sexta-feira, 18 de junho de 2021

Netflix: CARNAVAL (2021, de Leandro Neri)


 Nalguns casos, o próprio ato de difamar uma obra que congratula-se em ser ruim (porém numericamente vista) soa contraproducente, no sentido de que impulsiona a audiência à mesma. Em tese, não há problemas: a função das críticas, mesmo negativas, é impulsionar o debate. Mas não seria antiético exortar algo que parece malévolo sob qualquer âmbito? O filme em pauta obriga-nos a esse tipo de questionamento: afinal, é entulhado de clichês, confunde diversidade epidérmica com quotas assimilatórias da estandardização e revela-se mentiroso até mesmo em sua proposta titular. Afinal, a promessa carnavalesca é um mero pretexto para a exibição de cenários fechados e cosmopolitas que desperdiçam até mesmo o esforço de atores não-baianos na imitação do sotaque característico desse Estado. Lidemos a com a necessidade de posicionamento desapreciativo, portanto.



Que "Carnaval" seja um filme que sintetiza o que de pior associamos ao padrão netflíxico de homogeneização anistórica (e "desgeográfica"), não é surpresa para ninguém. Em nível quase satírico, o enredo entrega exatamente aquilo que espera-se dele: uma protagonista fútil que, em dado momento, passará por uma redenção programada e, como tal, perceberá que "o sentido da vida é ter amigas". Por mais truísta que seja esta mensagem, não chega a ser o maior problema. Muito menos o modo oportunista como o filme lida com a temática do "cancelamento virtual" ou com a necessidade de assunção homossexual. Entretanto, a presunção de que as diferenças de personalidade feminina são obliteradas pela adesão modista às libações de classe média soa perniciosa, imoral. Algo que é detectado como padrão nos filmes brasileiros produzidos pela plataforma: ser "influenciador digital" é exigência básica no currículo dos protagonistas! 



Depois de uma inócua seqüência de créditos de abertura - que até parece uma publicidade televisiva - somos apresentados a Nina (Giovana Cordeiro), moça cujo maior sonho é atingir um milhão de seguidores no Instagram. Esse é o emprego dela. Depois que é traída pelo namorado e convertida na "côrna do Crossfit", ela convida suas três melhores amigas para viajarem, sob o seu financiamento generoso, para o carnaval soteropolitano: uma delas é uma veterinária negra e mística, que sofre de agorafobia seletiva; outra é uma loira alvoroçada, que não hesita em ter contatos sexuais com todos os homens que conhece; e a terceira é uma 'nerd' com cabelo pintado de roxo, que testa seus pretendentes românticos com um questionário sobre cultura 'pop'. Micael Borges interpreta um cantor cujo maior sucesso tem como refrão "intimidade com o chão/ intimidade com a rabêta". Todo mundo sabe como acaba: adentra a sessão quem quer! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Netflix: AWAKE (2021, de Mark Raso)


Sinopticamente, este filme possui chamarizes similares aos de "Fim dos Tempos" (2008, de M. Night Shyamalan), no que tange ao potencial de observação acerca de como os tênues filamentos sociais rompem após a eclosão de um evento repentino, que faz com que os aparelhos eletrônicos não mais funcionem. Entretanto, há dois elementos diferenciais neste roteiro: um deles diz respeito ao mote titular, visto que as pessoas não conseguem dormir, o que acelera a mortandade inerente a qualquer contexto para-apocalíptico; o outro coaduna-se a um automático chavão motivacional, que é o amor abnegado de uma mãe por seus filhos. Por que automático? Porque a relação familiar em pauta era bastante disfuncional antes do acontecimento desorganizador, de modo que os exageros actanciais de Gina Rodriguez soam forçados no modo pouco sutil como o filme despeja as suas crenças ideológicas... 



