quarta-feira, 17 de julho de 2024

MAXXXINE (2024, de Ti West)


Depois de deixar os fãs de cinema de terror em polvorosa, por conta dos ótimos "X - a Marca da Morte" e "Pearl", ambos realizados em 2022, o diretor Ti West decepcionou as expectativas de vários deles, ao concluir, de maneira apressada, a trilogia protagonizada por Mia Goth, que, ao interpretar Maxine West, faz jus ao epíteto de estrela, que ela tanto deseja. Neste sentido, a rima audiovisual entre o letreiro de abertura [quando uma citação atribuída à atriz Bette Davis (1908-1989) aparece na tela: "neste ramo, enquanto não te conhecem como monstro, tu não és uma estrela"] e os créditos finais, ao som de "Bette Davis' Eyes", na voz de Kim Carnes, é meritória: Maxine comete atos monstruosos, em seu afã por ser reconhecida não apenas como uma atriz pornográfica! 


Se a presença de Mia Goth é magnética, em cada um dos instantes em que aparece, nos cento e quatro minutos de duração do filme, infelizmente, o roteiro não está à altura de seu chamariz actancial: é como se o diretor estivesse mais preocupado em despejar referências cinematográficas e epocais, facilmente reconhecíveis, mas sem estabelecer a continuidade devida entre elas, em âmbito tramático, ao contrário do que ocorria nos filmes anteriores. Vide a situação em que a diretora Elizabeth Bender (Elizabeth Debicki, adequadíssima ao papel) mostra a Maxine o famoso cenário de "Psicose" (1960, de Alfred Hitchcock) e isso rende apenas uma breve alucinação e uma perseguição sub-aproveitada... 


O fato de Maxine ser um consumidora contumaz de cocaína e de a narrativa ser ostensivamente conduzida a partir de seu ponto de vista explica o caráter fragmentado da mesma, mas não justifica todos os seus problemas estruturais: além de a subtrama dos assassinatos das pessoas relacionadas à protagonista ser rapidamente desvendada, esta não chega a se demonstrar efetivamente ameaçadora, tamanha a quantidade de eventos paralelos que circundam a personagem titular. Entre elas, a inconveniente perseguição do detetive particular interpretado por Kevin Bacon, cuja morte inusitada chama positivamente a atenção, pelo modo como ratifica o caráter inescrupuloso de Maxine! 


Ainda que esteja aquém dos demais capítulos da trilogia, "Maxxxine" confirma o talento de Ti West enquanto diretor enciclopédico e conta com um aproveitamento magistral de canções oitentistas, como "St. Elmo's Fire", de John Parr - tema do filme "O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas" (1985, de Joel Schumacher) - e "Welcome to the Pleasuredome", da banda Frankie Goes to Hollywood, além daquela supracitada. A montagem - também a cargo de Ti West - é muito boa e, num elenco com interessantes participações dos estilosos cantores Halsey e Moses Sumney, Mia Goth brilha soberana, fascinante, apaixonante... Por ela, o tom de pastiche do filme é compensado: definitivamente, ela não aceitará uma vida que (acha que) não merece! 



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 14 de julho de 2024

UM DIA NOSSOS SEGREDOS SERÃO REVELADOS (2023, de Emily Atef)


 

Na primeira cena deste filme, Maria (Marlene Burow) prefere ficar em casa lendo, em vez de ir à escola. Ela faz isso há vários dias, o que intriga seu namorado Johannes (Cedric Eich), que ameaça jogar o grosso romance que ela lê pela janela. Ela pede que ele não faça isso e, numa conversa casual, Johannes pergunta-lhe qual o nome do livro e do que se trata. Ela responde: “Os Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoiévski, e, em seu resumo, a trama é sobre os três filhos de um senhor assassinado, sendo que o mais novo deles fica dividido entre duas mulheres de temperamento radicalmente distinto. É uma enorme simplificação, claro, mas ajuda a compreender o ímpeto passional da protagonista…



Ao som da canção “Behind the Wheel”, da banda britânica Depeche Mode, intuímos que estamos entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990: a Alemanha acabara de ser unificada, em razão da derrubada do Muro de Berlim, que dividia o país em dois. Maria vive na parte oriental, e passa mais tempo na casa de seu namorado que ao lado de sua mãe, Hannah (Jördis Triebel). Esta ficou desempregada recentemente, devido às bruscas mudanças econômicas desencadeadas pela situação supracitada e, para piorar, ela está ressentida porque o seu ex-marido, pai de Maria, casar-se-á com alguém com metade de sua idade. A comunicação entre mãe e filha é dificultada, em múltiplas instâncias.


