sábado, 3 de fevereiro de 2024

POBRES CRIATURAS (2023, de Yorgos Lanthimos)

Em dado momento do filme - mais precisamente no capítulo sobre um cruzeiro marítimo - a protagonista Bella Baxter (intensamente interpretada por Emma Stone) conhece um gigolô chamado Harry (Jerrod Carmichael), que, além de demonstrar a ela que há muita miséria no mundo, tenta demovê-la de ter esperança na humanidade, "seja advinda da religião, do socialismo ou do capitalismo". E, enquanto ele discursa, podemos enxergar nele uma espécie de alter-ego diretor, conhecido por sua misantropia. À primeira vista, esta é uma breve participação, uma fala solta. Mas a onipresença egóica do realizador é manifesta ao longo de toda a projeção, através de uma perspectiva que simula o fechamento da íris ou uma bisbilhotada pelo buraco de um telescópio: há um personagem cujo apelido é God, mas, no universo lanthimosiano, o único deus é ele próprio! 


Isso não quer dizer que o direcionamento feminista do roteiro seja inócuo: muito pelo contrário, a jornada de amadurecimento de Bella, a partir de suas múltiplas descobertas sexuais, é sobremaneira aplaudível, não obstante terminar num previsível mote vingativo, que faz referência direta ao desfecho de "Monstros" (1932, de Tod Browning). É uma das diversas referências literárias e cinematográficas detectáveis nesta luxuosa produção, que conta com uma fotografia acachapante e ostensivamente artificial de Robbie Ryan , que leva ao extremo a utilização de lentes olhos-de-peixe, mais uma vez corroborando o olhar teológico do realizador, testada anteriormente na colaboração em "A Favorita" (2018). A trilha musical de Jerskin Fendrix é igualmente esplêndida! 


As inspiradas seqüências no prostíbulo parisiense possuem elementos conteudísticos que remetem ao clássico "A Bela da Tarde" (1967, de Luis Buñuel) e ângulos e enquadramentos mui assemelhados a "Laranja Mecânica" (1971, de Stanley Kubrick), o que não deve ser casual, já que todas estas obras possuem como tema comum a adesão defensiva do livre-arbítrio. Neste sentido, é muito complexo, no mais positivo dos sentidos, o desenvolvimento tramático das relações que Bella estabelece com o anatomista que lhe serve de figura paterna, Godwin (vivido por um excelente Willem Defoe), e a companheira de meretrício que torna-se a sua amante e iniciadora explícita no socialismo, Toinette (Suzy Bemba). É magnífica a cena em que as duas, fugindo da perseguição ciumenta do insuportável Duncan (Mark Ruffalo), gritam: "nós somos nossos próprios meios de produção"!


Esta última frase, mui oportuna, faz com que retornemos para um conflito interno no enredo fabular: ainda que Bella Baxter chame a atenção por seu empirismo erótico e que a atriz Emma Stone mereça todos os aplausos e prêmios por sua extraordinária entrega actancial, é a obsessão do realizador pela temática supostamente protetoral do confinamento que se instaura como dominante. O protagonismo é feminino - e repetimos: também feminista -, mas o que efetivamente interessa ao diretor é a confirmação de suas teses sobre a degradação dos caracteres humanos em face da repressão alheia (alegadamente social) sobre a sobrecarga desejosa (biológica e/ou natural) de alguém, o que já pode ser detectado nos filmes que ele rodou antes de "Dente Canino"(2009), que garantiu-lhe projeção internacional. Yorgos Lanthimos é um esteta que desconfia das intenções dos amantes, dos cuidados familiares e da beleza enquanto válvula de escape sensório. Como tal, precisa aderir a certa dose de sadismo (insere a questão ameaçadora da infibulação!), felizmente moderado neste trabalho mais recente, permeado por situações e diálogos cômicos, pelas intervenções de uma figura terna (o assistente Max McCandles, vivido por Ramy Youssef) e por algumas manifestações reflexivas do perdão. Quão luminosas são as aparições de Hanna Schygulla, admitindo que também é adepta da masturbação. Viva! 


Wesley Pereira de Castro. 

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