De antemão, o maior problema do roteiro está no modo como ele naturaliza as intervenções bélicas dos Estados Unidos da América em outros territórios: quase todos os personagens mencionam as atividades estrangeiras de alguém que serviu ao Exército, e isso só é questionado após a instauração da anomia, quando o próprio treinamento para a guerra engendra os suicídios e homicídios paranóicos que abundam no filme. Para isso, contribui tanto o tecnicismo dos ensinamentos sobrevivenciais da protagonista Jill para a sua filha Matilda (Adriana Greenblatt), que recusa-se a aprender a atirar dentro de uma biblioteca, quanto a sugestão proferida por Dodge (Shamier Anderson), que alega que todos os livros deveriam ser queimados, pois as informações neles contidas possuem o caráter de doutrinamento geracional. Parecem questões secundárias, mas tudo isso evidencia a indecisão moral do enredo, que defende a manutenção da família como instituição a ser defendida a todo custo, mesmo que isso incorra na desobediência constitucional. 



Ao escolher precipitadamente o seu ponto de inflexão condutiva, o filme desperdiça tanto o impacto dramático e científico das situações apresentadas quanto o talento de Jennifer Jason Leigh, subaproveitada como a dra. Murphy. Tecnicamente, o filme é esforçado: a direção tenta reproduzir os planos-seqüências frenéticos de "Filhos da Esperança" (2006, de Alfonso Cuarón) - conforme foi notado por vários críticos - e os efeitos audiovisuais indutores de tensão são deveras efetivos. Porém, a construção dos personagens é insatisfatória, de modo que não conseguimos nutrir uma simpatia específica pelos protagonistas, o que faz com que dispersemos a atenção na metade final, quando o filme sucumbe a desagradáveis clichês subgenéricos. Infelizmente, é uma produção sem alma ou pretensões autorais, que chafurda em sua própria celeridade: passa tão rápido porque é parecido demais com outras obras, mas sem o elã cinematográfico que justifica as supracitadas referências! 



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Netflix: FAZ DE CONTA QUE NY É UMA CIDADE (2021, de Martin Scorsese)

Apesar de ser um produto audiovisual coeso e coerente e de possuir as marcas registradas de um dos mais importantes cineastas vivos, este filme não foi dividido em episódios - e lançado como minissérie - por acaso: há algo de sobrecarregado e repetitivo no modo como a escritora Fran Lebowitz reage ao mundo ao seu redor. Aliás, não em relação ao mundo, mas precisamente em relação à cidade de Nova York, visto que, dentre os inúmeros problemas discursivos deste documentário, destaca-se o modo jocoso como a entrevistada refere-se às outras pessoas. Servindo-se das estratégias humorísticas do "politicamente incorreto", a escritora age de maneira xenofóbica, classista e ostensivamente misantrópica. Seu amigo, o próprio diretor, gargalha de maneira exagerada, ao longo de toda a produção, o que aumenta o inconveniente espectatorial: num primeiro contato, Fran Lebowitz demonstra-se intimidadora e até mesmo desagradável, de modo que as pausas entre um e outro episódio permitem a reflexão acerca do que é despejado de maneira tão célere pelo cineasta, que, nesta empreitada, não conta com a colaboração de sua parceira habitual Thelma Schoonmaker como montadora... 



Depois de uma apresentação ambígua, em que a escritora assume que desgosta da maioria das pessoas e diverte-se com isso, o segundo episódio permite que conheçamos um aspecto muito elogiável de sua persona pública: a sua extrema erudição. Ao tergiversar sobre Música, Literatura e Cinema, a entrevistada faz jus à responsabilidade de ser biografada ainda em vida. E, ao desfecho, prova que é sumamente fascinante. Porém, o filme funciona melhor quando expõe as suas benesses críticas, ao invés de suas piadas com duplo sentido, que brincam até mesmo com a especulação financeira envolvendo as obras de Andy Warhol (com quem a escritora assume nunca ter se dado bem), após a sua morte. Fica demonstrado, portanto, que Fran Lebowitz leva muito a sério a segunda metade de sua citação mais famosa: "pense antes de falar. Leia antes de pensar"!