Apesar de não ser uma fazendeira abnegada, eventualmente Maria ajuda a família de Johannes em tarefas cotidianas, como debulhar o trigo ou auxiliar nas vendas de uma quitanda. É numa dessas atividades que ela conhece o ríspido Henner (Felix Kramer), com quem ela se envolverá sexualmente, num desenvolvimento enredístico que, segundo alguns espectadores, emula tramas como as dos romances “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, ou “O Amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence. Tal como ocorre nestas obras, Maria busca refúgio no sexo, ao quedar entediada na lida com a rotina rural…


O relacionamento com Henner é permeado por uma sexualidade rude, bruta. Nos primeiros contatos, ele tenta praticar o coito anal, e ela consente, fascinada pela pletora de livros espalhados pela residência do camponês. Estes foram herdados de sua mãe, a quem ele descreve como alguém depressivo, o que vai acrescentando dados que permitem antecipar o que ocorre no desfecho. O roteiro, inclusive, foi co-escrito pela diretora e por Daniela Krien, autora do romance homônimo original.


Chama a atenção, no filme, a sua fotografia amplamente alaranjada, emulando tanto a luz crepuscular, quanto as plantações de trigo e a cor dos cabelos de Maria. Esse tom é também encontrado nas lâmpadas da residência de Henner, bem como no papel de parede que cobre o seu quarto. Maria submerge nesses ambientes quase monocromáticos, até tornar-se presa de uma obsessão que a adoece: em mais de um momento, ela aparece febril, enfraquecida, não hesitando, porém, em entregar-se a Henner mesmo quando está menstruada. O que deixará de ocorrer com Johannes, para o seu descontentamento.


À medida que o filme avança, tons esverdeados surgem na tela, emulando a passagem do tempo, através das estações do ano. Da mesma maneira que Maria – ainda muito jovem, em seus dezenove anos de idade –, a Alemanha está também amadurecendo: os habitantes da Alemanha Oriental, traumatizados por conta da doutrinação e censura comunistas, demonstram-se fascinados com as aberturas comerciais do Ocidente, com as promessas de lucro e com produtos chamativos, como o toca-CDs ou o ‘chantilly’ enlatado. A família de Johannes, que acolhe Maria durante a fase em que ela não sabe direito o que fazer da própria vida, passa por vários conflitos, que espelham o que ocorre em âmbito nacional. É quando o rapaz crê ter encontrado a sua vocação: tornar-se fotógrafo. O que faz com que Maria se sinta ainda mais solitária do que estava inicialmente…


Nas duas horas e nove minutos de duração desta simpática produção germânica, tem-se a impressão de que Maria é presa de um ciclo mui repetitivo de atração e aversão, em relação ao lacônico Henner. Na derradeira seqüência, o título do filme é clarificado, numa associação renovada com a obra que ela lê com tanto entusiasmo. Antes que os versos apaixonantes de “Dancing Barefoot”, de Patti Smith, surjam nos créditos finais, o vaticínio de um personagem dostoiévskiano será pronunciado, em ‘off’, pela jovem: “um dia, nós ressuscitaremos, e nos reencontramos e conversaremos sobre tudo. Absolutamente tudo”. Fica a impressão de que o enredo possui forte pendor autobiográfico, o que não é casual: há uma dupla adolescência sendo abandonada no filme, a de uma moça e a do país em que ela vive. Enquanto leitora compulsiva, Maria exorta-nos a decifrar as entrelinhas do que ocorre no filme em que ela é a personagem principal!



Wesley Pereira de Castro.