Não obstante ser lembrado por seus temas sindicais e/ou reconstituições de episódios revolucionários internacionais, o elemento estilístico que mais se destaca no ‘corpus’ loachiano é a impressão certeira de que ele, de fato, ama os seus personagens. Desde o primevo “Kes” (1969), que retrata os abandonos vivenciados por um garoto que se afeiçoa a um falcão, até esta produção mais recente, em que um grupo de prestadores de serviços comunitários se reúne para efetuar um contrabando de uísque raro, pode-se perceber uma amabilidade desmedida por parte do diretor em relação aos protagonistas de seus dramas sociais, ainda que, ao contrário do que acontece em “A Parte dos Anjos”, raramente os desfechos de seus filmes possam ser equiparados àquilo que se convencionou chamar de “final feliz”.
Aproveitando esta amabilidade como principal elemento meritório do filme, cabe apontar a opção bem-sucedida por transferir a inimizade comumente direcionada à burocracia estatal para a violência corporal perpetrada por delinqüentes ricos e vicinais que, impetuosamente, reproduzem as condições extenuantes do determinismo vicioso que aprisiona o protagonista. Neste sentido, a determinação de Robbie (Paul Brannigan, excelente em sua estréia no cinema) em libertar-se das condições marginais que o tornam agressivo é bastante crível, o que pode ser percebido não apenas em sua reação sincera ao impressionante momento em que ele precisa confrontar a família do rapaz cujo rosto desfigurou, mas também na quantidade de vezes que os irmãos de sua namorada perseguem-no, a fim de prolongar uma rixa familiar que se estende desde que houve uma briga adolescente entre o pai dele e o pai dela, que chega a oferecer dinheiro para que ele saia da cidade.Apesar de Robbie sentir-se tentado a aceitar tal oferta, considerada humilhante por seus amigos, a veracidade do amor que ele sente por Leonie (Siobhan Reilly) e por seu filho recém-nascido leva-o a buscar um estratagema de sustentação financeira que evidencie os seus esforços pessoais, o que, num lampejo de criticidade caro ao diretor, é-lhe negado pela maioria dos empregadores por conta das cicatrizes que abundam em seu rosto.
Por mais aparentemente entusiástico que seja o parágrafo acima no que tange ao acento humanístico de “A Parte dos Anjos”, enquanto projeto cinematográfico ele é muitíssimo mais problemático, principalmente levando-se em consideração a vertente esquerdista que o diretor impinge em suas obras anteriores. Contando com ótimas interpretações (além dos atores já citados, merecem destaque John Henshaw como o benevolente Harry e Jasmin Riggins como a cleptomaníaca Mo), este filme é conduzido de forma diferenciada (para não dizer irregular) em suas duas metades: na primeira delas, os contratempos experimentados por Robbie assemelham-se deveras àqueles que são bem narrados em “Meu Nome é Joe” (1998) e equivocadamente conduzidos em “Sweet Sixteen” (2002); na segunda, o deslindamento do plano de Robbie para furtar algumas garrafas de um uísque raríssimo e vendê-lo de forma contrabandeada a um colecionador de bebidas requintadas assume uma simplicidade incomum aos filmes do cineasta, assemelhando-se inclusive a típicos filmes hollywoodianos sobre golpes perpetrados por bandidos simpáticos. O problema é que esta simplicidade converte-se também num simplismo ideológico, espelhado no personagem de Gary Maitland, o irritante Albert, que desconhece por completo quem seria Albert Einstein ou a “Mona Lisa” pintada por Leonardo da Vinci mas distingue com precisão detalhes sobre a lógica econômica da oferta e da demanda e um modo oportunista de servir-se de um vestuário tradicionalmente escocês para enganar a polícia no trafico ilícito de mercadorias. Não seria esta uma inversão do didatismo político pretendido pelo cineasta em suas obras de forte cunho sindical?
Trazendo-se à tona o tema da fraude, mencionado na seqüência de tribunal posterior aos créditos iniciais, em que um juiz condena uma ré por enganar repetidamente o sistema de concessão de benefícios sociais da cidade em que vive, a indagação anterior torna-se difícil de ser respondida imediatamente, visto que o diretor comumente recorre a expedientes enganosos para defender o direito à dignidade de seus personagens. Um cotejo direto com o decepcionante “Pão e Rosas” (2000) ou com o instigante “Mundo Livre” (2007) torna a pergunta ainda mais ambígua, pois o tom urgente e denuncista que Ken Loach imprime a seus filmes, não raro filmados com câmera na mão, desmantela a unidimensionalidade dos julgamentos morais direcionados aos personagens, conscientes de que são renitentemente levados a repetirem os mesmos erros, muitas vezes hipertrofiados pela constância do alcoolismo ou do vício em drogas que acompanha o desespero desempregatício.