O derradeiro capítulo desta minissérie, que expõe a rica biblioteca da escritora, é valioso, bem como o episódio sobre o seu desprezo pelo dinheiro (apesar de "gostar muito de ter coisas") e aquele sobre os apanágios geracionais. Por vangloriar-se de não possuir telefone celular ou computador, a biografada chama a atenção pela aplicação pragmática de suas idiossincrasias literárias, também condizentes com a maneira lúcida como ela posiciona-se em relação ao movimento "#MeToo", declarando sempre acreditar nas mulheres que denunciam assédios, mesmo sabendo que algumas delas eventualmente mentem. A rememoração das experiências da escritora como faxineira ou taxista, numa fase anterior de sua vida, permite que observações contundentes sobre as mazelas advindas do machismo estrutural sejam compartilhadas, mas isso não impede que ela demonstre-se um tanto preconceituosa quanto a alguns vícios da classe proletária. Fran Lebowitz não apregoa a perfeição. Muitíssimo pelo contrário, aliás: gaba-se de ter sido laureada por seus dotes espirituosos desde a infância, mas não insiste numa superioridade irrevogável em relação a outrem. É uma pessoa claramente paradoxal, como também é o filme que protagoniza. Merece ser melhor conhecida, portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 
 

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 : ABJETAS 288 (2021, de Júlia da Costa & Renata Mourão).


 

Para nós, amantes sergipanos do Audiovisual, a estréia do curta-metragem ABJETAS 288 (2021, de Júlia da Costa & Renata Mourão) na Mostra Tiradentes 2021 era um evento mais que especial. Afinal, os bons rumores acerca desse filme eram ouvidos faz tempo. E muitas das pessoas envolvidas na produção são competentes e mui generosas. Logo, acho ótimo que o filme seja tão valorizado desde o seu pontapé inicial de publicização: passei o dia inteiro ansioso. Acabei de vê-lo. Gostei. Chegou a hora de esboçar algumas reações...


Num primeiro momento, chama a atenção a esperteza das diretoras ao investir numa dublagem que sobrepõe e distorce as vozes dos personagens, que utilizam termos regionais em meio aos seus brados contra o cerceamento comportamental. A tônica é assumidamente antitética: é uma ficção científica que admite elementos brejeiros, mixados numa perene trilha musical de cariz eletrônico. Por vezes, parece um videoclipe influenciado por motes do Chris Marker ou do Peter Greenaway. A montagem é frenética e a percussividade somática justifica as idas e vindas de um enredo que finge teleologia, mas resvala na ausência de destino. Busca-se um lugar, mas o percurso sobrepõe-se. Como de praxe, as mulheres precisam resistir a um corpo policial violento e mui preconceituoso. Os encontros são fugidios e desconfiados. A lombra é essencial!



Evidentemente, problemas também são identificáveis: algumas interpretações soam desengonçadas (com exceção de um rapaz bruxuleante, quase todos os coadjuvantes entram nessa categoria), os rompantes abruptos da montagem nem sempre conseguem obliterar as lacunas do roteiro e o título poderia ser ainda mais explicitado, a fim de validar a importância distópica desta obra na conjuntura atual. A bonita fotografia em preto e branco, a alucinada direção de arte e o figurino inventivo compensam aquilo que parece vago ao longo da projeção. Como sói acontecer em reflexões sobre o futuro, o presente importa bastante. O que as diretoras mostram acontece hoje!



Aparentemente, as atrizes principais não dispuseram de muito tempo para a composição de suas personagens, mas entregam-se vigorosamente às mesmas. Há uma cena de mijada num ponto de ônibus que merece ser exaltada por sua imponência resistente. Para além de todas as imperfeições, o curta-metragem corresponde bem às nossas expectativas: empolga-nos ao provar que é possível fazer o que se quer, a despeito das tonitruantes forças em contrário. Nesse embate, o afeto e o risco vencem!



Wesley PC> 


Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 - seção Aurora - dia 07: EU, EMPRESA (2021, de Leon Sampaio & Marcus Curvelo).


 

Estreou, finalmente, o longa-metragem que eu mais aguardava nesse festival... E superou as minhas expectativas: é ótimo!



