quarta-feira, 22 de setembro de 2021

DORA E GABRIEL (2020, de Ugo Giorgetti)


Mais de um crítico destacou, a propósito deste filme, que, mesmo tendo sido realizado antes da pandemia do CoronaVírus, ele sintetiza muito bem as conseqüências psicológicas (portanto, sociais) do confinamento - e isso ocorre sob um viés eminentemente político: dentro de um porta-malas, ao perceber que a desconhecida que foi seqüestrada ao seu lado passa mal, Gabriel (Ary França) tenta consolar-lhe da maneira mais imediatamente motivadora possível, "precisamos resistir". Ela, por sua vez, muito mais desconfiada, indaga o motivo de os bandidos não terem sido apreendidos pela polícia: "talvez eles pareçam gente boa, gente normal". Da maneira como estas sentenças são pronunciadas, elas dizem muito sobre o nosso desamparo nacional, mediante o seqüestro do Brasil pelo bolsonarismo. 


A despeito de esta profecia política ser bastante funcional, são múltiplas as abordagens metonímicas constantes em "Dora e Gabriel": ela, por exemplo (vivida por Natalia Gonsales), insiste em ver o rosto de seu companheiro de aprisionamento, tão logo compreende que fôra seqüestrada. Ao perceber que Gabriel fala com sotaque libanês, exclama que ele é muçulmano e, por extensão, terrorista. Ele, por sua vez, responsabiliza-a indiretamente por ter sido capturada: "o que uma mulher como tu estavas fazendo sozinha à noite?". As primeiras impressões entre ambos são permeadas pelos mesmos preconceitos diuturnos, que, em sociedade, involuntariamente permitimos que sejam retroalimentados... 


O fato de passar-se quase inteiramente num ambiente fechado e de ser conduzido pelos diálogos não confere ao filme uma atmosfera teatral. Pelo contrário, o esmero directivo de Ugo Giorgetti - verdadeiro analista dos interstícios paulistanos, em lógica amplamente humanista - converte o enredo numa potente metáfora cinematográfica, que nos faz pensar nas teorias de Jean-Louis Baudry [1930-2015] sobre os "efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base". Afinal, enquanto hipertrofia metalingüística do papel espectatorial, os personagens encontram-se num estágio requerido pelas projeções fílmicas, onde manifestam-se a suspensão de motricidade e a predominância da função visual, segundo o autor. A diferença é que o homem "enxerga" um pouco mais que a mulher, tendo acesso a resquícios do espaço exterior através de um pequeno buraco no capô do veículo. Mais uma crítica sociológica contundente, portanto. 


Se a iluminação do porta-malas talvez pareça inverossímil, isso é bem justificado pelas convenções narrativas intrínsecas, de modo que a direção fotográfica de Walter Carvalho é mui assertiva na aplicação dos questionamentos hitchockianos: os personagens sabem que são observados por olhos alheios - que também são os nossos, espectadores - e interpretam os sons que ouvem como antigos 'benshis' narravam as tramas dos filmes mudos no Japão. No desfecho, um mistério que confirma a extrema autoralidade do diretor: ainda que possua elementos em comum com quase todos os seus filmes, é em relação ao média-metragem "A Cidade Imaginária" (2014) que esta produção recente mais se assemelha. As (des)esperanças do percurso superam as frustrações da chegada: mais uma vez, tudo a ver com o Brasil atual!


Wesley Pereira de Castro.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

A FAMÍLIA MITCHELL E A REVOLTA DAS MÁQUINAS (2021, de Michael Rianda & Jeff Rowe)


Em sentido geral, o roteiro deste filme é um entulhamento de clichês. Prevemos como as situações belicosas serão resolvidas e identificamo-nos tangencialmente com os dilemas enfrentados pelos personagens: quem nunca teve problemas para ser aceito por (e/ou aceitar) a própria família? A diversão, portanto, é garantida, ainda que o filme seja atravessado por inevitáveis contradições: para que as máquinas sejam derrotadas, é essencial que existam máquinas lutando contra elas. Para que a tecnologia não destrua a harmonia familiar e a pujança dos valores humanos, depende-se justamente das intervenções tecnológicas. "Fomos salvos por causa de nossas falhas", concluem dois robôs adotados pela família titular, depois que passam a apresentar defeitos de programação. A mensagem é clara, não é? 


Para além de sua linguagem rápida, do recurso aos 'memes' como complementos animados e das abundantes referências 'nerds', o filme é muito hábil no manuseio de suas convenções enredísticas - e até mesmo surpreendente ao ousar que a protagonista seja respeitada como lésbica. As intenções fílmicas são as mais intencionadas possíveis, não obstante a aparência maniqueísta de alguns embates. No desfecho, 'boomers' e "geração Z" aprendem a conviver harmonicamente, utilizando as suas diferenças em prol da resolução de conflitos domésticos e até mesmo mundiais. Não por acaso, os andróides incomodam-se com humanos que imitam o seu jeito robótico de andar: "estes estereótipos machucam"!


