segunda-feira, 24 de junho de 2024

CONTO DE FADAS (2022, de Aleksandr Sokurov)


No letreiro inicial, o diretor Aleksandr Sokurov afirma não ter utilizado recursos de Inteligência Artificial na feitura deste filme, de modo que, segundo ele, os diálogos seriam provenientes de materiais de arquivo. Trata-se de uma informação falseada persistentemente, no sentido de que os personagens reais são dublados por atores, cada qual em seu respectivo idioma pátrio. A constatação de que um destes personagens é ninguém menos que Jesus Cristo - de quem não se possui registros audiovisuais, por motivos óbvios - faz com que os propósitos discursivos do realizador mergulhem o espectador numa tempestade imediata de idéias, a fim de compreender o que aquelas pessoas que vagam pelo Purgatório possuem em comum... 


Em alguns dos casos, a associação é óbvia: o próprio Aleksandr Sokurov já havia biografado o ditador alemão em "Moloch - Eva Braun e Adolf Hitler na Intimidade" (1999), de modo que a troca de acusações entre este déspota, Benito Mussolini (dublado por Fabio Mastrangelo) e Josef Stalin (Vakhtang Kuchava) é compreensível, dentro dos propósitos iconoclastas em relação ao Mal. Ao invés de denunciar a malevolência de alguns líderes políticos mediante narração, o que poderia promover o fascínio, o diretor faz com que isso seja evidenciado através das frágeis alianças entre eles, registradas historicamente: por vezes, Hitler parece elogiar Stalin, que reclama sentir fome o tempo inteiro; noutras, o tacha de judeu e questiona as bases de seu comunismo (afinal, destroçadas em sua própria ambição personalista). Em relação a Mussolini, os chistes são ainda mais numerosos, dadas as posturas amplamente caricatas do político italiano. Os próprios ditadores odeiam e se destróem mutuamente! 


Na cena de abertura, quando Stalin desperta, sentindo cheiro de vinho e alegando que "ainda está vivo e assim permanecerá", ele nota a presença de um dormente Jesus Cristo ao seu lado e, ao encontrar o chanceler britânico Winston Churchill (dublado por mais de um ator, ao longo da trama, tal qual acontece com Hitler), diz-lhe que "ele é jovem e gentil, podendo ser útil nalgum momento". Daí por diante, são variegados os diálogos sobre cristandade e supremacia religiosa, confirmando o flerte entre esta suposta devoção e o genocídio. O quarteto vaga por entre as ilustrações (a cargo do pintor Gustave Doré) de "A Divina Comédia", de Dante Alighieri. Uma efígie representando o imperador francês Napoleão Bonaparte aparece rapidamente, reiterando a perspectiva evanescente dos encontros, naquele cenário amedrontador. Soldados falecidos e judeus surgem convenientemente, a fim de receberem comentários dos ditadores, que perdoam a si mesmos e, por extensão, perdoam - ou fingem perdoar - aqueles com quem se deparam no caminho. "Para que estragar um fuzil tão novo?!".


Enquanto esforçamo-nos para compreender as falas dos personagens, quase como solilóquios, multidões de apoiadores são amalgamadas num oceano de feições expressionistas, disparando uma algaravia de celebrações nazifascistas, que é misturada aos acordes da trilha musical original de Murat Kabardokov, ao acordeão de Mirko Mariani (em sua "Primavera Nottura") e a breves relances do tema para o "Funeral de Siegfried", de Richard Wagner. Para os conhecedores de detalhes biográficos dos personagens retratados, as pistas são abundantes, mas o diretor as confunde, via justaposição e multiplicação, de modo que, numa determinada seqüência, Adolf Hitler pode ser visto discursando para as massas e conversando com os outros ditadores, enquanto ele próprio defeca, à frente de um precipício. No desfecho, Josef Stalin é flagrado solitário, subitamente, depois de uma longa caminhada que parece um círculo em torno de si mesmo, como foi o despejo de vaidades e bravatas orquestrado pelos interlocutores infames, que chegam a mencionar o próprio Aleksandr Sokurov, cientes de que são observados por ele. Numa citação misteriosa (associada à sigla "M22 K, 4-4"), lemos que Satanás, "portador de paixão", foi estrangulado "com a corda divina de teu tormento". Os convites à interpretação são infindos - e, não por acaso, o filme foi rigorosamente proibido na Rússia!



Wesley Pereira de Castro. 



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