Não escondo de ninguém a minha paixão e o meu fanatismo pelo Marcus Curvelo. Apesar de a caricatura intencional nem sempre sustentar-se muito bem em seus curtas-metragens, ele é sempre muito divertido na concepção tragicômica dos dilemas intelectuais de quem é suprimido pela lógica empreendedorista do capitalismo hodierno. Mas atinge o paroxismo da genialidade autocrítica e chistosa aqui: o momento em que ele canta "Mercy", do Shawn Mendes, numa praia, é, desde já, antológico. Uma das melhores metonímias da crise estrutural desse ano que ainda está no início...



O tom humorístico do filme é bem mais escrachado que as aparições anteriores do alter-ego Joder, que, aqui, convive lado a lado com o próprio Marcus (enquanto personagem). Aquilo que é ensaiado em A DESTRUIÇÃO DO PLANETA LIVE (2021) alcança um novo patamar. Não há mais o que esconder: o desespero encenado - e, em mais de um sentido, real - do protagonista tem tudo a ver com a persona cômica de Albert Brooks, com o qual ele guarda alguma semelhança física. Quem viu A VIDA COMO ELA É (1979), deleitar-se-á com o refinamento sardônico desta obra. Gargalhei altissonantemente, muitas vezes, por identificação desenfreada. "Se me oferecessem uma quantia considerável para comer merda, eu o faria", gaba-se o personagem. Eu, não! Kkkk



O modo como a aflição existencial da recusa de alguns serviços, noutras aparições de Joder, descamba para a submissão aos atropelos da uberização sub-empregatícia são mais que sintomáticos. E a progressiva importância concedida ao fascínio enganoso da fama cibermidiática erige o percurso que desemboca num desfecho sublime: não sabia se ria ou chorava, de tão inspirado que achei. Ma-ra-vi-lho-so!



Dentre os brindes acessórios, amei a participação do próprio sobrinho do diretor, Rodrigo Curvelo, numa seqüência esplendidamente documental, achei mui oportuna a abertura com "Tudo é Feito pra Gente Lacrar", do Negro Léo, e aplaudi de pé a interpretação do grande Aristides de Sousa, descoberta insigne de Affonso Uchôa. Filmaço. Já estou na torcida: vai, Joder, buscar o que é teu. Amo-te!



PS: alguém concederia-me a honra de apresentar-me a este astro supremo do novíssimo cinema brasileiro? (risos)


Wesley PC>


Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 - seção Aurora - dia 06: O CERCO (2020, de Aurélio Aragão, Rafael Spínola & Gustavo Bragança).


 

Enquanto proposta, este filme é incrível: um mergulho em primeira pessoa numa atmosfera de horror classista, que apela para a memória histórica nacional. A atriz Liliane Rovaris é mui expressiva, e demonstra estar plenamente sintonizada em relação ao projeto. Nos créditos finais, uma informação relevante: "colaboração no roteiro: o elenco". A sinopse acostada é excelente, em sua explicitação da lógica fantasmática. Por que o filme soçobra, então? Por causa do sobejo de divergências espectatoriais?



Assumirei a minha culpa: como, aqui no Nordeste, a brincadeira do Marco Polo não é comum, achei o filme presunçoso desde a abertura. Adorei a dinâmica incestuosa das brincadeiras adolescentes dos irmãos Lopes, mas torci o nariz quando uma voz em 'off' disse que teve "um pesadelo... surreal"!



A insistência da atriz-personagem (ou personagem-atriz?) em utilizar frases chavonadas como "o teatro é maior que a vida" incomodou-me também. Ela surge num palco, recitando o monólogo de um clássico bergmaniano oitentista. Mais à frente, a trilha musical incidental de outro filme do cineasta sueco é reconhecida. Os diretores não escondem as suas referências. Nem tampouco as suas condições privilegiadas de observadores culturais. A luta contra a ditadura militar é emulada de maneira sincera, mas também atravessada por condições sociais assaz determinadas, não condizentes com a maioria da população brasileira. É um filme de nicho, portanto. Isso procede?



