Em mais de uma cena do filme, sempre que pediam para que o protagonista Sandro (Michel Gomes) aprendesse a escrever, era utilizado o subterfúgio pragmático de que assim ele teria como guardar os ‘raps’ que ele compunha com tanta freqüência. Sempre que lhe pediam isso, porém, Sandro sempre retrucava: “não quero aprender a escrever porque o que eu gosto mesmo é de esquecer. Se não fosse assim, como é que eu poderia compor ‘raps’ novos?”. Em outras palavras: não somente o personagem afirma que deseja se esquecer para compor novas indagações em forma de música como o próprio filme do Bruno Barreto já foi realizado enquanto uma obra “esquecível”, a fim de que o mesmo universo de miséria e realismo contido no roteiro continuasse a retroalimentar o que foi corretamente apelidado de “cosmética da fome”, composto pelo séqüito de filmes que se utilizam do sofrimento de adolescentes envolvidos com o tráfico e/ou consumo de drogas apenas para exibir os dotes publicitários da equipe responsável pelas produções ou para tentar adquirir prêmios técnicos ao redor do mundo. Por este motivo, “Última Parada 174” não merece sequer ser lembrando por suas pretensões melodramáticas, visto que é a este equívoco que ele se propõe quando cria personagens ficcionais a fim de tornar ainda mais ambígua a jornada de horrores enfrentada pelo personagem real Sandro Barbosa do Nascimento, já biografado de forma bastante superior no documentário “Ônibus 174” (2002, de José Padilha). O diferencial utilizado pelo roteirista Bráulio Mantovani neste filme é que a trama permite que o espectador saiba mais do que os personagens acerca de suas vidas, o que acentua o aspecto (dramaticamente problemático) de tragédia anunciada conferido ao filme. Logo após o crédito titular, portanto, um intertítulo preenche a tela para falar da história de um menino chamado Alessandro, cuja mãe é viciada em drogas e que não tem como evitar que o bebê seja raptado pelo traficante Meleca (Rafael Logan). Em seguida, um novo intertítulo apresenta-nos à história de “outro menino chamado Sandro”, cuja mãe é assassinada durante um roubo ao bar que possuía e, ao ser adotado pela tia, foge de casa para conhecer o bairro de Copacabana, tão evocado por sua mãe quando sonhava com dias mais prósperos. Uma distinção dramatúrgica essencial permeia estas duas histórias: enquanto Alessandro foi incapaz de escolher seu destino, já que foi raptado ainda bebê, Sandro optou por fugir de casa e mergulhar na criminalidade. Os estratagemas moralistas que isentam o espectador de culpabilidade pelas desgraças mostradas na tela iniciam aí seu caminho potencialmente vitorioso.
Muito bem interpretado por um elenco que conhece de perto o cotidiano criminal focalizado pelo roteiro, “Última Parada 174” falha ao abusar de cacoetes cinematográficos para contar uma trama que implorava por um tratamento mais intimista, mais concatenado a uma espécie de denuncismo manifesto através da forma protestante. Ao invés disso, a montagem de Letícia Giffoni abusa de cortes desnecessários no meio de uma seqüência, a fim de manipular a tensão do espectador diante de cenas que já são tensas por si mesmas em virtude do incômodo que causam em qualquer pessoa que já tenha vivenciado a extrema violência e o desamparo dos personagens infantis mostrados na película, e a ótima trilha musical de Marcelo Zarvos não se concatena com a rudeza do cotidiano enfrentado por Sandro quando criança (interpretado pelo talentoso Vítor Carvalho), funcionando como um recurso melodramático igualmente redentor de culpa para o espectador confortavelmente sentado numa sala de cinema. Como não era esperado que Bruno Barreto realizasse proezas sociológicas com este filme, mas apenas um espetáculo da miséria alheia, convém analisar o filme por este prisma concessivo e comentar por que, mesmo reduzindo as expectativas e exigências sobre o mesmo, ele ainda mostra-se demasiadamente insatisfatório dentre a mixórdia de produções semelhantes sobre os crimes provocados por crianças e adolescentes oriundas do tráfico de drogas [vide a produção irregular que abarca filmes excelentes como “Cidade de Deus” (2002, de Fernando Meirelles & Kátia Lund) e malfadados como “Querô” (2006, de Carlos Cortez), geralmente roteirizados pelo mesmo Bráulio Mantovani]. Dentre os eventos desenrolados quando Sandro ainda era criança, merece destaque o encantamento de sua relação amorosa com a pequena Soninha (vivida, nesta época, pela extraordinária Yasmine Luyindula), cuja cena em que ela o ensina a beijar, numa noite de Natal, é de uma beleza egrégia e cruel. Pena que o diretor Bruno Barreto corrompe a eloqüência desta cena ao utilizar uma metáfora precária para mostrar que Sandro “tornou-se homem” depois que tem sua iniciação sexual, visto que, quando Soninha deita-se com ele debaixo de um lençol, a cena seguinte já o encontra acordando no final da adolescência, quando passa a ser interpretado pelo competente (e bonito) Michel Gomes. O detalhe entre parênteses acerca da beleza do ator protagonista pareceria apenas circunstancial, se não fosse este um dos comentários mais recorrentes durante a sessão do filme, quando muitos espectadores dedicam vários momentos à contemplação demorada do abdome do ator, demonstrando que, até nos detalhes fisionômicos, a tal “cosmética da fome” atua enquanto artifício de distanciamento moral e sedução estética fortemente carregada de ideologias de direita.
