segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

AVATAR ('Avatar') EUA, 2009. Direção: James Cameron


O que justificaria que, num ímpeto de fúria reativa, considerássemos um dado filme como sendo o pior que já assistimos até então? A sujeição crescente às hipérboles qualitativas decorrentes da assimilação do maior número possível de filmes similares (leia-se: empapados de clichês cinematográficos) corriqueiramente lançados no circuito comercial de exibição? A percepção de que o discurso geral pretendido pelo roteiro vai de extremo encontro às pretensões comportamentais defendidas pelos personagens? A insipiência da megalomania tecnocrática enquanto supressora da verossimilhança genericamente convencional? Seja qual for o argumento interrogativo utilizado como pressuposto para defender o mais recente trabalho como diretor de James Cameron (após 12 anos de resguardo ficcional!) enquanto infinitesimamente interessante resvala na abominável malevolência do roteiro escrito pelo próprio cineasta, que pouco faz mais do que deturpar uma corruptela histórica do que teria sido os principais processos de colonização destrutiva realizados por nações que se acreditavam mais desenvolvidas do que outras.

Por mais que insistamos em acreditar – enquanto desencargo extremado de consciência benevolente – que este filme possua qualquer germe distante de pacifismo em seu enredo, a renitente construção de falsas dicotomias no roteiro estraçalha a confiança do espectador, que é imperdoavelmente dizimado por imagens, sons e vislumbres imaginativos que projetam uma verdadeira ode à belicosidade. Não é preciso nem se demorar muito em análises do enredo para se perceber que as oposições entre comportamentos pró-científicos X atividades militares pró-destrutivas ou entre humanos ambiciosos X Na’vi pacifistas são completamente falaciosas, dado que ambas são completamente interdependentes. Ou seja, os cientistas deslumbrados do filme só puderam prosseguir em seus estudos justamente porque consentiram de antemão em financiar o plano de exploração avassaladora dos minérios valiosos do planeta Pandora, da mesma forma que o pacifismo ultra-ecológico dos omaticayas é levado a cabo através da produção avassaladora de armas, que vão desde os arcos que tornam famosa a sua hostilidade defensiva até as metralhadoras que os aliados dos mesmos empunham na batalha final. Algo ainda mais chocante: nem mesmo a oposição entre Jake (Sam Worthington) e seu desabrido superior militar é realizada de maneira sincera, dado que a perspectiva roteirística abre espaço para que compartilhemos de vários pontos de vista caros somente a este segundo personagem, provando que mesmo que o enredo tome partido explícito pelo apaixonado paraplégico, esta tomada de partido é tão negativamente complexa quanto aquela que invalida as palavras de Neytiri (Zoë Saldana), quando crê que a entidade parateológica de seu planeta manter-se-á neutra diante da guerra travada entre invasores e nativos pela posse da região arbórea onde se concentra a cobiçada reserva do mineral unobtânio. Em suma: “Avatar” é um perigoso disseminador das mentiras ideológicas veladas por seu aparente mecanicismo moral.


Comparando-se este filme com obras tão diversas quanto “A Missão” (1986, de Roland Joffé), “O Último dos Moicanos” (1992, de Michael Mann), “Pocahontas – O Encontro de Dois Mundos” (1995, de Mike Gabriel & Eric Goldberg) ou “Apocalypto” (2006, de Mel Gibson), com as quais guarda similaridades tramáticas, percebemos facilmente o quanto ele é deletério em suas corruptelas invertidas das histórias reais de dizimação indígena, amalgamadas com propagandas inassimiláveis dos projetos invasivos dos Estados Unidos da América contra países supostamente terroristas, validando uma expressão comumente encontrada nos telejornais, mas que é impunemente utilizada por Jake Sully: “combater o terror com o terror”. Tal expressão, inclusive, deslegitima um princípio básico da fidedignidade ecológica, que é precisamente a fixação em métodos repelentes de violência, e não a subsunção cavalar a ela que é promulgada pelos personagens, ostensivamente pintados em cores de guerra.