Se, por um lado, a leitura das cartas e depoimentos sobre a descrição de torturas e desaparecimentos políticos emociona, por outro, a protagonista queda cada vez mais insuportável, ainda que dotada de uma firmeza resistente anacrônica. Pouco a pouco, ela percebe-se vigiada e perseguida. Recebe vídeos com gravações no interior de sua própria residência, tal qual já vimos em filmes célebres de Michael Haneke e David Lynch. O desfecho será climático? Muito pelo contrário, e disso gostei bastante!



Por que este filme não funcionou comigo se, quando isolo seus componentes, parece tudo muito interessante? Justamente porque a mistura pareceu troncha, desenxabida, elitizada (num sentido ruim do termo). Mas a curiosidade pelos projetos vindouros dos responsáveis por esta obra sumamente colaborativa segue atiçada. Hmmmmmm!



Wesley PC> 


Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 - seção Aurora - dia 05: A MESMA PARTE DE UM HOMEM (2021, de Ana Johann).


 

Pode parecer um pantim, mas, de todos os filmes anunciados à seleção competitiva deste ano, esse era o que eu mais tinha receio em conferir. Inicialmente, por causa da duração (ostensivamente superior aos títulos da mostra) e, posteriormente, por causa da trama genérica. Poucos amigos dispuseram-se a conferi-lo, inclusive, e os que fizeram tacharam o filme de fraco. Procrastinar esta sessão converteu-se numa obviedade...



Dispondo de uma brecha em meu cotidiano, assisti ao filme com certo atraso. E até que gostei! No início, as impressões confirmaram o aval negativo: parecia que o enredo assumia uma postura condenatória em relação à cumplicidade amedrontada de uma mulher, que passava da condição de vítima de um casamento abusivo em legitimadora da violência que sofre (e estende à sua filha). Até que algo acontece, e modifica sutilmente a composição da protagonista...



Em verdade, a impressão de trama genérica assume-se: já vimos algo parecido em pelo menos dois filmes franceses (um deles, baseado numa estória balzaquiana) e numa regravação hollywoodiana. Mas esta versão paranaense contém os seus agrados específicos. Ainda que permeados pela tendência à internacionalidade evasiva, metonimizada nas lembranças de um intercâmbio na Alemanha, por parte de um personagem semi-desmemoriado, e na canção em inglês dos créditos finais...



Não achei o filme fraco. É passivo-agressivo, mas o faz de maneira intencional. O ritmo é sobremaneira lento, mas goza de muita verossimilhança em relação à região erma que foi filmado. A garota Laís Cristina tem um bom desempenho, mas fica sufocada pelas interpretações exageradas de Irandhir Santos e Clarissa Kiste. O melhor ator do filme, entretanto, atende pelo nome de Luigi, o intérprete do cachorro Israel. Se houver uma láurea canina nesse festival, já temos um merecido vencedor!



Ao término da sessão, fica-se a impressão de algo perturbado, proveniente do desenvolvimento do enredo, que não explica tudo, deixa algumas pontas propositalmente soltas. Outras estão apertadas em excesso, não por acaso do lado feminino. Mas o título do filme clarifica aquilo que está em evidência. Gostei. Mexe com nossos preconceitos!



Wesley PC> 

Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 - seção Aurora - dia 04: KEVIN (2021, de Joana Oliveira).


 

Temos um favorito na edição desta ano? Talvez esteja cedo para celebrar, mas acho difícil outro título em competição superar a sutileza deste filme tão bonito. A sinopse prometia "a história de uma amizade entre mulheres". Deparamo-nos, além disso, com uma poderosa análise da influência das contradições (inter)nacionais no cotidiano delas.



A Kevin do título é a amiga ugandense da diretora, com quem estudou, há quase vinte anos, na Alemanha. Após enfrentar alguns dissabores no Brasil (o pai está em tratamento quimioterápico, por exemplo), Joana resolve viajar ao país-natal de sua amiga, conforme prometeu fazê-lo há algum tempo. Não tem filhos, o que não a impede de locomover-se para o exterior. Kevin, por sua vez, é mãe de três filhos pequenos. Conversa com eles em alemão, interage com a diretora em inglês e realiza as atividades comerciais no idioma regional. É uma mulher que sintetiza múltiplas capacidades de adaptação social - entre elas, obviamente, a lida com o racismo, conforme abordará num diálogo perto do desfecho da obra.



