terça-feira, 7 de maio de 2013

EM TRANSE ('Trance') Inglaterra, 2013. Direção: Danny Boyle.

Celebrado em sua estréia cinematográfica por causa do excelente “Cova Rasa” (1994), o cineasta britânico Danny Boyle logo foi publicitariamente erigido como uma das maiores revelações da década de 1990, o que se confirmou após o lançamento do ainda mais extraordinário “Trainspotting – Sem Limites” (1996). A sua breve passagem por Hollywood – que rendeu o simpático “Por Uma Vida Menos Ordinária” (1997) e o equivocado “A Praia” (2000) – deixou seus fãs apreensivos acerca da continuidade de seu talento, afinal reconfirmado no magistral “Extermínio” (2002), no gracioso “Caiu do Céu” (2004) e no solene “Sunshine – Alerta Solar” (2007). Em seguida, ele foi beneficiado com vários lauréis ao redor do mundo graças ao apenas mediano “Quem Quer Ser um Milionário?” (2008), mas retomou a criatividade no inusitado “127 Horas” (2010), de modo que o seu retorno ao frenesi do começo de carreira era aguardado com ansiedade por seus admiradores.

 Em mais de um aspecto, “Em Transe” (2013) cumpre as expectativas depositadas sobre ele: a música constante desde a seqüência inicial cria um jogo inteligentíssimo em relação à sua quase onipresença por conta do significado duplo da palavra ‘trance’, que, além de poder ser traduzida da forma como está no título brasileiro, também se refere a um subgênero da música eletrônica, em que alguns de seus renomados representantes (Moby, Unkle, M People) comparecem na banda sonora. Soma-se a isto a composição dúbia do personagem principal, bastante assemelhado aos tipos interpretados pelo primevo colaborador habitual do diretor, Ewan McGregor, cujo estilo jovial e despojado de atuação é positivamente emulado por James McAvoy. A narração artificiosa que abre o filme, com o protagonista olhando diretamente para a câmera enquanto uma seqüência de assalto se desenrola, traz à tona um chavão que será repetido várias vezes (“nenhuma obra de arte vale o preço de uma vida humana”), num requinte de ironia e sarcasmo que, comparativamente, poderia muito bem ser descrito como essencialmente boyleniano.

 Apesar de o roteiro de Jon Ahearne e John Hodge (que já colaborou com o diretor em alguns de seus filmes mais destacados) ser bastante excitante, ele se torna cansativo em sua segunda metade, tamanho o excesso de informações desencontradas. Se, por um lado, este excesso permite que constatemos a habilidade do diretor em levar a cabo os seus exercícios de estilo, por outro, ele satura o espectador em razão do progressivo abandono do comentário inicial um tanto crítico sobre a relevância (monetária) das obras de arte, substituído por uma história de amor, ressentimento e traição nem sempre convincente e/ou interessante.

A justificativa para a cena em que a personagem de Rosario Dawson exibe a sua vagina emergencialmente depilada (a fim de saciar uma preferência estética de seu parceiro sexual, que constatou que, nos quadros, a ausência de pêlos pubianos nas musas desnudas indicava uma tendência contemplativa bastante valorizada pelos artistas) é impecável, mas lamenta-se que o diretor não tenha tido o mesmo desembaraço na exibição da nudez de James McAvoy, ao contrário do que fizera noutras demoradas oportunidades com o já citado Ewan McGregor e com Cillian Murphy, visto que a exposição da genitália masculina também goza de uma veemência pictórica reiterada. Este detalhe, entretanto, está longe de comprometer a interpretação do protagonista, bastante firme até mesmo nas crises de ciúme um tanto desenxabidas que encena em ‘flashback’.

 Não obstante tanto James McAvoy quanto Vincent Cassel estarem admiráveis, é mesmo a bela e exótica Rosario Dawson que concentra as atenções desejosas do público, hipnotizando tanto literal quanto figurativamente as pessoas que se postam diante dela – e, neste sentido, as imagens de vários de seus pacientes durante sessões terapêuticas para libertarem-se de vícios, traumas ou manias é deveras pertinente. O apropriado uso da trilha sonora incidental de Rick Smith (que compôs “Here it Comes”, a ótima canção executada durante os créditos finais por Emeli Sandé) contribui ainda mais para a efetividade das pretensões nauseantes do diretor, particularmente alardeadas nas cenas que mostram um corpo feminino em decomposição entulhado de larvas muscídeas, um homem robusto atingido balisticamente em seu pênis ou uma cabeça decepada conversando com o protagonista, numa situação de influência reconhecidamente cronenberguiana.

 Ratificando que este filme cumpre muitíssimo bem os seus intentos psicologicamente perturbadores e que, ritmicamente, é um filme digno de cotejo com as obras mais qualificadas do cineasta Danny Boyle, a confusão narrativa instaurada pelo roteiro – no sentido involuntário da expressão, que corre lado a lado com a sua contrapartida estilosa – impede que este tenha um resultado final coeso, para além da esperta direção fotográfica de Anthony Dod Mantle (que viabiliza insignes efeitos especulares), da montagem eficientíssima de Jon Harris e do trabalho louvável dos demais técnicos envolvidos na produção. Esta incoesão roteirística, inclusive, faz com que o filme provoque um arremedo amnésico em seus espectadores que, apesar de eventualmente ansiarem por uma revisão urgente da produção, talvez não se culpem por esquecer aquilo que parece ter sido roteirizado justamente para ser esquecido e, assim, cultivar uma aparência benfazeja de estado alterado de consciência.

“Em Transe”, portanto, torna-se refém de algumas de suas virtudes, mas, ainda assim, merece ser elogiado por demonstrar que seu diretor não capitulou frente aos ditames produtivos clicherosos e palatáveis que lhe proporcionaram diversos prêmios: malgrado ser abilolado, o desdobramento múltiplo do enredo é eximiamente notável por sua criatividade!

 Wesley Pereira de Castro.

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