sábado, 30 de setembro de 2023

OTHELO, O GRANDE (2023, de Lucas H. Rossi dos Santos)


É sempre válido que se fale sobre os múltiplos talentos do ator, compositor e humorista mineiro Sebastião Prata [1915-1993], mas este documentário segue um percurso laudatório mui tradicional, com viés quase telejornalístico. Ainda que sejam aproveitados excelentes depoimentos do ator e que a montagem seja primorosa, ao concatenar diversas participações do artista em filmes e programas de TV, a ausência de narração, a falta de identificação imediata dos materiais utilizados e a recusa em exibir outras personalidades falando sobre o biografado tornam o resultado sobremaneira reiterativo. Não sabemos mais sobre este importante brasileiro apenas a sessão, apenas revemos trechos que já foram utilizados em reportagens anteriores sobre ele!


Tendo como mote recorrente a entrevista que o ator concedeu ao programa "Roda Viva", da TV Cultura, em 1987, há importantes menções à discriminação racial que ele enfrentou ao longo de toda a sua vida, além da exposição revoltante de trechos indisfarçadamente racistas de obras das quais ele participou, como o filme no qual alguém se interroga "como uma cabeça tão preta pode ter idéias tão claras?". Porém, as omissões são gritantes, seja no falta de aproveitamento dos comentários de Grande Otelo sobre o Cinema Novo - donde a sua presença em "Os Herdeiros" (1970, de Carlos Diegues) é marcante enquanto enfrentamento -, seja na falta de manifestação sobre os derradeiros trabalhos do ator ou mesmo sobre as condições de seu falecimento. Neste sentido, o filme, em seus propósitos documentais, é decepcionante. 


Voltando ao parágrafo inicial, não obstante este filme apenas requentar cenas de outros veículos, é sempre válido que se fale sobre Grande Otelo, que tenhamos a oportunidade de ouvi-lo comentar sobre os encontros com Orson Welles [1915-1985] ou Werner Herzog, enumerar as características e fatos de suas relações familiares ou recitar a máxima de que "todo ator cômico, nalgum momento, emocionará alguém e todo ator dramático, nalgum instante, conseguirá fazer alguém sorrir". E, tal qual Zezé Motta expande, a partir de alguns versos de Carlos Drummond de Andrade [1902-1987], Sebastião Bernardes de Souza Prata foi um artista completo! 



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

NOSSO SONHO (2023, de Eduardo Albergaria)


Quando se dispõe a mostrar os intérpretes da dupla Claudinho & Buchecha nos palcos e/ou gravações, este filme mostra-se contagiante e bem-sucedido. Entretanto, o roteiro escrito pelo diretor e mais três colaboradores deixa-se contaminar pelas recorrências ideológicas da produtora Globo Filmes, que, em seu esforço por libertar a emissora televisiva parônima de seus vínculos anteriores com a ditadura militar, comete pecadilhos reconstitutivos que, em sua aparente banalidade, dizem muito enquanto intenção culposa de reescritura da História. Vide o cartaz que menciona a entrada de um Real (R$ 1,00) num baile 'funk', em 1993, quando os protagonistas se reencontram, ou a oportuna exibição de "Central do Brasil" (1998, de Walter Salles), no canal fechado Telecine, quando os personagens compram uma casa. Não são erros circunstanciais na direção de arte, mas situações que, em seu bojo, trazem discursos reforçadores da importância dos Aparelhos Ideológicos de Estado - entre eles, a família. 


Não é por acaso, portanto, que o percurso de sucesso dos dois cantores seja progressivamente sufocado, em seu elã tramático, pela dificuldade de Claucirlei/Buchecha (Juan Paiva) em perdoar o pai alcoólatra, seu Souza (Nando Cunha), de modo que a parceria quase fraternal com Claudinho (Lucas Penteado) é essencial nesta reiteração discursiva, visto que é ele quem sempre traz o parente rejeitado para os eventos comemorativos. O que é ainda mais suspeitoso neste processo é que, sobre a família de Claudinho, nada sabemos: no filme, ele vive em função do acolhimento parental de seu parceiro. E, obviamente, sendo esta uma biografia cinematográfica validada por um dos personagens retratados - que ainda está vivo e é apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro -, o delineamento moral dos protagonistas é ilibado: eles se casam com mulheres que conhecem desde a adolescência, são monogâmicos e mui tolerantes, e demonstram-se alheios à violência do tráfico, característica de muitas comunidades cariocas, e até mesmo ao consumo recreativo de substâncias viciantes. Não chega a ser de todo inverossímil, visto que o comportamento público/midiático dos artistas diferenciava-se de outros representantes do 'funk' justamente por conta de sua ingenuidade exacerbada, mas o roteiro do filme é ideologicamente exaustivo, em sua unilateralidade, do meio para o final. 