Desde o começo, torna-se irrelevante imaginar o que é efetivamente documental ou ficcional no filme. As transições são tão sutis, o que a diretora compartilha conosco é tão incrível, que queremos ser amigos daquelas mulheres. E, por uma hora e vinte minutos, conseguimos...



Dentre as variegadas qualidades desta obra, enfatizo o modo como o diálogo afetivo é naturalizado, mesmo ao abordar temas-tabus: fala-se sobre um doloroso aborto espontâneo enquanto brinca-se com um cachorro; ficamos na expectativa acerca de quem seria o pai das crianças de Kevin e, quando a revelação surge, isso ocorre de maneira trivial. A protagonização é concedida ao que as amigas compartilham entre si: o assunto principal é o encontro, que conduz-nos ao cotejo de apanágios nacionais. Afinal, Joana proveio de um Brasil sob o jugo do bolsonarismo, mas não precisa invocar esta seita maligna para externar o que a aflige politicamente. Idem quanto a Kevin, que não carece retroalimentar preconceitos existentes sobre o neo-colonialismo levado a cabo pelas fingidas ONG's na África. Ela mostra, nós percebemos. Basta!



Admito que, nos minutos finais, as conversas tendem a ficar solenes, o que interfere na desenvoltura rítmica. Percebendo-se isso, há uma seqüência de enorme simbologia, e o filme acaba. A amizade continua. Os problemas e alegrias da vida também. Maravilhoso!


Wesley PC> 


Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 - seção Aurora - dia 03: ROSA TIRANA (2020, de Rogério Sagui).


 

Pouco antes da sessão, eu estava com dor de cabeça. E não sei em que sentido esta cefaléia interferiu em minha apreciação do filme. Afinal, ele é curtinho, possui uma cadência infantil em sua narrativa fabular, a fotografia é muito bonita... Por que eu não gostei, então?


Pouco a pouco, percebo que gostar ou não gostar de uma obra - sobretudo num contato inicial - é o de menos. Enxergá-la com afeto, prestar atenção aos seus recados sub-reptícios, defender o seu direito de existência no delicado panorama exibitório do cinema brasileiro: eis o que é importante! Mas, mesmo isso, torna-se difícil aqui. Achei o filme deveras incongruente...


Na abertura, algo chamou-me a atenção: a seqüência de créditos iniciais dura exatos três minutos, e conta com uma música terna (composta em parceria com o próprio diretor), que será cantada por Elba Ramalho a posteriori. Este anúncio evidencia a perspectiva religiosa do filme, filmado no município interiorano de Poções, na Bahia. O personagem de José Dumont lamenta que "faz cinco janeiros que não chove". Ainda assim, floresce... 


A Rosa do título é uma garotinha interpretada por Kiarah Rocha, muito simpática, que resolve sair sozinha de casa, disposta a encontrar Nossa Senhora Imaculada. Apesar de ela rezar todas as noites, ao lado da mãe, a impressão é a de que a Santa não ouvia as suas preces. Por isso, ela tenciona entregar pessoalmente uma flor vermelha que brotou no sertão. E, no caminho, deparar-se-á com figuras típicas do imaginário local: retirantes que arrastam-se em meio ao barro; um coronel que não esconde seus desejos pedofílicos, ao insistir que "bonecas também comem"; um grupo de artistas mambembes, que anima a garotinha numa festa súbita, com algodão doce e tudo. Ôba!


Tinha tudo para ser um filme encantador, não é? Bem feitinho como o diacho! Mas o padrão é de seriado da TV Globo: mui qualitativo, em termos técnicos, porém desprovido da essência sertaneja que celebra. O que é curioso, já que a equipe pertence àquele ambiente, compreende as necessidades daqueles moradores. Por que não funciona? Talvez por ser excessivamente 'for export'!