É quando a sessão termina que a elaboração discursiva do filme funciona melhor: numa animação demarcada pelos chavões - em que a terminologia cara a quem usa Instagram é requisitada -  o apelo à conciliação irrestrita entre personalidades opostas surge enquanto manifesto: nalgum momento de nossas vidas, todos nós somos obrigados a desistir de algo por amor a outrem. Extremismos passionais redundam em intolerância, quando não são cotejados ao bem estar comunal: fazendeiros, professores, fãs de dinossauros e cinéfilos podem relacionar-se em esplêndida harmonia, desde que saibam apoiar-se nos instantes em que a união é requisitada. Comparar-se com os demais é absolutamente não recomendado: aceitemo-nos e amemo-nos como somos!


Tudo isso aparece no filme de maneira consoante ao fluxo irrefreado de informações na contemporaneidade: a tecnologia não é boa nem má, mas depende de quem a controla. Idem quanto às regras de convivência local. O problema é quando ignora-se a lógica capitalista que, em sua hipertrofia sistêmica, a tudo assimila, a tudo cerceia. A adolescente Katie Mitchell, na urgência por ser admitida em sua "tribo" universitária, comporta-se como um alter-ego da "equipe de humanos" que realizou o longa-metragem, o que justifica o tom adesivo desta resenha. As fotos de infância mostradas nos créditos finais confirmam a efetividade desta opção crítica. Idem quanto à simpatia do cachorro Monchi e ao charme maléfico da voz de Olivia Colman como vilã digital. É um filme ideal para ser conferido em família: faz jus ao seu título! 



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

DANÇAS NEGRAS (2020, de João Nascimento & Firmino Pitanga)


O grande problema deste documentário está em seu título: ao prometer algo com um escopo tão avantajado, o filme frustra espectadores que esperam encontrar um tratado histórico-geográfico sobre o assunto. Ao invés disso, deparamo-nos com uma pesquisa sobremaneira situada e com uma orientação ostensivamente acadêmica: a grande maioria dos depoimentos faz menção a situações ocorridas no âmbito da Universidade Federal da Bahia, acerca da consideração das danças afro-brasileiras como merecedoras de relevância científica e artística. Entretanto, mesmo quando assume a sua pertinência, a obra fica refém de uma linguagem audiovisual chavonada, muito aquém do que é abordado: as danças surgem na tela em relances intermitentes, numa montagem que não respeita a duração original das coreografias... 


Dentre os professores convidados a falar sobre o assunto, o próprio co-diretor Firmino Pitanga apresenta-se logo no início, o que realça o aspecto de projeto de extensão universitária, muito mais do que um filme em si. Por mais valiosas que sejam, as reflexões compartilhadas sobre as danças negras caracterizam-se por constatações genéricas, que, ao menos, beneficiam-se da impressão de plurivocalidade. E, neste sentido, a coleção de depoentes é riquíssima: desde o dançarino estadunidense Clyde Morgan ao etnólogo cubano Carlos Moore, passando por mestres capoeiristas e pela artista plástica e folclorista pernambucana Raquel Trindade [1936-2018], numa de suas últimas entrevistas gravadas. Cada um deles acrescenta muito, ao concatenar aquilo que é ensinado com a vivência pessoal, demonstrando que as experiências orgânicas são centrais na lida com algo que pressupõe a onipresença do gingado corporal como essencialmente humano. 


Trazendo à tona tanto questões antropológicas referentes à expressividade contida nas reações percussivas quanto as implicações do racismo colonizatório no que tange à apropriação cultural de ritos religiosos que são desprovidos de sacralidade ao serem reproduzidos em palcos, as falas dos entrevistados são muito pertinentes ao reforçarem a importância das políticas afirmativas e das cotas raciais. No cotejo com a conjuntura política repressiva da atualidade, o documentário é exitoso ao apresentar ganhos identitaristas, sobretudo no contexto baiano que abarca a maioria dos depoentes. Não se sustenta na exposição daquilo que é mais ansiado pelos espectadores, justamente o que está contido no título e nas imagens de divulgação: as seqüências de danças, apresentadas como breves ilustrações das falas dos especialistas. Mas é um documentário que questiona os fundamentos curriculares, os preconceitos contra o candomblé e as tradições culturais ideologizadas do país. Propõe um debate válido, portanto!


Wesley Pereira de Castro.