segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

SINÉDOQUE, NOVA YORK ('Synecdoche, New York'). EUA, 2008. Direção: Charlie Kaufman.


No plano dicionarístico, sinédoque pode ser definida como sendo o “tropo que se funda na relação de compreensão e consiste no uso do todo pela parte”. Por motivos óbvios para quem conhece o estilo rocambolesco dos roteiros de Charlie Kaufman, tal definição (ou sequer o pronunciamento da figura de linguagem constante do título) não é diretamente manifesta no filme, apesar de sua aplicação ser demasiado prática e não obstante o conhecimento da mesma ser essencial para se compreender o processo que tanto aflige o amargurado protagonista.

Antes, porém, que mergulhemos nesta delirante trama cara à genialidade repetitiva (leia-se autoral) de Charlie Kaufman, convém investigar um dilema funcional estabelecido desde que o roteirista foi descoberto por Hollywood, no sentido de que sempre houve dúvidas no que diz respeito ao controle que ele supostamente exerceria sobre os diretores que se dispunham a transformar em imagens suas bizarras estórias. Tal dilema se manifesta por haver suspeitas de que os referidos diretores (no caso, Spike Jonze, Michel Gondry e, em grau menor, George Clooney) teriam seus talentos igualmente bizarros subsumidos às exigências roteirísticas de Charlie Kaufman, que comumente atuava na função adicional de produtor executivo, de maneira que a assunção do mesmo como realizador era uma previsão que não tardaria a ser posta em prática. Dito e feito: estreando como diretor, Charlie Kaufman exibe neste filme poucas diferenciações em relação aos estratagemas técnicos que os outros diretores citados adotaram em filmes precedentes, de maneira que se confirma a ditatorialidade positiva dos seus roteiros. E, como tal, “Sinédoque, Nova York” é um filme confuso e genial, repleto de imagens surreais e obsedantes, que vão desde a rápida focalização de um ato urinário misturado com sangue à constância na amostragem de uma casa continuamente incendiada. Em outras palavras: comparando-se este filme com obras igualmente geniais como “Quero Ser John Malkovich” (1999, de Spike Jonze) ou “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004, de Michel Gondry), poucas são as evoluções directivas perceptíveis, mas, ainda assim, o filme é digno de notoriedade avaliativa, justamente por causa da inventividade insuspeita de seu roteiro. E, por mais que este redunde em situações assumidas como tipicamente kaufmanianas (redundância muito coerente com a obsessão masturbacional de seus entrechos), os méritos do filme permanecem destacados, principalmente em virtude de sua acertada (e provocada) identificação com parcelas específicas da platéia, que transportam para a tela as crises inevitáveis da solidão humana contemporânea a que estão submetidos.


Oficialmente, a trama do filme tem início em 2005, quando o protagonista Caden Cotard (interpretado por Philip Seymour Hoffman) folheia um jornal e percebe a recorrência de ameaças patogênicas no mundo que o cerca, bem como aos demais integrantes de sua própria família, visto que sua filha de quatro anos reclama que está defecando verde. Quando sofre um acidente com a torneira da pia de seu banheiro, vai a diversos especialistas médicos e a indefinição acerca da doença de que estaria padecendo faz com que ele se torne escravo de uma hipocondria crescente. Paralelamente, sua esposa escultora (Catherine Keener) engendra por vias artísticas diversas da sua teatralidade e viaja para Alemanha com sua filha, enquanto Caden recebe um prêmio de incentivo cultural que o tornará obcecado em produzir uma peça ultra-realista, cujos ensaios auto-fungíveis estender-se-ão até o segundo final de sua vida. O que torna, entretanto, esta trama essencialmente estranha em algo avassaladoramente inusitado é a completa anarquia espaço-temporal a que o filme se filia, dado que não somente a cada vez que o personagem principal abre o jornal está escrita uma data diferente, como também a montagem do filme faz uso de inúmeros ‘faux raccords’, o que torna impossível uma localização espacial linear em relação aos ambientes percorridos pelos personagens, por sua vez duplicados ‘ad extremis’ através da compulsão do diretor teatral em fazer com que eles sejam reproduzidos por atores que serão vistos interpretando atores interpretando atores que interpretam pessoas – e assim sucessivamente.

Nesse sentido, o filme se torna um tanto enfadonho em sua meia-hora final de projeção, tamanha a quantidade de situações que se repetem dentro desta proposta intra-metalingüística do diretor/roteirista, mas o enfado que sentimos durante a projeção/exibição é também mais um dos elementos que capacitam o filme como sendo uma obra extremamente original dentro de seu desgaste repetitivo de uma fórmula enredística levada ao extremo por seu realizador. Afinal de contas, em meio à infinitude das situações representadas através do desejo do realizador teatral Caden em obter o efeito máximo de realismo em sua peça de ações simultâneas, há a construção de personagens riquíssimos em distúrbios psicológicos ocasionados pela crescente anomia moral da sociedade capitalista globalizada, que enxerga a mantença dos comportamentos solitários humanos como propulsora de consumo, seja de livros escapistas e/ou de auto-ajuda, seja de qualquer produto ou substância que permita ao seu comprador a ilusão de que está ocupado. Assim sendo, a percepção intradiegética de que um livro sobre anti-semitismo e degradação racistas escrito por uma criança de quatro anos foi transformado em filme de sucesso escancara a validade discursiva do ótimo roteiro aqui analisado, que não é somente autocomplacente em sua ode desistente/resistente à masturbação consoladora (vide a cena em que a segunda filha de Caden recebe um determinado valor em dinheiro para deixar de brincar com sua genitália), mas bastante ferino em sua admoestação contra a perfídia irrevogável do contexto sociocultural atual.