Espero não estar difamando injustamente um filme que pode gozar de boa comunicação com o público. Para mim, pareceu muito cansativo. No encerramento, a seqüência de créditos da abertura é repetida, do mesmíssimo jeito. A flor foi entregue, ao menos: alguém duvidou que a chuva cairia?


Wesley PC>


Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 - seção Aurora - dia 02: ORÁCULO (2020, de Melissa Dullius & Gustavo Jahn).

Quem, assim como eu, adentrar a sessão deste filme aguardando um prolongamento do filme anterior da dupla de diretores, MUITO ROMÂNTICO (2016), talvez decepcione-se. Ou aceite o desafio de mergulhar num percurso distinto, quiçá mais telúrico, naturalista. Por motivos óbvios, pensei no cinema de James Benning: há o céu ofertado à contemplação, os planos-seqüências contados a dedo, os personagens isolados e à deriva...


Sendo um trabalho de continuidade autoral, em certo sentido, esperava-se um destaque concedido à Música. E ela surge de maneira fascinante, ainda que sob o jugo de certa ambigüidade: uma mocinha rica (e branca) canta uma espécie de 'rap' sobre a necessidade de deixar alguém ir... "A vida é muito curta para chorar pela ex/ Eu falava para mim mesmo, enquanto chorava outra vez", canta e repete a mocinha!


De acordo com os créditos finais, os referidos planos foram filmados em locais e anos distintos: um em Barcelona, outro em Santa Catarina, etc.. Fica-se a tentação imediatista de reclamar de algum efeito de incoesão, mas uma variação ainda mais emocional do "efeito Kuleshov" concatena as situações e pessoas apartadas. Quem é quem? Qual a relação de um com o outro? Por que eles estão ali? Eis o filme agindo...


Como esta produção era o grande chamariz da edição deste ano da Mostra, as expectativas depositadas sobre ela eram altíssimas. Como tal, decorre a impressão de insatisfação mediante a subversão das mesmas. Mas talvez isso seja um aspecto genial da obra: não entrega o que esperávamos, mas algo completamente novo, numa tradição distinta. É um filme curto e confortável. Balsâmico até. A tristeza emulada num dos cantos passa junto com as nuvens... A beleza fica, bem como a vontade dos encontros.


Wesley PC> 



Transcrições facebookianas sobre a Mostra Tiradentes 2021 - seção Aurora - dia 01: AÇUCENA (2021, de Isaac Donato).


 Uma das críticas mais recorrentes às religiões, por parte de argumentadores politizados, diz respeito ao modo como inculca-se a idéia do "é assim porque Deus quer" ou "se não aconteceu, é porque não tinha de ser". Por detrás desta aparência de determinismo, compreendemos que há uma noção de respeito, uma crença. Como religioso, partilho deste tipo de concepção...


Pois bem: ansioso que estava com a virtualização da Mostra Tiradentes neste ano, tencionava fazer uma cobertura "profissional" via 'blog', mas meu anseio caiu por terra: meu computador simplesmente não carrega. Não era para ser? Sigamos com as minhas considerações facebookianas sobre os filmes vistos, então...


Ontem mesmo, tão logo acabou a sessão deste documentário baiano, pensei em escrever algo sobre ele, mas estava incomodado com uma dualidade intensificada no desenvolvimento de seu enredo: o que vemos é a compreensão comunitária de uma tradição ou a submissão a um devaneio fetichista, altamente capitalizável? Tanto um aspecto quanto o outro. Não excluem-se. Mas outro problema instaurou-se: a formatação sumamente narrativa da montagem do filme.


Faz tempo que borrar as pretensas fronteiras entre ficção e documentário deixou de ser algo polêmico. Entretanto, os vai-e-véns da edição incomodaram-me particularmente. Pois, além de a câmera não ser ostensiva (em termos de reações diegéticas à presença da mesma), os blocos dialogísticos são entrelaçados em diferentes teias temporais: a conversa enquanto se pinta um portão, a compra de uma boneca numa loja de brinquedos e a audição de recados via WhatsApp, por exemplo. Há uma estória sendo contada.