Imaginar os competentes atores Wes Studi e CCH Pounder por debaixo da maquiagem dos omaticayas faz com que perguntemo-nos que estranhas motivações teriam levado-os a defenderem (no sentido indutivo do termo) personagens radicalmente opostos às causas raciais que eles sub-repticiamente defenderam ao longo de suas discretas carreiras. O mesmo pode ser dito sobre a exuberante Sigourney Weaver, impassível numa personagem ainda mais ranzinza do que aquela vivificada em “Alien - A Ressurreição” (1997, de Jean-Pierre Jeunet) e que comete um indecente ato de traição pessoal quando, ao ser resgatada por Jake depois que leva um tiro e carregada a um lugar sagrado dos Na’vi para tentar ser curada, imagina-se coletando amostras dos vegetais que a cercam. Percebemos neste instante que, por mais bem-intencionada que ela se mostre ao longo da projeção, ela compartilha dos mesmos ideais possessivos contra os quais está lutando, provando mais uma vez que sua conivência com os planos de dominação do pernicioso Parker Selfridge (Giovanni Ribisi) é mais intencional do que o roteiro demonstra. Sobre o protagonista Jake Sully, lamenta-se que seus atos heróicos precipitados, principalmente no que se refere à rápida adaptação ao seu ágil avatar ou à domesticação bem-sucedida de uma perigosa e gigantesca ave de rapina (que, de uma hora para outra, ele comemora como sendo “sua”), não concedam tempo para que ele deixe de ser o personagem antipático, frustrado e resmungão que exerce a função eventual de narrador, visto que sua repulsa inicial em participar de uma missão em que pouco mais é do que o substituto puramente genético do seu irmão gêmeo mais capacitado e recentemente morto – com quem é irritantemente comparado (e dimunuído) em mais de uma situação – é pronta e esquematicamente esquecida. Sobre os demais atores, resta lamentar que eles submetam-se crassamente a estereótipos tão pavorosos quanto inverossímeis.


Já que os gastos exacerbados que o diretor James Cameron inoculou neste filme funcionam como um fator de consideração sub-qualitativa para alguns exegetas, convém dizer que os aparatos técnicos são pouco destacáveis em relação à pletora sufocante de efeitos especiais que identificamos em qualquer pretenso arrasa-quarteirão anual. Além disso, a trilha sonora irritantemente triunfalista de James Horner prejudica ainda mais a esvaziada dramaticidade de seqüências como aquela em que os aliados de Tsu’tey (Laz Alonso) são mortalmente atingidos por seus inimigos robotizados. Quanto ao desempenho directivo de James Cameron, percebemos aqui uma verdadeira involução em relação aos trabalhos anteriores, visto que a propalada tridimensionalidade computadorizada deste filme fica muito aquém das inovações animadas engendradas pelos Estúdios Pixar, para ficar apenas num exemplo imediatista, sendo muitas das cenas protagonizadas pela tribo Na’vi inconvincentes, em especial no que tange às tentativas desesperadas do diretor de fotografia Mauro Fiore e da equipe responsável pela direção de arte em deslumbrar o espectador com relances de fauna e flora que apenas transpõem para um exotismo supostamente alienígena animais e vegetais de aparência misteriosa que podem ser encontrados no próprio planeta Terra, completamente dizimado no contexto do século XXII em que se passa o filme.


Voltando-se às desesperadas tentativas iniciais de se provar por meio de auto-interrogações que a ruindade atroz detectada em cada um dos fotogramas concernentes aos 166 minutos de duração deste filme ultrapassam a mera repulsa subjetiva e dizem respeito aos péssimos exemplos morais perpetrados e difundidos pelo roteiro intencionalmente escamoteado de James Cameron, nosso temor é sorrateiramente aumentado quando soubemos que o diretor já anunciou o intento de produzir continuações para esta saga. Tendo-se em mente que a trama atualiza defensivamente o genocídio pseudo-civilizatório e pondo-se em destaque que o título do filme é apologético à virtualidade das ações individuais, dado que Jake só assume consciência pacífico-ecológica quando está na pele do omaticaya que lhe serve de avatar, podemos perguntar objetivamente a que tipo de prática real este filme se filia.