Em “A Parte dos Anjos”, o modo como o culto ao uísque surge diante dos personagens – através de uma visita a uma destilaria, uma das melhores cenas do filme, na qual Robbie descobre possuir dotes olfativos úteis ao reconhecimento das características específicas de diferentes bebidas – possui um caráter muitíssimo interessante pela recusa do maniqueísmo ebriedade/sobriedade e pela exposição de um novo meandro dos sustentáculos da luta de classes em relação aos quais os roteiros filmados pelo diretor normalmente se detêm, malgrado ser demasiado condescendente à ilegalidade dos atos dos personagens (afinal recompensados pelo desfecho em que todos se dão bem – desde Robbie, que consegue um emprego valorizado numa destilaria, até seus amigos párias, que dispõem de bastante dinheiro para “encher a cara”) e à fetichização da mercadoria que é analiticamente desdenhada na consecução da artimanha concebida por Robbie para ludibriar o leilão do precioso barril de uísque (não por acaso, propenso à corrupção).
Numa análise geral, tende-se a destinar precipitadamente a culpabilidade dos defeitos abundantes deste filme ao roteiro esquemático de Paul Laverty, colaborador habitual de Ken Loach desde a segunda metade da década de 1990, mas a direção demonstra sinais de cansaço ou de inconveniência langorosa em seqüências como aquela em que Robbie e Harry adentram a maternidade depois que o primeiro é espancado por seus cunhados e o momento em que ele sai correndo de uma sala de bilhar, sob o risco de ser novamente espancado pelos mesmos, ambas as seqüências musicadas de forma melodramática ou pleonástica, respectivamente, por outro colaborador habitual do diretor, o compositor George Fenton.
Se, por um lado, é deveras aplaudível a decisão do realizador em responsabilizar-se partidariamente pela melhoria das condições de vida de seus personagens (ainda que esta seja motivada por um desrespeito legislativo bem menos justificado que em suas obras mais famosas), por outro, é lamentável que ele tenha subtraído a pujança política pela qual se tornou conhecido em prol de uma trama eventualmente cômica e tangencialmente “deseducativa” em comparação a enredos históricos (compreensivamente unilaterais) como os de “Terra e Liberdade” (1995) e “Ventos da Liberdade” (2006) e à genialidade da pequena obra-prima que é o episódio britânico (passado no Chile) do filme coletivo “11 de Setembro” (2002). Por mais sagaz que seja o seu título, “A Parte dos Anjos” se deixa contaminar por aquilo que ele expressa: o vazamento casual que acontece quando se abre o utensílio onde está acondicionado o produto de uma faina bastante diligente, no caso, a própria autoralidade da militância proletário-cinematográfica de Ken Loach!
Wesley Pereira de Castro.
quarta-feira, 24 de abril de 2013
quinta-feira, 18 de abril de 2013
OBLIVION ('Oblivion'). EUA, 2013. Direção: Joseph Kosinski.
Apesar de não ser uma regravação, à medida que este filme avança, é possível detectar o afã do diretor Joseph Kosinski em homenagear os clássicos da ficção científica que aprecia: as impressionantes imagens do planeta Terra devastado – podendo-se encontrar em meio a regiões desérticas ruínas de monumentos famosos, inclusive a mítica tocha da Estátua da Liberdade – remetem a “O Planeta dos Macacos” (1968, de Franklin J. Schaffner); a trama sobre memórias apagadas e implantadas emula aspectos do roteiro de “O Vingador do Futuro” (1990, de Paul Verhoeven); e as armas maquínicas que podem ser reprogramadas quando defeituosas fazem pensar em “Hardware - O Destruidor do Futuro” (1990, de Richard Stanley). Além destas referências reconhecíveis, o pretensioso diretor pretende efetivar um decalque do personagem robótico HAL-9000 através da comandante holográfica Sally (Melissa Leo), mas seus méritos soçobram consideravelmente, para além de qualquer comparação indébita com “2001: Uma Odisséia no Futuro” (1968, de Stanley Kubrick), constantemente citado nas entrevistas e/ou resenhas sobre o filme, visto que “Oblivion” está muitíssimo aquém de qualquer uma das obras citadas em sua exposição ingênua e deslumbrada de um mundo devastado pelos interesses gananciosos de exploradores dos recursos naturais terrestres.