Ao mesmo tempo, quando essa estória atinge o seu pico (a celebração de aniversário da personagem-título, uma entidade perenemente infantil), tudo ocorre de maneira anticlimática, pois há a invasão de elementos destoantes de tudo o que testemunhamos até então. A cadência pacata é soterrada pelos clichês comemorativos da cidade grande. Temos certeza de quem paga pela cara coleção de bonecas, a partir deste momento...


A despeito de qualquer aparente reprimenda, o filme é muito gracioso em sua exposição religiosa deveras acessível. Seu caráter é inegavelmente popular, o que deve-se bastante à pesquisa da co-roteirista Marília Cunha. Mas meus preconceitos aquisitivos continuaram interferindo na apreciação qualitativa do filme. O debate é mais que necessário, portanto!


Wesley PC>

Urso de Ouro 2021: MÁ SORTE NO SEXO OU PORNÔ ACIDENTAL (2021, de Radu Jude).

 


O título chistoso deste filme deixa em evidência a acidez controversa do discurso de revolta contido na maneira como o diretor posiciona-se frente aos desentendimentos históricos: como seu país sofreu o que de pior pode ser associado a uma ditadura comunista, Radu Jude é desconfiado e inclemente tanto em relação aos arroubos vilanazes da extrema-direita quanto aos equívocos e precipitações da esquerda política. Ao invés de impor suas diretrizes opinativas, ele expõe um cabedal de impressões e citações literárias, chegando ao cúmulo de oferecer três desfechos distintos, de modo que cada espectador possa escolher aquele que melhor adeque-se às suas crenças e desejos pessoais...


 A abertura explicitamente sexual do filme expulsa os moralistas e conservadores da sessão. Porém, ao invés de advogar em defesa da lubricidade, o roteiro prefere questionar os parâmetros delimitadores do que seja "pornografia". E, para tal, dedica um longo e maravilhoso segundo ato a um dicionário iconoclasta de termos naturalizados pelo machismo estrutural. Dentre os verbetes, a consideração de que "as crianças são prisioneiras políticas de seus pais" e a ressignificação de termos que designam orgulho nacional, mas são ostensivas declarações de xenofobia e racismo. Quando traz à tona símbolos e imagens eróticas, fica evidente o quão chauvinista é o cotidiano de qualquer falante social: se a vagina comumente surge em frases que designam estupidez, o pênis é um sinal declarado de galhardia. Um verbete providencial é dedicado á palavra 'boquete': "palavra mais pesquisada em dicionários virtuais. A segunda é empatia". Genial! 


Sem resvalar na misantropia ferrenha de um Lars von Trier ou Michael Haneke, Radu Jude recorre a proposições clássicas do anarquismo: questiona a tudo e a todos, invariavelmente. No primeiro ato do filme, "Via de Mão Única", a professora Emilia (Katia Pascariu) percorre as ruas de Bucareste, notando o quão agressivas estão as pessoas ao seu redor. No supermercado, uma mulher é ofendida por quem espera na fila, visto que ela precisa excluir alguns produtos de sua cesta de compras, por não ter dinheiro suficiente. "Eu tenho culpa de ser pobre?", pergunta ela, num exemplo de frágil argumentação que descambará para a agressão física no terceiro ato do filme - apelidado de 'sitcom' -, quando Emilia é julgada pelos pais de seus alunos, depois que um vídeo em que ela faz sexo com seu esposo vaza na Internet. Os xingamentos são abundantes, obviamente. O diretor obriga-nos a testemunhar este arremedo contemporâneo de execução fascista depois que equipara o Cinema a um escudo que neutraliza o impacto petrificador dos horrores da realidade, numa metáfora cínica da lenda de Perseu e Medusa. É impossível permanecer emocional e/ou racionalmente incólume diante desta obra. Um petardo, um soco pós-freudiano, uma metralhadora giratória de versículos, filmado em plena pandemia da COVID-19, diegeticamente questionada pelos negacionistas militares, ainda numerosos na Romênia. Tudo a ver com o Brasil atual, portanto! 



Wesley Pereira de Castro.