Na menos pior e conivente das hipóteses, a uma variação oportunista de sentimentalidade, em que a possibilidade de redenção conscienciosa ofertada a Jake é veementemente negada aos demais militares com que temos a oportunidade de observar, visto que, pela lógica interna do enredo, quem age com más intenções deve morrer pelo bem de quem deseja sobreviver. Num dos processos iniciatórios de Jake enquanto omaticaya, ele é elogiado pela “morte limpa” que induz a um animal futuramente servido como alimento para os demais membros da tribo. Fica, portanto, a mensagem para quem realmente quiser levá-la à frente...

Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

SINÉDOQUE, NOVA YORK ('Synecdoche, New York'). EUA, 2008. Direção: Charlie Kaufman.


No plano dicionarístico, sinédoque pode ser definida como sendo o “tropo que se funda na relação de compreensão e consiste no uso do todo pela parte”. Por motivos óbvios para quem conhece o estilo rocambolesco dos roteiros de Charlie Kaufman, tal definição (ou sequer o pronunciamento da figura de linguagem constante do título) não é diretamente manifesta no filme, apesar de sua aplicação ser demasiado prática e não obstante o conhecimento da mesma ser essencial para se compreender o processo que tanto aflige o amargurado protagonista.

Antes, porém, que mergulhemos nesta delirante trama cara à genialidade repetitiva (leia-se autoral) de Charlie Kaufman, convém investigar um dilema funcional estabelecido desde que o roteirista foi descoberto por Hollywood, no sentido de que sempre houve dúvidas no que diz respeito ao controle que ele supostamente exerceria sobre os diretores que se dispunham a transformar em imagens suas bizarras estórias. Tal dilema se manifesta por haver suspeitas de que os referidos diretores (no caso, Spike Jonze, Michel Gondry e, em grau menor, George Clooney) teriam seus talentos igualmente bizarros subsumidos às exigências roteirísticas de Charlie Kaufman, que comumente atuava na função adicional de produtor executivo, de maneira que a assunção do mesmo como realizador era uma previsão que não tardaria a ser posta em prática. Dito e feito: estreando como diretor, Charlie Kaufman exibe neste filme poucas diferenciações em relação aos estratagemas técnicos que os outros diretores citados adotaram em filmes precedentes, de maneira que se confirma a ditatorialidade positiva dos seus roteiros. E, como tal, “Sinédoque, Nova York” é um filme confuso e genial, repleto de imagens surreais e obsedantes, que vão desde a rápida focalização de um ato urinário misturado com sangue à constância na amostragem de uma casa continuamente incendiada. Em outras palavras: comparando-se este filme com obras igualmente geniais como “Quero Ser John Malkovich” (1999, de Spike Jonze) ou “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004, de Michel Gondry), poucas são as evoluções directivas perceptíveis, mas, ainda assim, o filme é digno de notoriedade avaliativa, justamente por causa da inventividade insuspeita de seu roteiro. E, por mais que este redunde em situações assumidas como tipicamente kaufmanianas (redundância muito coerente com a obsessão masturbacional de seus entrechos), os méritos do filme permanecem destacados, principalmente em virtude de sua acertada (e provocada) identificação com parcelas específicas da platéia, que transportam para a tela as crises inevitáveis da solidão humana contemporânea a que estão submetidos.


