A abertura do filme “Rio” é muitíssimo honesta acerca de que tipo de impressão sentimental o filme como um todo causará no espectador: um desfile de cores, boníssima música e um clima de festividade que é bruscamente interrompido e solapado pelas sub-necessidades humanas de angariar mais dinheiro do que necessita para satisfazer as suas necessidades básicas.
No plano intradiegético, a sanha monetifágica de alguns seres humanos vilanescos engendra o trauma anti-vôo que persegue o protagonista Blu por toda a sua vida, mas, no plano extradiegético, que diz respeito às interferências críticas sobre o filme, esta sanha monetifágica manifesta-se no modo como a suposta exortação à liberdade que é oferecida ao último espécime masculino vivo de arara-azul, voluntariamente domesticado, é perpassada por uma compleição oportunista a uma festividade pautadamente capitalista, em que os estereótipos carnavalescos associados à cidade de Rio de Janeiro são adotados como sendo positivos no que tange ao equilíbrio emocional e moral dos personagens.
Ou seja, a descrição de liberdade que a personagem Jewel (ou Jade, na versão dublada) oferece como salvação para o confinamento doméstico a que Blu acostumara-se na gelada cidade de Minnesota ampara-se num discurso chavonado sobre diversões coletivas, que teima em ignorar que nem todas as pessoas são obrigadas a se divertir da mesma forma, a gostar dos mesmos ritmos musicais, a imitar rigorosamente os seus convivas a fim de que sejam aceitas numa dada comunidade de semelhantes.
Após o final feliz e convincente deste filme, entretanto, há que se admitir que, mesmo com suas entrelinhas ideológicas dignas de atenção redobrada (vide a dubiedade defensiva dos argumentos com que a amargurada cacatua Nigel justifica a sua malevolência adquirida), a efusão que brota deste filme é bem-vinda e respeitosa aos instintos percussivos dos indivíduos, em especial, os que vivem em países tropicais.
Muito do êxito entretenedor deste filme tem a ver com a extraordinária utilização da trilha sonora de John Powell e com as ótimas composições de Carlinhos Brown, Mikael Mutti, Sergio Mendes e Siedah Garrett, que mesclam magnificamente bem a percussividade somática típica do samba carioca com a percussividade emotiva associada aos refrões caros a músicas-tema de filmes infantis.
Nesse sentido, a canção que é executada durante a ótima seqüência do desfile de escolas de samba permanece, por muito tempo após o término da sessão, ainda reverberando na mente do espectador, de tão contagiante e bem executada que é. No plano fotográfico, o filme também é muitíssimo merecedor de elogios, tanto por aproveitar com riqueza de detalhes o colorido natural dos animais que protagonizam o filme como pela reconstituição animada mui fidedigna de algumas das principais paisagens do panorama turístico da cidade que batiza o longa-metragem. Que os devidos créditos elogiosos sejam, então, redirecionados ao fotógrafo Renato Falcão!
Infelizmente, o sobejo de cópias dubladas nas salas em que o filme está sendo exibido – algo até compreensível, levando-se em consideração que nem sempre o público-alvo deste tipo de filme sequer sabe ler – não permite que seja avaliado o trabalho de interpretação dos astros hollywoodianos que emprestam suas vozes aos personagens (Jesse Eisenberg, Anne Hathaway, will.i.am, Jamie Foxx e Rodrigo Santoro, entre outros), mas a composição da maioria dos caracteres é muito boa. Não somente o personagem do ornitólogo Túlio emula com precisão os personagens abobalhados vividos por Cary Grant na era de ouro do cinema norte-americano como a personagem Linda é crível em suas boas intenções proto-familiares, enquanto que o protagonista Blu chama a atenção por sua bem dosada sinceridade conformista. Jewel/Jade, por sua vez, é delineada como um efetivo contraponto ao arquétipo masculino a quem foi destinada ao acasalamento, oscilando entre a obviedade sedutora de uma mocinha de trama aventuresca e a impavidez cara às mulheres individualistas e determinadas, enquanto que os amigos bonachões Nico e Pedro, o tucano Rafael e o cachorro babão Luiz são construídos com a superficialidade não necessariamente incômoda que este tipo de filme nos habituou a encontrar em personagens secundários que, por sua vez, são essenciais para o casal principal possa procriar tranquilamente no final. O menino de rua brasileiro que se afeiçoa ao casal protagonista, por outro lado, destaca-se negativamente por sua mecanicidade enquanto vilão redimido, ao mesmo tempo em que, na seqüência da corrida de motocicleta, inocula um perigoso adendo à banalização criminal que pretendia ser criticada, visto que um ato de escambo furtivo contribui acriticamente para que Linda e o Dr. Túlio solucionem um esquema ilegal de contrabando de pássaros silvestres perpetrado pelos antigos sub-empregadores do garoto. Talvez seja um detalhe menor, mas deveria ser levado bem mais em consideração pelos eventuais detratores do filme do que as óbvias (e desnecessárias) reprimendas às absolutamente verossímeis mulheres de biquíni que passeiam pela tela.
Num saldo geral, portanto, “Rio” é diversão garantida para crianças e adultos, sendo propagandisticamente viável para quem ainda não conhece as belezas naturais do Rio de Janeiro e/ou para aqueles que ainda possuem uma visão idealizada do carnaval que anima e torna esta cidade famosa. Se, no plano tramático-narrativo, pode-se reclamar que o roteiro escrito a partir de um argumento do próprio diretor Carlos Saldanha seja preguiçoso em seus clichês maniqueístas (a batalha entre pássaros funkeiros e micos ladrões é desagradabilíssima neste sentido!), no plano somático-emotivo, “Rio” é encantador, por mais que o abuso de canções ‘pop’ minuciosamente programadas para serem vendidas durante os créditos finais ameace estragar a leveza da mistura de percussividades que os responsáveis pela trilha sonora original levam a cabo. Seja como for, Carlos Saldanha está de parabéns pela bela homenagem fílmico-publicitária à cidade em que nasceu!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 1 de maio de 2011
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