sexta-feira, 12 de abril de 2024

SEUS OSSOS E SEUS OLHOS (2019, de Caetano Gotardo)


 

O mergulho poético é primordial nos trabalhos dirigidos e roteirizados pelo capixaba radicado em São Paulo Caetano Gotardo. Seja nas bifurcações narrativas e cancionais de sua obra-prima “O que Se Move” (2013), seja na montagem de seu longa-metragem mais ostensivamente experimental, “Você nos Queima” (2021), passando por seus curtas-metragens afetivos e no ótimo exercício de gênero que atende pelo nome de “Todos os Mortos” (2020, co-dirigido por Marco Dutra). Em “Seus Ossos e Seus Olhos” (2019), ele dialoga fora de campo com alguns dos principais contistas cinematográficos, sendo a primeira fase da carreira de Hong Sang-Soo uma comparação evidente. Com a diferença de que, em vez de comida, Caetano Gotardo focaliza os movimentos (retrações e expansões) dos corpos.



O roteiro aborda o contorcionismo diuturno das pessoas em variegados âmbitos, desde o desconforto do protagonista João (interpretado pelo próprio diretor), quando tenta se aconchegar na residência de sua amiga Irene (Malu Galli), até as coreografias dos dançarinos que ele observa na rua, a rememoração nostálgica de um homem que se deita tortamente e a crise performática de uma espécie de Síndrome de Tourette, a que João se submete depois que conversa com seu namorado. É quando ouvimos uma frase que fôra proferida no início do filme: “eu gostaria de ser violento”. São inúmeros, portanto, os elementos dramatúrgicos que justificam a relação entre os órgãos do corpo humano citados no título do filme.



De um lado, os ossos que permitem que os personagens se enrosquem nas preliminares sexuais; do outro, os olhos que metonimizam o elã do realizador acerca da exploração máxima das possibilidades dos sentidos, através de estórias que ressurgem dentro de histórias, que são narrativas orais que transitam entre a memória, a imaginação e a própria realidade. Numa determinada seqüência, Álvaro (Vinicius Meloni), o namorado ator de João, ouve o relato de uma jovem que desmaia por mais de duas horas numa aula, surgido enquanto ensaio interpretativo. Mais à frente, essa mesma situação é narrada como se tivesse sido testemunhada, ao vivo, pelo próprio Álvaro.



Tal como costumava acontecer nos filmes sangsoonianos, eventos e diálogos são repetidos com pequenas modificações, ao longo da projeção, como os diversos encontros com pedintes que João narra, e que o faz ter medo, eventualmente, de andar pelas ruas paulistanas. Num deles, um garoto fica chateado quando recebe apenas dois Reais de esmola, já que esperava (e alegava precisar de) vinte e cinco; noutro, um adolescente que pede que João lhe compre fraldas instiga-lhe a suspeita de que ele trocará estes produtos por ‘crack’. Perto do desfecho, João é perseguido por um transeunte, que queria apenas que ele lhe pagasse um lanche. As histórias transmutam-se, cada vez que aparecem na tela ou através da voz de algum dos falantes…



Caracterizado por planos extensos, geralmente sem cortes e conduzidos pelos depoimentos dos personagens, este filme destaca-se pela escolha acertada de intérpretes, que parecem aproveitar causos biográficos como complementos de seus monólogos expressivos. Num dos momentos mais insignes, Irene descreve o instante em que, ao observar o seu namorado peruano dormindo, pensa: “desde já, isso é memória”. Tal impressão é discursivamente aproveitada ao longo de todo o entrecho, seja quando um amante casual de João, Matias (Carlos Escher), esforça-se para lembrar o nome composto de um garoto por quem se apaixonara, aos doze anos de idade – e a quem dedicara uma poesia de Florbela Espanca [1894-1930], seja quando o mesmo Matias, repetindo diálogos que foram inicialmente proferidos por Álvaro, questiona João acerca de algo que ele descreve sem ter testemunhado. Diz ele que isso corresponde a “uma imagem que você não viu”, ao que João responde categoricamente “eu vi”. Não apenas o fez como compartilhou sinestesicamente com o público.



Na trilha musical, trechos da suíte composta para “O que Se Move” são executadas, em determinado momento. Caetano Gotardo tem plena consciência da maneira sensível e inteligente com que todas as suas obras concatenam-se autoralmente, podendo-se encontrar recorrências estilísticas em trabalhos anteriores e posteriores, como a afetação sentida a partir de interpelações urbanas – ponto de partida sinóptico-titular de “O Menino Japonês” (2009) – seja na importância concedida aos encontros fortuitos no metrô, que serão fragmentados e radicalizados em “Você Nos Queima”. Diante de uma pintura, num museu, Irene e João tergiversam acerca do que a mulher retratada sente ao contemplar uma carta, que pode ser também uma fotografia. Faz-se menção direta a um questionamento do documentário ensaístico “Sem Sol” (1983, de Chris Marker): “como lembramos da sede que sentimos?”. Irene altera significativamente o verbo: “e como a esquecemos?”



Propenso a múltiplas decifrações, à guisa de um palimpsesto metalingüístico, em que o próprio João é mostrado editando um ‘flashback’ convertido em filmagem, “Seus Ossos e Seus Olhos” permite também uma extraordinária reflexão política, quando uma das atrizes do grupo teatral do qual Álvaro participa faz uma necessária digressão sobre as similaridades criminosas entre o nazifascismo, a ditadura militar e o golpe parlamentar-midiático que deflagrou o ‘impeachment’ da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Sempre fascinante, como a voz aveludada de seu realizador e protagonista, este filme nos concede quase duas horas de reencontro conosco mesmos, a partir da dramatização de correspondências associadas a uma nova pedagogia do cotidiano: convém não apenas ver, ouvir e movimentar-se, mas sobretudo sentir!




Wesley Pereira de Castro.

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