Oficialmente, a trama do filme tem início em 2005, quando o protagonista Caden Cotard (interpretado por Philip Seymour Hoffman) folheia um jornal e percebe a recorrência de ameaças patogênicas no mundo que o cerca, bem como aos demais integrantes de sua própria família, visto que sua filha de quatro anos reclama que está defecando verde. Quando sofre um acidente com a torneira da pia de seu banheiro, vai a diversos especialistas médicos e a indefinição acerca da doença de que estaria padecendo faz com que ele se torne escravo de uma hipocondria crescente. Paralelamente, sua esposa escultora (Catherine Keener) engendra por vias artísticas diversas da sua teatralidade e viaja para Alemanha com sua filha, enquanto Caden recebe um prêmio de incentivo cultural que o tornará obcecado em produzir uma peça ultra-realista, cujos ensaios auto-fungíveis estender-se-ão até o segundo final de sua vida. O que torna, entretanto, esta trama essencialmente estranha em algo avassaladoramente inusitado é a completa anarquia espaço-temporal a que o filme se filia, dado que não somente a cada vez que o personagem principal abre o jornal está escrita uma data diferente, como também a montagem do filme faz uso de inúmeros ‘faux raccords’, o que torna impossível uma localização espacial linear em relação aos ambientes percorridos pelos personagens, por sua vez duplicados ‘ad extremis’ através da compulsão do diretor teatral em fazer com que eles sejam reproduzidos por atores que serão vistos interpretando atores interpretando atores que interpretam pessoas – e assim sucessivamente.

Nesse sentido, o filme se torna um tanto enfadonho em sua meia-hora final de projeção, tamanha a quantidade de situações que se repetem dentro desta proposta intra-metalingüística do diretor/roteirista, mas o enfado que sentimos durante a projeção/exibição é também mais um dos elementos que capacitam o filme como sendo uma obra extremamente original dentro de seu desgaste repetitivo de uma fórmula enredística levada ao extremo por seu realizador. Afinal de contas, em meio à infinitude das situações representadas através do desejo do realizador teatral Caden em obter o efeito máximo de realismo em sua peça de ações simultâneas, há a construção de personagens riquíssimos em distúrbios psicológicos ocasionados pela crescente anomia moral da sociedade capitalista globalizada, que enxerga a mantença dos comportamentos solitários humanos como propulsora de consumo, seja de livros escapistas e/ou de auto-ajuda, seja de qualquer produto ou substância que permita ao seu comprador a ilusão de que está ocupado. Assim sendo, a percepção intradiegética de que um livro sobre anti-semitismo e degradação racistas escrito por uma criança de quatro anos foi transformado em filme de sucesso escancara a validade discursiva do ótimo roteiro aqui analisado, que não é somente autocomplacente em sua ode desistente/resistente à masturbação consoladora (vide a cena em que a segunda filha de Caden recebe um determinado valor em dinheiro para deixar de brincar com sua genitália), mas bastante ferino em sua admoestação contra a perfídia irrevogável do contexto sociocultural atual.


Considerando-se a abundância de defeitos (ou melhor, redundâncias) na feitura deste filme, ainda assim o mesmo permanece merecedor da alcunha quantitativa de “ótimo”, inclusive porque contém três das seqüências de humor negro mais geniais do cinema hollywoodiano contemporâneo: na primeira delas, bem rápida, a encantadora recepcionista Hazel (Samantha Morton) é mostrada aos prantos no interior de seu carro, depois que uma elipse brusca permite entrever que Caden recusou o convite feito por ela para fumarem maconha juntos, com evidente interesse sexual por parte dela; na segunda, quando viaja para a Alemanha, visando reencontrar esposa e filha que o abandonaram, Caden encontra o presente cor-de-rosa que enviara à pequena Olive (Sadie Goldstein, impressionante) jogado no chão de uma rua empanturrada de lixo. Uma doença oftalmológica, porém, o impede de chorar, não obstante sua evidente tristeza e, como tal, ele retira de seu bolso um recipiente providencial de lágrimas artificiais, para ser focalizado berrando de consternação no plano imediatamente seguinte; e, por fim, quando está prestes a morrer por causa de uma infecção decorrente das tatuagens floridas que a tornaram famosas como ‘stripper’ lésbica e iconcoclasta, Olive (agora interpretada por Robin Weigert) pede que seu pai comunique-se com ela utilizando fones de ouvido com tradução automática de alemão para inglês (e vice-versa), visto que ela não mais fala o idioma pátrio. Enquanto conversam, Olive reclama que seu pai nunca pediu perdão pela situação imaginária de “ser homossexual e ter um amante chamado Eric”, perdão este que, depois que pedido por Caden, não é concedido por Olive, que tomba fatalmente, enquanto caem as pétalas de suas imensas tatuagens.