Considerando-se a abundância de defeitos (ou melhor, redundâncias) na feitura deste filme, ainda assim o mesmo permanece merecedor da alcunha quantitativa de “ótimo”, inclusive porque contém três das seqüências de humor negro mais geniais do cinema hollywoodiano contemporâneo: na primeira delas, bem rápida, a encantadora recepcionista Hazel (Samantha Morton) é mostrada aos prantos no interior de seu carro, depois que uma elipse brusca permite entrever que Caden recusou o convite feito por ela para fumarem maconha juntos, com evidente interesse sexual por parte dela; na segunda, quando viaja para a Alemanha, visando reencontrar esposa e filha que o abandonaram, Caden encontra o presente cor-de-rosa que enviara à pequena Olive (Sadie Goldstein, impressionante) jogado no chão de uma rua empanturrada de lixo. Uma doença oftalmológica, porém, o impede de chorar, não obstante sua evidente tristeza e, como tal, ele retira de seu bolso um recipiente providencial de lágrimas artificiais, para ser focalizado berrando de consternação no plano imediatamente seguinte; e, por fim, quando está prestes a morrer por causa de uma infecção decorrente das tatuagens floridas que a tornaram famosas como ‘stripper’ lésbica e iconcoclasta, Olive (agora interpretada por Robin Weigert) pede que seu pai comunique-se com ela utilizando fones de ouvido com tradução automática de alemão para inglês (e vice-versa), visto que ela não mais fala o idioma pátrio. Enquanto conversam, Olive reclama que seu pai nunca pediu perdão pela situação imaginária de “ser homossexual e ter um amante chamado Eric”, perdão este que, depois que pedido por Caden, não é concedido por Olive, que tomba fatalmente, enquanto caem as pétalas de suas imensas tatuagens.


Somente por conter estas três seqüências, “Sinédoque, Nova York” já se consolidaria como um dos filmes mais fabulosos lançados pelo cinema norte-americano típico na primeira década do século XXI, mas outras situações inusitadas e beirando o surrealismo são também dignas de nota, como o diário pessoal cuja escrita evolui à medida que os anos passam, mesmo que a sua escrevente esteja a milhares de quilômetros do espaço em que ele foi encontrado ou a causa da morte de Hazel, diagnosticada com câncer proveniente do excesso de ingestão de fumaça, atribuído mais aos cigarros que fumava antes de dormir do que à aparentemente interminável queimada diuturna de sua residência.


A trilha sonora extremamente melancólica de Jon Brion (que emula bastante os acordes entristecidos de Carter Burwell, músico periódico nos demais filmes roteirizados pro Charlie Kaufman), a montagem sincopada de Robert Frazen [que inclui planos mui significativos em rápidas aparições, conforme se constata na visão inicial, quase subconsciente do personagem Sammy (vivido por Tom Noonan), parado em frente à residência do protagonista], a homogeneidade de um elenco magnificamente escolhido a dedo (composto por, entre outros talentos, Hope Davis, Jennifer Jason Leigh, Samantha Morton, Emily Watson, Michelle Williams e Dianne Wiest) e a direção de fotografia proposital e acertadamente subserviente de Frederick Elmes (que, junto à direção de arte, ilumina a cidade com os tons obscuros e lunares pretendidos por um dos títulos pensados para a peça eternamente ensaiada de Caden) são elementos técnicos que dignificam ainda mais a opulência megalomaníaca – e, venhamos e convenhamos – (auto)justificada do filme, que, conforme dito, peca por estender ao limite da exaustão associativa as situações de metalinguagem no quartel final do enredo, quando as impossibilidades exibitórias da pretensiosa encenação de Caden tornam-se o foco da narrativa.

Felizmente, a opção emergencial por encenar o falecimento do protagonista através de instruções auriculares, depois que a cidade (ou o cenário?) é esvaziado em razão de uma hecatombe esdrúxula não perece forçosa e filia-se com emoção ao projeto inicial de fazer com que o protagonista – da mesma forma que qualquer espectador que com ele tenha se identificado, para além do automatismo da atuação do comumente ótimo Philip Seymour Hoffman – sucumba peremptoriamente aos males pós-modernos contra os quais não conseguiu lutar, justamente por estar impregnado por eles até o âmago (vide a sua adesão imitativa às pinturas microscópicas de sua esposa, para ficar num exemplo direto). Ao final, as (in)certezas dos personagens sobre a proximidade da morte e a inevitabilidade da solidão estão em acordo com um aforismo do poeta estadunidense Raplh Waldo Emerson, que apregoa que, ao contrário do que se crê, não é uma desgraça amar sem ser correspondido, pois “quem for realmente grande compreenderá que o verdadeiro amor não pode ser correspondido”. Com certeza, eis um assunto que Charlie Kaufman domina como ninguém!

Wesley Pereira de Castro.

2 comentários:

martin montenegro disse...

Wesley, francamente... seu texto é tão (ou mais) entropizante, rocambolesco, masturbacional, etc - que os filmes do Kaufman.

Dica: em textos críticos (portanto não-ficcionais), depois da redação vem a hora do corte, da edição. Não se poupe, não se apaixone por preciosismos. E verá que depois de enxugar pelo menos 30% do volume produzido, aí restará apenas o seu melhor: o essencial.

Abs

andré gomes disse...

sensacional seu texto.
nem uma critica melhor que essa sobre esse filme tao estranho, curioso e interessante.

grande abraço e parabens