Ao roteirizar, ao lado de Karl Gajudsek e Michael Arndt, uma extensão tramática da história em quadrinhos que ele mesmo escrevera há alguns anos, em parceria com Arvid Nelson, Joseph Kosinski, neste segundo longa-metragem como diretor [o primeiro fora “Tron: O Legado” (2010), ainda não visto] dilui previamente o impacto de qualquer potencial denúncia política contida no enredo por causa de suas intervenções românticas inconvenientemente xaroposas, como, por exemplo, as rememorações pré-matrimoniais que perseguem o protagonista Jack Harper (Tom Cruise) desde a primeira cena do filme. O sobejo de pudicícia nas cenas de conjunção carnal entre Jack e as mulheres com quem se relaciona deixa claro o direcionamento pueril da narrativa, propositalmente confusa e obtusamente bifurcada na segunda metade, quando a aparição da personagem Julia Rusakova (vivida pela da apática Olga Kurylenko) dilui a seriedade que parecia bem desenvolvida na justificativa histórica para a destruição da Lua e os conseqüentes efeitos catastróficos na Terra.
A submissão exacerbada de Jack à sua função mecânica no planeta evacuado deixa de ser um componente sustentacular de sua construção enquanto personagem dotado de memórias persistentes para converter-se num motriz enredístico sem vigor e eticamente desperdiçado na seqüência final, quando um de seus clones reencontra a esposa soviética e sua filhinha de três anos (concebida por outro clone de Jack, na verdade), enquanto a narração atualiza os detalhes volitivos pretensamente humanísticos que foram ouvidos na abertura do filme.
Não obstante a direção infantilizada e pudica (no pior sentido de ambos os termos) e o roteiro insosso, as atuações e a trilha sonora também são deveras prejudiciais na apreciação geral do filme. Em relação ao segundo quesito, pode-se alegar que as intervenções musicais do grupo eletrônico francês M83 talvez funcionem isoladamente, mas, enquanto acompanhamento para as seqüências românticas e/ou de ação, elas incomodam por causa da obviedade desvirtuadora. A canção-título, interpretada por Susanne Sundfør durante os créditos finais, é graciosa, mas também não se coaduna positivamente ao filme, em sua exortação passional àquilo que é recorrentemente visto nos sonhos.
Já no que diz respeito ao elenco, composto por atores competentes, os desempenhos são predominantemente rasos: Tom Cruise está impregnado de vaidade desde que surge, chegando ao cúmulo da jactância no instante em que reconstitui vocalmente uma partida decisiva e surpreendente de futebol americano nos escombros de um estádio destruído, mas demonstra firmeza nos momentos de ação; Morgan Freeman pouco pode fazer com um personagem que tinha tudo para ser complexo mas é reduzido a um ex-antagonista sábio e um tanto bonachão; a já citada Olga Kurylenko é bonita, mas exala marasmo; Andrea Riseborough compõe com cautela as sutilezas personalísticas da esposa tecnocrática que interpreta, mas é injustamente relegada a uma função involuntariamente acessória da conscientização do protagonista; e o secundário Nikolaj Coster-Waldau conforma-se à desconfiança estereotípica do saqueador que vivifica. No filme, infelizmente, quem manda mesmo são as máquinas!
Invertendo por simples descuido ou inaptidão a premissa antropocêntrica do filme, os efeitos visuais e a concepção dos ‘drones’ são os grandes chamarizes do mesmo, além da exuberante fotografia do extraordinário técnico Claudio Miranda. O uso de canções do Led Zeppelin (“Ramble On”) e do Procol Harum (a antológica “A Whiter Shade of Pale”) é assaz oportuno em momentos que visavam incentivar a paz de espírito que preenche Jack quando ele está em seu oásis terreno, numa casa de campo construída à beira de um lago e circundada por um bosque, onde ele se deu ao luxo adicional de erigir uma mini-biblioteca, onde se pode encontrar tanto o livro de poemas sobre baladas da antiga Roma (escrita por um autor chamado Thomas Macaulay) que ele cita antes de detonar a bomba que explode a sede espacial de seus contratadores malévolos quanto o providencial “Um Conto de Duas Cidades”, de Charles Dickens.
Excetuando-se estes elementos, pouco resta para ser elogiado em “Oblivion”, um filme tão entulhado de clichês e simplificações ficcionais que periga opor, enquanto efeito, justamente aquilo que é condenado em seu título: o esquecimento. Se o diretor não subestimasse tanto a inteligência e a moralidade de seu público, visando aos incrementos estatísticos na bilheteria, quiçá os resultados fílmicos fossem diferentes, podendo ser credível o discurso humanitário e ecológico implantado no roteiro de forma tão automática e sem inspiração...
Wesley Pereira de Castro.