Somente por conter estas três seqüências, “Sinédoque, Nova York” já se consolidaria como um dos filmes mais fabulosos lançados pelo cinema norte-americano típico na primeira década do século XXI, mas outras situações inusitadas e beirando o surrealismo são também dignas de nota, como o diário pessoal cuja escrita evolui à medida que os anos passam, mesmo que a sua escrevente esteja a milhares de quilômetros do espaço em que ele foi encontrado ou a causa da morte de Hazel, diagnosticada com câncer proveniente do excesso de ingestão de fumaça, atribuído mais aos cigarros que fumava antes de dormir do que à aparentemente interminável queimada diuturna de sua residência.


A trilha sonora extremamente melancólica de Jon Brion (que emula bastante os acordes entristecidos de Carter Burwell, músico periódico nos demais filmes roteirizados pro Charlie Kaufman), a montagem sincopada de Robert Frazen [que inclui planos mui significativos em rápidas aparições, conforme se constata na visão inicial, quase subconsciente do personagem Sammy (vivido por Tom Noonan), parado em frente à residência do protagonista], a homogeneidade de um elenco magnificamente escolhido a dedo (composto por, entre outros talentos, Hope Davis, Jennifer Jason Leigh, Samantha Morton, Emily Watson, Michelle Williams e Dianne Wiest) e a direção de fotografia proposital e acertadamente subserviente de Frederick Elmes (que, junto à direção de arte, ilumina a cidade com os tons obscuros e lunares pretendidos por um dos títulos pensados para a peça eternamente ensaiada de Caden) são elementos técnicos que dignificam ainda mais a opulência megalomaníaca – e, venhamos e convenhamos – (auto)justificada do filme, que, conforme dito, peca por estender ao limite da exaustão associativa as situações de metalinguagem no quartel final do enredo, quando as impossibilidades exibitórias da pretensiosa encenação de Caden tornam-se o foco da narrativa.

Felizmente, a opção emergencial por encenar o falecimento do protagonista através de instruções auriculares, depois que a cidade (ou o cenário?) é esvaziado em razão de uma hecatombe esdrúxula não perece forçosa e filia-se com emoção ao projeto inicial de fazer com que o protagonista – da mesma forma que qualquer espectador que com ele tenha se identificado, para além do automatismo da atuação do comumente ótimo Philip Seymour Hoffman – sucumba peremptoriamente aos males pós-modernos contra os quais não conseguiu lutar, justamente por estar impregnado por eles até o âmago (vide a sua adesão imitativa às pinturas microscópicas de sua esposa, para ficar num exemplo direto). Ao final, as (in)certezas dos personagens sobre a proximidade da morte e a inevitabilidade da solidão estão em acordo com um aforismo do poeta estadunidense Raplh Waldo Emerson, que apregoa que, ao contrário do que se crê, não é uma desgraça amar sem ser correspondido, pois “quem for realmente grande compreenderá que o verdadeiro amor não pode ser correspondido”. Com certeza, eis um assunto que Charlie Kaufman domina como ninguém!

Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

ATIVIDADE PARANORMAL ('Paranormal Activity') EUA, 2007. Direção: Oren Peli


Num artigo datado de 1947, o crítico marxista Georg Lukács averigua os conceitos de “arte livre” e “arte dirigida” e constata que, no interior do sistema de produção (cultural) capitalista, “a liberdade total de invenção torna-se, na realidade, uma servidão”. Segundo ele, a banalização das formas penetradas por um invencível prosaísmo ideológico leva os artistas a fecharem-se exclusivamente em suas subjetividades íntimas, de maneira que as pretensas invenções formais da atualidade desvinculam-se de conteúdos essencialmente novos, ao contrário do que é socialisticamente idealizado. Não obstante o referido texto abordar um contexto sociocultural e uma opinião política muito particulares, ele é válido para se abordar os fracassos estéticos da obra aqui analisada, sobrevalorizada enquanto filme bem-sucedido mais por causa das proporções econômicas dele oriundas do que necessariamente por seu caráter de novidade em relação à arte cinematográfica, visto que, com o passar dos anos, mais e mais filmes com aparência de vídeo caseiro hiper-realista são lançados no mercado com a intenção de encantar parcelas do público enfastiadas com a similaridade serial dos produtos hollywoodianos.

É por isso, portanto, que “Atividade Paranormal”, para além de possuir seus méritos discretos (quase todos atrelados à atuação espontânea do desconhecido Micah Sloat), vem sendo julgado de forma equivocada por seus admiradores e, como tal, injustamente maculado por preconceitos relacionados à sua inata legitimação modista. Afinal de contas, se deixarmos de lado por um instante os maneirismos videográficos do montador, roteirista e diretor Olen Peli, percebemos no entrecho de “Atividade Paranormal” um vácuo preenchido pela anunciação auto-provocada dos fenômenos contidos em seu título, estando muito aquém de obras congêneres, como a surpreendente reviravolta moral do clássico “Holocausto Canibal” (1980, de Ruggero Deodato) ou os arguciosos chistes técnicos do excelente “A Bruxa de Blair” (1999, de Daniel Myrick & Eduardo Sánchez). Em outras palavras: as tramas elaboradas que sustentavam o invencionismo formal das obras citadas não encontram eco em “Atividade Paranormal”, visto que, neste último filme, o que mais pode ser confundido com improviso é, no máximo, um eufemismo para precipitação epidérmica.


Investiguemos tal acusação no interior do próprio filme: nas primeiras cenas, Micah (Micah Sloat) testa o funcionamento de uma câmera recém-comprada para registrar fenômenos paranormais que estão a se manifestar na residência de sua histérica namorada Katie (Katie Featherston), por sua vez espantada com a opulência do equipamento conseguido por seu dedicado companheiro. Sabemos mais à frente que a captação profissional de imagens e sons engendrada por Micah equivale a ‘hobby’ ou aptidão secundária, visto que ele gasta seu tempo trabalhando na Bolsa de Valores de sua cidade, o que inflaciona as suspeitas acerca da edição intradiegética, que é obviamente diferenciada daquela posta em cena pelos estudantes de Cinema que protagonizam as duas extraordinárias obras anteriormente citadas e do amadorismo proposital de “Cloverfield – Monstro” (2008, de Matt Reeves), em que as pessoas que carregam a câmera-personagem são selecionadas fortuitamente. Assim sendo, os engodos hiper-realistas contidos nos letreiros inicial e final (em que a equipe técnica do filme agradece o apoio concedido pelo departamento de polícia local e pelas famílias dos atores-personagens e, ao final, revela que o crime cometido no clímax permanece não-resolvido até hoje) são negativamente problemáticos em função da inocuidade propulsiva do roteiro, já que, em muitas situações, os personagens forçam as aparições fantasmagóricas que afligem Katie, de maneira que as expectativas geradas por tais aparições soam enfadonhas (e, em alguns casos, até risíveis) para o espectador, felizmente confortado pela credibilidade naturalista do ator Micah Sloat, que, numa ampliação literal, carrega o filme nas costas, tal qual faz com a imensa câmera que hesita em largar até mesmo em momentos de extrema tensão e erotismo.
Somos, então, levados a inquirir sobre o quanto a participação dos atores/cúmplices desse tipo de projeto interferem na efetividade dramática do mesmo, posto que, nos três exemplos genéricos anteriormente citados, a onipresença da câmera era justificada por aspectos funcionais da construção do roteiro e dos personagens, e não forçosamente adotada, conforme acontece em “Atividade Paranormal”.

