sexta-feira, 27 de abril de 2012

XINGU (Brasil, 2011). Direção: Cao Hamburger.


Numa cena-chave do filme, o personagem de João Miguel constata que a dizimação de parte considerável de uma aldeia indígena por conta da gripe foi culpa da recente colonização por homens brancos e, no esforço por curar as pessoas doentes, sintetiza: “a gente traz o veneno e também o antídoto”. Tal frase serve para qualificar os intentos da Globo Filmes ao resolver co-produzir e lançar em longa-metragem amplamente divulgado a saga dos irmãos Villas-Bôas, sertanistas que ficaram mundialmente conhecidos por causa de sua devoção à causa íncola. Por mais justificativamente apologética que seja a condução tramática do filme, que transforma pelo menos dois dos irmãos em heróis abnegados em seu altruísmo racial, é óbvio que as omissões político-históricas do enredo deturpam sobremaneira posicionamentos entreguistas por parte da própria Rede Globo de Televisão no que tange aos empecilhos governamentais sofridos pelos irmãos em seus projetos de assistência indígena. Se, por um lado, o filme é omisso e precipitado em seu viés ideológico pretensamente remediador, por outro lado, ele é bem-vindo em sua aparente emulação ecológica, o que, mais uma vez, demonstra ser bastante pertinente o julgamento inicial do personagem Cláudio Villas-Bôas.

Dirigido com seriedade pelo talentoso Cao Hamburger, a maior parte dos méritos de “Xingu” está em sua irrepreensível equipe técnica: a excelente trilha sonora de Beto Linhares, por exemplo, ao reelaborar ritmos autóctones destaca-se por seu entrosamento com os dilemas entre preservação corretiva e necessidade de isolamento protecionista que o filme traz à tona, podendo-se dizer o mesmo da magistral direção de fotografia de Adriano Goldman e da vasta figuração silvícola. Foi de vital importância para o sucesso pontual do filme a coerência do elenco, ameaçada somente quando Caio Blat está em cena: não que ele esteja ruim, mas a composição de seu personagem é precária quando comparada aos desempenhos firmes de João Miguel e, principalmente, Felipe Camargo.

 O elenco indígena é ainda mais competente, considerando o sub-aproveitamento deste segmento populacional brasileiro em produções que visam a reconstituir determinadas épocas, de maneira que os nomes de Maiarim Kaiabi, Awakari Tumã Kaiabi, Adana Kambeba e Taiapé Waurá merecem ser novamente citados em outros filmes, tamanha a organicidade de suas interpretações, bastante complexas tamanha a quantidade de diferentes tribos mencionadas no roteiro.

Para além das hipertrofias aventureiras do filme e de suas inevitáveis omissões históricas – o que se explica pela delicada opção de se resumir mais de três décadas em apenas 102 minutos de projeção – o roteiro de Helena Soarez, Anna Muylaert e do próprio Cao Hamburger chama positivamente a atenção por causa de lampejos irônicos sutilmente entornados na configuração pretensamente genérica da trama, como, por exemplo, na intrigante opção por mostrar os índios comemorando o direito de ficarem confinados numa reserva florestal da terra em que sempre viveram após ouvirem uma notícia veiculada pelo boletim jornalístico “A Voz do Brasil”, cujo tema reconhecível é justamente a introdução da ópera “O Guarani”, escrita por Carlos Gomes. Segundos antes de nós, espectadores, ouvirmos esse tema musical e associarmo-lo primariamente ao programa informativo radiofônico do que à condição indígena contida no libreto da ópera, um político influente do Estado de Mato Grosso bradava ao personagem de Felipe Camargo, o sertanista Orlando Villas-Bôas, que “brasileiro não gosta de índio!”. 


Conforme se pode intuir a partir de uma extensão hermenêutica deste inteligente recurso de montagem, os brasileiros são midiaticamente conduzidos para esse tipo de desapreciação racista, o que, no caso fílmico em pauta, torna mais do que necessária a difusão de um antídoto concomitante ao veneno, cabendo aos anticorpos ideológicos da platéia a decisão de investigar mais sobre o assunto, a fim de entender, entre tantos outros problemas de pesquisa, o porquê de o antropólogo Darcy Ribeiro, fundamental para o sucesso das empreitadas salvacionistas dos irmãos Villas-Bôas, ser ignorado pelo roteiro.

Ao final, as virtudes propositivas do filme são assimiladas aos intentos espetaculares da Globo Filmes, que, apesar das aparências intrafílmicas em contrário (o texto apologético à saga filantrópica dos irmãos que antecede os créditos finais, por exemplo), não coaduna com as recusas desenvolvimentistas expressas principalmente pelo personagem Cláudio, que critica a disposição de seu irmão mais velho em se submeter a conchavos políticos que ignoram as suas verdadeiras motivações humanitárias. A redução das sutilezas distintivas entre as concepções culturais de cidadãos “civilizados” e homens “selvagens” esbarra nalguns embates dialogísticos deturpados, como, por exemplo, quando um representante de tribo xinguísta utiliza pronomes possessivos (“esta terra é nossa!”) para se referir ao local onde nascera e fora criado, num dos trechos legendados do filme. 


Por mais venenoso que possa ser o antídoto forjado por este filme, ainda assim ele é útil para dirimir preconceitos alimentados, ao longo dos séculos, em favor de uma concepção deletéria e industrial de progresso e contra os habitantes ancestrais do Brasil, além de tornar mais conhecido um capítulo importante da história recente do país, oportunamente suplantado pelo sobejo de comicidade relacional e sensualidade vendável que não raro ostentam os filmes produzidos pela Globo Filmes e cujos indícios ameaçam irromper em vários momentos desta produção em particular, venturosa em seu compêndio. Tomara que “Xingu” estimule o cotejo com produções realizadas anteriormente por Andrea Tonacci, para ficar apenas num exemplo paradigmático rigoroso, e traga à tona novas necessidades de compreensão das falácias constitutivas do que se costuma propagandear harmonicamente como “povo brasileiro”.

Wesley Pereira de Castro. 

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