Como "Nosso Sonho" é um exemplar sobremaneira simpático do cinema brasileiro contemporâneo, intencionalmente voltado para as camadas mais populares da audiência, é mister ressaltar algumas de suas qualidades, que são notáveis: os dois protagonistas juvenis, por exemplo, estão muito bem, ao representarem a espontaneidade histriônica e a timidez obediente de Claudinho e de Buchecha, respectivamente. A utilização das canções dos referidos artistas dota o filme de uma benfazeja nostalgia, ainda que acompanhemos pouco sobre os processos compositivos das mesmas. Pena que, apesar de Buchecha ser o narrador, é a lógica comportamental do senhor Souza que impregna a narrativa, não sendo casual a quantidade de vezes em que se repete o mantra "quem é talentoso não tem patrão" ou, menos ainda, que os patrões de Buchecha sejam mostrados tão benevolentes quanto aos seus anseios musicais. 



As homenagens derradeiras são emocionantes, inclusive no que diz respeito ao caráter profético de Claudinho (falecido em 13 de julho de 2002, num acidente automobilístico), identificado em várias de suas composições e declarações pessoais - vide o pedido que faz para o amigo, a ser atendido no aniversário de quinze anos de sua filha Andressa. Nos créditos finais, o subtítulo "a História de Claudinho e Buchecha" aparece modificado na tela, pois Buchecha é o verdadeiro biografado, sobrevalorizado em sua definitiva reconciliação paterna, de modo que o longa-metragem é também dedicado a "Buchechão", apelido de seu progenitor. Tudo muito direcionado em seus prognósticos institucionais, como a produção não faz a mínima questão de disfarçar! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

ESTRANHA FORMA DE VIDA (2023, de Pedro Almdodóvar)


Não obstante sermos capazes de identificar, neste curta-metragem, traços característicos do cinema almodovariano, ele parece estar bem menos à vontade com o idioma inglês que na experiência anterior [o ótimo "A Voz Humana" (2020)]: ao apropriar-se de elementos caros ao gênero 'western', mas sob a corruptela do romance homossexual interditado, o realizador incorre numa autocensura estilística, de modo que este filme chama mais a atenção pelos rumos sinópticos, deixados em aberto, que pela relevância dos partícipes técnicos envolvidos... 


Trabalhando novamente com o fotógrafo José Luis Alcaine e, principalmente, com o músico Alberto Iglesias, o diretor e roteirista espanhol, infelizmente, parece sabotar a si mesmo, dotando a trama de uma pudicícia vetusta, ao menos compensada pela entrega de seu elenco: Pedro Pascal, lamentavelmente, não dispõe de tempo suficiente para complexificar a sua participação actancial, no sentido de que o propalado reencontro amoroso possui um interesse escuso, mas Ethan Hawke aproveita com galhardia seus traços fisionômicos (e vocais) rudes, a fim de delinear um personagem que sufoca os seus desejos incompreendidos através da diligência profissional; e, na única seqüência em que comparece, George Steane demostra-se como um reencarnação encrudescida dos arquétipos que povoaram as obras exordiais do realizador. O desfecho do filme, por sua vez, é embasado numa temática que ronda toda a filmografia de Pedro Almodóvar: a dedicação de um algoz em cuidar, mui zelosamente, da pessoa que feriu, justamente por amar demais. Na imagem final, em que os créditos são exibidos enquanto cavalos descansam num rancho, o curta-metragem justifica a sua existência discursiva, ainda que seja um trabalho não tão memorável de seu autor. 