Se, num exercício oportunista de imaginação comparativa, transpuséssemos as bases enredísticas dos filmes citados para um contexto tradicional de abordagem narrativa, as mesmas permaneceriam críveis, dado que cada uma delas possui expressão conteudística sobressalente ao formato sustentacular de exibição, expressões estas que vão desde o impacto desmoralizador de “Holocausto Canibal” até o espanto catastrófico de “Cloverfield – Monstro”, passando pelo revisionismo documental de “A Bruxa de Blair”. Comparando “Atividade Paranormal” com seus modelos tramáticos mais próximos [“O Enigma do Mal” (1981, de Sidney J. Furie) e “Poltergeist, o Fenômeno” (1982, de Tobe Hooper)], o mesmo demonstra-se incapaz de sustentar, noutro contexto hipotético de abordagem factual, tanto o horror gerador de impotência do primeiro filme quanto o estudo causal de costumes familiares de época aplicado no segundo, sendo, ao invés disso, preenchido por expectativas e provocações (vide a cena em que um tabuleiro de ‘Ouija’ incendeia-se espontaneamente) quase irritantes em sua insistência. Por isso, deve ser destacado e elogiado o ótimo desempenho actancial de Micah Sloat, que acerta ao dotar as passagens transitivas do filme com um senso de humor contagiante, efetivo tanto na imaturidade demonstrada à beira da piscina, quando ele realiza brincadeiras vulgares com seu dedo médio, quanto no hilário momento em que ele se vale de uma piada interrogativa do grupo britânico Monty Python para “entrar em contato” com a entidade que apavora sua namorada. Katie Featherston, por sua vez, é prejudicada pela histeria previsível de sua personagem, que gradualmente se torna mais e mais clicherosa, chegando ao cúmulo de atenuar o pavor imediato que advém da atordoante cena final, quando ela é mostrada com olhar tipicamente desnorteado e um penteado hipercodificado sobre a sua face. Entretanto, no plano da sugestão fisiológica, esta cena final é bastante fecunda ao amedrontar o espectador, que, com certeza, sentir-se-á perseguido por associações subconscientes de retroalimentação do medo após a sessão do filme. Ou seja: mesmo que o filme exiba mais defeitos que virtudes, ele é bastante exitoso na tarefa inicialmente proposta de assustar a platéia.


Feitas todas estas considerações, e pondo-se em evidência o fato de que o filme é realmente apavorante, “Atividade Paranormal” talvez se torne uma experiência fílmica mais agradável (no plano estético) quando revisto, no sentido de que, assim, os efeitos vãos que provêm da exacerbada criação de expectativas convertem-se num componente analítico do que se é pretendido ao se lançarem anualmente inúmeras obras como esta, em que o estupor imediato do público é sinonimizado como reação hipodérmica prevista (e aguardada) por seus produtores e distribuidores capitalistas. Nesta revisão, portanto, os caracteres do relacionamento amoroso entre Micah e Katie podem ser beneficiados num cotejo com “Mar Aberto” (2003, de Chris Kentis), por exemplo, em que o comportamento para-matrimonial numa situação de horror inelutável assume contornos paradigmáticos mui dignos no que se refere às características psicológicas dos personagens.

Nesse sentido, as ocasiões mais interessantes de “Atividade Paranormal”, como o momento em que o casal protagonista se abraça no chão depois que sobrevivem a um ataque ectoplasmático ou sempre que eles são filmados dormindo, são dotadas de um valor transcendente às suas limitações formais natas, vendidas como inovações. E é aqui que uma pertinente citação lukacsiana merece espaço: “o perigo de todo utopismo é o de ficar muito aquém daquilo que, com toda probabilidade, pode ser efetivamente realizado no caso do aproveitamento flexível das possibilidades reais”. Eis um caso!

Wesley Pereira de Castro.