À medida que a trama do filme vai se desenvolvendo, a similaridade nomenclatural que parecia circunstancial no início do filme torna-se decisiva, visto que, ao menos na trama, Sandro sabe que não é o filho legítimo de Marisa (Cris Vianna), agora redimida pelo evangelismo, mas, ainda assim, insiste em fingir que é seu filho para ter onde morar depois que foge de um reformatório juvenil. Para além do excesso de palavrões e gírias – que, apesar de sua verossimilhança, causa o riso da platéia pelo exagero –, o relacionamento cúmplice entre Alessandro (Marcello Melo Jr.) e Sandro força uma semelhança com os filmes de ação que este último tanto insiste em negar quando seqüestra o ônibus que dá título ao filme. Ou seja, o tipo de relacionamento de confiança travado pelos dois companheiros de reformatório e de fuga resvala em clichês típicos do cinema hollywoodiano, em que a amizade é abalada apenas pelo amor de uma prostituta (no caso, representado pela volta de Soninha adulta, agora vivida, também com mérito, por Gabriela Luiz). Além disso, o relacionamento de apadrinhamento no crime entre Alê Monstro e Sandro também faz com que outro perigo identificatório do filme seja evidenciado, no sentido de que é neste tipo de relação fadada ao fracasso, à prisão ou à morte que as populações menos favorecidas se espelharão quando estiverem diante do filme, no sentido de que os dois personagens comprometem-se a uma revolta constante contra a sociedade que os oprime, sem que seja colocado em pauta que é a própria mídia financiadora do filme “Última Parada 174” que cria as situações de opressão vivenciadas pelos personagens, ao fazer com que eles desejem ostentar uma aparência incompatível com suas realidades sociais (vide as cenas em que os bandidos infantis são mostrados vestindo tênis e óculos novos ao som de uma canção de Gabriel, o Pensador, cantor que Sandro respeita desde pequeno).
Trazendo novamente à tona o ambíguo apelo ao esquecimento contido nas palavras de Sandro e, que, como foi dito, reflete a própria posição do filme em relação ao complicado (e banalizado) tema que aborda, convém elogiar a grandeza involuntária da última imagem do filme, fotografada por Antoine Heberlé, quando Marisa e Alê Monstro encontram-se no funeral vazio de Sandro e, ao olhar para o bandido, Marisa reconhece nele seu filho verdadeiro, esquecendo de olhar novamente para o caixão no qual momentos antes ela pensava em lançar flores. A funcionalidade discursiva de tal cena (quiçá involuntária, vale a pena frisar mais uma vez) está justamente na crítica ao oportunismo amoroso que motiva os personagens, dado que a personagem Marisa só se preocupa com Sandro quando cria que ele era seu filho. Extinta a dúvida, não haveria mais obrigação de ela se manter afetivamente cativa de um marginal (no sentido mais pejorativo do termo). Isto só torna ainda mais manifesto o quanto o filme é negativamente ideológico ao acentuar o respeito ao aparato de legitimidade estatal que atende pelo nome de “família”, entendida aqui não em seu aspecto de convivência mútua (vide a relação paternalista entre Meleca e Alê Monstro, que aprende a atirar com aquele que o criou), mas em laços biológicos espúrios, que ignoram qualquer traço problemático de personalidade que se instaure nesta relação de hereditariedade biológica. A noção de família é entendida, portanto, como sendo unicamente consangüínea, justificando a moral defensiva que também baliza os comportamentos criminosos que são atenuados de culpa quando agem visando o bem de filhos, mães ou pessoas com demais tipos de parentesco (vide o modo como Sandro se revolta quando chamam-no de “filho da puta”). Resta-nos, portanto, uma dúbia sensação após o final do filme: quando a equipe técnica pensava que enterneceria o espectador ao mostrar o policial responsável pela negociação com Sandro (quando este perpetuava o seqüestro ao ônibus 174) chorando num paralelepípedo após o fracasso da operação de resgate dos passageiros, tal sensação de desamparo só é efetivamente posta em prática num plano acidental, filmado em ‘plongée’, no qual mãe e filho biológicos se encontram num funeral e, quem sabe a partir dali, construirão um final familiar feliz à parte de todas as tragédias mostradas nos 111 minutos de projeção. Eis a que se pretende o famoso cinema cosmético-famélico do Brasil contemporâneo!
Wesley Pereira de Castro.