Dentre os indicativos de debilidade formal deste filme, podemos enfatizar: a montagem de Teresa Font (colaboradora recorrente do diretor, em suas últimas produções), que deixa a má impressão de compacto de episódio-piloto de uma série de TV ou de um 'trailer' estendido; a artificialidade da aparição de Manu Ríos, que dubla de maneira pouco imersiva a canção titular de Caetano Veloso; e o refinamento posado com que as situações eróticas são filmadas, todas sob o jugo publicitário do principal patrocinador, a grife Saint Laurent. Ainda que o desfecho seja reconhecível, enquanto abordagem continuada das questões que interessam ao realizador - tal qual susomencionado -, o curta-metragem é quase inautêntico na introdução da permissividade lasciva que culminou em roteiros outrora polêmicos, como os de "A Lei do Desejo" (1987) e "Fale com Ela" (2002), para ficar em dois exemplos da excelência de um cineasta que sucumbiu ao cansaço das concessões parahollywoodianas. Um sintoma preocupante de seu desgaste criativo! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

RETRATOS FANTASMAS (2023, de Kleber Mendonça Filho)

Obedecendo a uma recorrente estrutura tripartite, o renomado crítico e cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho utiliza como ponto de partida ensaístico as filmagens, em vídeo ou Super-8, que realizou desde a sua juventude, a fim de traçar um paralelismo entre o seu cotidiano doméstico, a nostalgia das sessões cinematográficas de outrora e as brutais transformações (para pior) do espaço urbano, na contemporaneidade. Repetindo o apotegma de que os filmes de ficção (inclusive, os futuristas) são também documentários, ele ficcionaliza a própria vida, ao documentá-la. E o resultado é sobremaneira emocionante! 


Na primeira seção, "o Apartamento de Setúbal", a narração do cineasta explica como a sua mãe - que era historiadora e faleceu antes de completar sessenta anos de idade - adquiriu o lugar no qual ele vive e que se tornou um cenário utilizado em várias de suas produções cinematográficas. É quando a relevância que ele concede às contaminações vicinais ressurge enquanto temática transversal de toda a sua obra, cujo apogeu é o longa-metragem "O Som ao Redor" (2012); na seção seguinte, "Os Cinemas do Centro de Recife", o cineasta edita valiosos materiais de arquivo, que registram desde as festas de inauguração de antigas salas de cinema até a relevância semiótica contida nos textos que estampavam as marquises das mesmas, passando pela valorização das atividades de profissionais-chave, como uma bilheteira e um projecionista; e, por fim, em "Igrejas e Espíritos Santos", a tônica analítica destaca a reação aos novos rumos da especulação imobiliária, culminando na constatação de que os templos do entretimento foram convertidos em fortalezas pentecostais (o que impactou no direcionamento ultraconservador da política brasileira) e, hoje, desembocaram nos grandes empreendimentos farmacêuticos. Ao invés de proporcionar alguma cura, isso adoece ainda mais...


Orquestrando de maneira hábil quais aspectos de sua vida pessoal/familiar são discursivamente enfatizados (sendo presumido que o espectador já sabe quem é o realizador, a ponto de ele mencionar a esposa de maneira breve, citando apenas o seu prenome), Kleber Mendonça Filho ignora os anos em que vivera fora do Brasil, por exemplo. O modo recitado como ele urde vocalmente as próprias memórias tem por interesse uma empatia genérica, que substitui a assunção de seus privilégios de classe pela constatação de que os processos de gentrificação descritos ocorrem na maioria dos cidades ocidentais. Servindo-se de elaborados efeitos sonoros e de uma montagem primorosa, as imagens de tempos passados são costuradas subjetivamente, às vezes forçando interpretações, como quando o diretor encontra manifestações fantasmáticas no catálogo audiovisual que ele desvela. Lidando com "coincidências" que, em verdade, são apanágios do capitalismo especulativo, o diretor converte a cinefilia em estratégia de sobrevivência, coadunada à aceitação carnavalesca do entorno e às reconstruções afetivas da arquitetura recifense. Foi erigido, assim, um clássico imediato!



Wesley Pereira de Castro.