legisladora?


Mesmo que o grande chamariz publicitário desta obra esteja na espontaneidade do relacionamento homossexual que se desenvolve entre dois vaqueiros troncudos, pode-se argüir que esse tipo de sentimento não passa de uma evolução natural do tipo forçoso de companheirismo que cinge os habitantes das inóspitas localidades do Oeste americano. Hipertrofiando o grau de respeito mútuo que alguns tendenciosos psicanalíticos prognosticaram como homossexualismo recalcado em filmes consagradamente viris como “Rio Vermelho” (1948, de Howard Hawks) e “Rastros de Ódio” (1956, de John Ford), “O Segredo de Brokeback Mountain” na verdade filia-se a uma tradição recente de emotividade no proletariado rural que já fora anteriormente engendrada em filmes muito bons como “Terra de Paixões” (1998, de Stephen Frears) e “Espírito Selvagem” (2000, de Billy Bob Thornton). Ou seja, é perfeitamente natural que, mais cedo ou mais tarde, um roteiro tradicionalista detivesse suas preocupações sentimentais no envolvimento romântico entre dois homens, não sendo tampouco surpreendente que, num futuro próximo, algum diretor mais habilidoso e ousado se disponha a abordar o relacionamento de dependência sobressalente que pode se estabelecer entre um vaqueiro e uma égua, por exemplo. Entretanto, o que mais chama atenção na abordagem sincera do filme em relação ao assunto é o modo como os protagonistas mantêm-se alheios às radicais mudanças comportamentais que estavam se efetivando pelo restante dos Estados Unidos da América na época em que se inicia a trama do filme (década de 1960), alheamento justificado este que dota de ainda mais crueza o relato amedrontado que Ennis Del Mar faz acerca do momento traumático infantil em que presenciara a castração fatal de um rancheiro por causa da vivência paramarital que este compartilhava em relação a alguém do mesmo sexo. Dessa forma, independentemente de a morte de Jack Twist ter-se desenrolado ou não da maneira como Ennis imagina (um espancamento homofóbico), uma das principais conclusões moralmente comodistas a que o filme pode chegar é que talvez não valha tanto a pena assim pôr em prática sentimentos amorosos que ofendam a sociedade ao nosso redor, conclusão esta que deve ser urgentemente refutada, sob pena de macular o brilhantismo de muitas outras situações contidas neste belíssimo filme, como, por exemplo, o modo terno com que Ennis Del Mar cuida da sua camisa manchada de sangue que fora encontrada no armário de Jack Twist.


Obviamente, o filme merece valorização egrégia pelo modo como retrata o homossexualismo, concedendo ao tema uma impressão de naturalidade que, pertencendo ao modelo convencional a que se vincula, favorece bastante a luta de militantes pederásticos que já perceberam que a reivindicação dos direitos homossexuais com base na troca espúria de acusações sexualistas não passa de uma armadilha infundada. Afinal de contas, havendo os estímulos societais adequados, o indivíduo pode entregar-se sem maiores problemas aos instintos primários de bissexualismo absoluto que foram mencionados na abordagem pioneira de Sigmund Freud sobre a sexualidade humana. Além disso, tal qual foi predito por Aristófanes, um dos interlocutores de uma famosa obra de Platão sobre o amor, a fim de “curar” a sua natureza humana, o homem pode casualmente envolver-se com outro homem, de modo que possa haver saciedade erótica em seu convívio para, em seguida, poder “repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida”. É justamente sob essa perspectiva que as tendências uranistas se desenvolvem no melancólico Ennis Del Mar, enquanto que, no caso de Jack Twist, o que se percebe é um condicionamento relativamente pervertido que advém das frustrações familiares descritas alhures. Portanto, convém ressaltar a percepção acertada por parte de alguns críticos de cinema, que acharam previsível que a única mulher com que Jack se envolve durante o filme seja alguém que, desde o primeiro momento, assume completamente as rédeas (principalmente sexuais) do relacionamento, configurando um paliativo sublimatório para Jack no que diz respeito à sua passividade vitalícia, relacionada de um jeito bastante oportuno à sua vida prototipicamente mimada.

No intuito de fazer justiça aos melhores atributos fílmicos desta produção, cabe aqui um elogio extensivo (e, ainda assim, ínfimo) à sublime interpretação de Heath Ledger como Ennis Del Mar, num contexto em que cada um dos aspectos relacionados a tal personificação (caracteres físicos do ator, traços psicológicos do personagem e interpretação propriamente dita) mereça um breve comentário. No que diz respeito à interpretação actancial de Heath Ledger em seu sentido mais lato, é mister concordar racionalmente com os encômios unânimes que muitos exegetas do filme estão dedicando a seu trabalho, no sentido de que ele transmite com dramaticidade singular toda a angústia e determinismo solipsista que perpassa a existência terrena de Ennis Del Mar. No que se refere ao perfeito delineamento dos traços psicológicos e de caráter do personagem, cabe elogiar o modo acertado com que a equipe técnica do filme diegetiza suas inclinações subjetivas, de maneira que, além de o filme ser claramente narrado sob o seu melancólico ponto de vista, somos presenteados com antológicos momentos de cinema, como: a seqüência em que a suposta obrigação masculina de Ennis para gerar filhos serve como pretexto para a dissolução de um casamento prejudicado por problemas de atenção que não eram satisfatoriamente discutidos pela submissa Alma (Michelle Williams, deveras expressiva); a cena em que, num jantar de Ação de Graças, Ennis discute violentamente com sua ex-exposa, o que causa estupor paralisante no novo marido de Alma, desespero exo-sentimentalista nas filhas de Ennis e uma briga gratuita com um motorista iracundo; os bem-executados maneirismos fotográficos de Rodrigo Prieto, que é muito feliz ao focalizar Ennis através do espelho retrovisor circular do veículo de Jack (metonimizando brilhantemente a seletividade andromaníaca deste último) e ao mostrar Ennis em ‘contra-plongée’ frente a fogos de artifício após ter discutido com dois motoqueiros que ofenderam sua mulher (metaforizando mais brilhantemente ainda a explosiva condição interior da personalidade do protagonista); e a adequação, durante os créditos finais, de duas canções – “He Was a Friend of Mine” (interpretada por Willie Nelson) e “The Maker Makes” (cantada por Rufus Wainwright) – que respondem pela amalgamação idealista entre, respectivamente, a iconografia longeva do companheirismo ‘country’ e a elaboração artística de tendências homossexuais.Para finalizar, é impossível não se deslumbrar diante da figura física de Heath Ledger, um dos atores mais bonitos e charmosos da atualidade, cuja falta de envelhecimento no filme talvez possa ser explicada pelo mesmo argumento utilizado pelo genial cineasta Sylvio Back para justificar a ausência de modificações corporais nos personagens de “Aleluia, Gretchen” (1976): “quando as idéias não envelhecem, o corpo resiste”. Evitando-se aqui concordar com a misoginia sugerida em pontos estratégicos do filme, ignorando-se os problemas rítmicos instalados na patética seqüência em que a mãe de Jack Twist (Roberta Maxwell) está em cena e concordando-se inteiramente com a validade do adágio conformista [“quando não se tem nada, não se precisa de nada”] pronunciado por Ennis Del Mar em direção a sua filha involuntariamente volúvel Alma Jr. (Kate Mara), atesta-se: Heath Ledger é o ser humano mais adequado, num filme, para demonstrar o quanto pode ser sedutora, arrebatadora e problemática a contemplação passional de alguém do sexo masculino.

Wesley Pereira de Castro.