quarta-feira, 27 de julho de 2022

INFINITO ÁBACO (2022, de João Pedro Faro & Bruno Lisboa)


A despeito de ser bastante jovem e de ter erigido uma filmografia ainda exígua, João Pedro Faro converteu-se numa espécie de gênero em si mesmo, sobretudo entre o séquito de cinéfilos cariocas, visto que consegue manusear com habilidade signos audiovisuais que remetem aos experimentalismos de Gus Van Sant - para ficar numa comparação imediata. Se, em seus dois primeiros longas-metragens, o platonismo homossexual sublimado através do sadismo distópico era o grande chamariz, no seu filme mais recente (e realizado em parceria com o colaborador habitual Bruno Lisboa), o pastiche de verborragia esotérica talvez afaste quem não conheça as peculiaridades históricas e geográficas do Rio de Janeiro... 


Protagonizado por alguém que parece uma reencarnação de Enéas Carneiro [1938-2007], em conluio com os personagens de "O Pêndulo de Foucault", romance de Umberto Eco, "Infinito Ábaco" distancia-se ostensivamente da sensualidade abundante nos filmes anteriores do cineasta supracitado. Trata-se de um falso metadocumentário, realizado por Bruno, um rapaz ruivo que deseja dar continuidade às teses místicas de seu pai recém-desaparecido, um arquiteto que cria obsessivamente na infiltração de gigantes subterrenos entre as paisagens fluminenses. Num discurso que mistura menções televisivas com generalismos antropológicos de civilizações extintas, a narração do protagonista torna-se (propositalmente?) enfadonha em sua verborragia frontal. A inventividade nos enquadramentos e os convites à extensão epifânica do tempo, marcas registradas do co-diretor, manifestam-se apenas na segunda-metade do longa-metragem, quando Bruno sai de seu quarto e resolve aventurar-se pela Pedra da Gávea: o instante em que um grupo de turistas anglófonas é flagrado por detrás de um ábaco em primeiro plano é, neste sentido, interessantíssimo!


São poucos os momentos inspirados, entretanto: os diretores parecem sobremaneira fascinados pela narrativa de arqueologia familiar, baseada no conto escrito por um amigo em comum. A curta duração do filme parece excessiva, em razão da pseudo-loquacidade do protagonista e da inexpressividade metafórica envolvendo o instrumento titular, registrado de maneira tão obsessiva quanto infantil. No desfecho, um agradecimento em primeira pessoa e os acordes iniciais de uma canção da banda Metallica. Os amigos - convertidos em fãs - do diretor cultuado aplaudirão os seus chistes débeis, pois as referências que ele utiliza (a abertura defeituosa do "Jornal Nacional", por exemplo) são discerníveis entre eles. Para os demais, lamenta-se que Miguel Clark apareça de maneira distanciada e que o despejo de filosofemas ufológicos revele-se automático e sem vigor político. Muito aquém de "Extremo Ocidente" (2022), portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 2 de julho de 2022

Mostra SP 2022: O FILME DA ESCRITORA (2022, de Hong Sang-Soo)


 Ainda que sejam comuns na filmografia deste cineasta, em que as coincidências e os encontros casuais são elementos importantíssimos, as manifestações epifânicas foram explicitadas com maior efetividade em "In Front of Your Face" (2021), em que a temática da conversão religiosa é central. Nesse sentido, é natural encontrar a abundância deste mesmo aspecto em seu filme mais recente. Todas as suas marcas temáticas estão lá (os profissionais renomados que se encontram após algum tempo, comida e bebidas em primeiro plano), mas o que chama a atenção em seu novo trabalho é a convocação para que imaginemos algo que ocorre fora dos planos, para além daqueles diálogos tão demorados quanto interessantes...


Um dos momentos mais fascinantes, no que tange ao anúncio dessa estratégia, é quando a romancista Jun-Hee (Lee Hye-Young) e a atriz Gil-Soo (Kim Min-Hee) estão comendo vastas porções de lámen num restaurante e notamos que algumas pessoas caminham, fora daquele ambiente, mas vistas através da parede de vidro do local. De repente, uma garotinha pára repentinamente e fica encarando as duas mulheres que conversam. Para qual das duas será que ela está olhando? O que se segue é um instante de pura beleza, em que o diretor aproveita ao máximo as potencialidades do enquadramento. 


Como de praxe em várias de suas obras, a metalinguagem é recorrente, o que já é anunciado desde o título: se, por um lado, os momentos em que Jun-Hee comunica as suas intenções de realizar um curta-metragem com Gil-Soo soam um tanto redundantes, no que tange ao próprio esclarecimento da metodologia fílmica do realizador, por outro, isso culmina em mais um rompante de epifania, quando Kim Min-Hee é enquadrada sozinha num cinema, tal qual acontecera em diversos de seus filmes. Com isso, um magnânimo questionamento é direcionado à própria obra, quando a atriz convertida em personagem, no filme dentro do filme, lamenta que, por ser realizado em preto-e-branco, não possamos contemplar a beleza das cores que a circundam naquela situação. A seqüência que ocorre após os créditos finais concede-nos uma responsabilidade adicional: o filme continuará acontecendo, inclusive após a sessão!



Nos diálogos, em que os sorrisos e a troca de elogios são predominantes, acontecem algumas sobreposições dramáticas, cabendo à protagonista Jun-Hee a tarefa de "se desculpar por ter gritado". Em verdade, o que ocorreu foi uma atípica mudança de tom, na qual ela reprime um personagem por tachar uma decisão alheia de "desperdício". É quando percebemos que o diretor transfere para os seus filmes conflitos que vivencia em seu cotidiano pessoal, o que é também refletido na cena em que Gil-Soo afirma que um argumento tramático recém-descrito tem tudo a ver com algo que vivenciara recentemente com seu marido. A sucessão de pretextos metalingüísticos é tão freqüente quanto a importância da livreira (esplendidamente interpretada pela veterana Seo Young-Hwa) na concatenação daquelas trocas de experiências. Além de filmar, roteirizar, produzir, fotografar e editar este filme, Hong Sang-Soo é também responsável pela composição dos delicados acordes musicais que irrompem em uma seqüência florida (tão bela que chegamos a sentir o cheiro das flores, numa conexão com o olfato bastante desenvolvido de Gil-Soo). Um trabalho sublime, pura e simplesmente! 



Wesley Pereira de Castro.