Ao roteirizar, ao lado de Karl Gajudsek e Michael Arndt, uma extensão tramática da história em quadrinhos que ele mesmo escrevera há alguns anos, em parceria com Arvid Nelson, Joseph Kosinski, neste segundo longa-metragem como diretor [o primeiro fora “Tron: O Legado” (2010), ainda não visto] dilui previamente o impacto de qualquer potencial denúncia política contida no enredo por causa de suas intervenções românticas inconvenientemente xaroposas, como, por exemplo, as rememorações pré-matrimoniais que perseguem o protagonista Jack Harper (Tom Cruise) desde a primeira cena do filme. O sobejo de pudicícia nas cenas de conjunção carnal entre Jack e as mulheres com quem se relaciona deixa claro o direcionamento pueril da narrativa, propositalmente confusa e obtusamente bifurcada na segunda metade, quando a aparição da personagem Julia Rusakova (vivida pela da apática Olga Kurylenko) dilui a seriedade que parecia bem desenvolvida na justificativa histórica para a destruição da Lua e os conseqüentes efeitos catastróficos na Terra.
A submissão exacerbada de Jack à sua função mecânica no planeta evacuado deixa de ser um componente sustentacular de sua construção enquanto personagem dotado de memórias persistentes para converter-se num motriz enredístico sem vigor e eticamente desperdiçado na seqüência final, quando um de seus clones reencontra a esposa soviética e sua filhinha de três anos (concebida por outro clone de Jack, na verdade), enquanto a narração atualiza os detalhes volitivos pretensamente humanísticos que foram ouvidos na abertura do filme.
Não obstante a direção infantilizada e pudica (no pior sentido de ambos os termos) e o roteiro insosso, as atuações e a trilha sonora também são deveras prejudiciais na apreciação geral do filme. Em relação ao segundo quesito, pode-se alegar que as intervenções musicais do grupo eletrônico francês M83 talvez funcionem isoladamente, mas, enquanto acompanhamento para as seqüências românticas e/ou de ação, elas incomodam por causa da obviedade desvirtuadora. A canção-título, interpretada por Susanne Sundfør durante os créditos finais, é graciosa, mas também não se coaduna positivamente ao filme, em sua exortação passional àquilo que é recorrentemente visto nos sonhos.
Já no que diz respeito ao elenco, composto por atores competentes, os desempenhos são predominantemente rasos: Tom Cruise está impregnado de vaidade desde que surge, chegando ao cúmulo da jactância no instante em que reconstitui vocalmente uma partida decisiva e surpreendente de futebol americano nos escombros de um estádio destruído, mas demonstra firmeza nos momentos de ação; Morgan Freeman pouco pode fazer com um personagem que tinha tudo para ser complexo mas é reduzido a um ex-antagonista sábio e um tanto bonachão; a já citada Olga Kurylenko é bonita, mas exala marasmo; Andrea Riseborough compõe com cautela as sutilezas personalísticas da esposa tecnocrática que interpreta, mas é injustamente relegada a uma função involuntariamente acessória da conscientização do protagonista; e o secundário Nikolaj Coster-Waldau conforma-se à desconfiança estereotípica do saqueador que vivifica. No filme, infelizmente, quem manda mesmo são as máquinas!
Invertendo por simples descuido ou inaptidão a premissa antropocêntrica do filme, os efeitos visuais e a concepção dos ‘drones’ são os grandes chamarizes do mesmo, além da exuberante fotografia do extraordinário técnico Claudio Miranda. O uso de canções do Led Zeppelin (“Ramble On”) e do Procol Harum (a antológica “A Whiter Shade of Pale”) é assaz oportuno em momentos que visavam incentivar a paz de espírito que preenche Jack quando ele está em seu oásis terreno, numa casa de campo construída à beira de um lago e circundada por um bosque, onde ele se deu ao luxo adicional de erigir uma mini-biblioteca, onde se pode encontrar tanto o livro de poemas sobre baladas da antiga Roma (escrita por um autor chamado Thomas Macaulay) que ele cita antes de detonar a bomba que explode a sede espacial de seus contratadores malévolos quanto o providencial “Um Conto de Duas Cidades”, de Charles Dickens.
Excetuando-se estes elementos, pouco resta para ser elogiado em “Oblivion”, um filme tão entulhado de clichês e simplificações ficcionais que periga opor, enquanto efeito, justamente aquilo que é condenado em seu título: o esquecimento. Se o diretor não subestimasse tanto a inteligência e a moralidade de seu público, visando aos incrementos estatísticos na bilheteria, quiçá os resultados fílmicos fossem diferentes, podendo ser credível o discurso humanitário e ecológico implantado no roteiro de forma tão automática e sem inspiração...
Wesley Pereira de Castro.
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quinta-feira, 11 de abril de 2013
UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA (Brasil, 2012). Direção: Luiz Bolognesi.
“Viver sem conhecer o passado é como caminhar no escuro”: em mais de uma situação, o protagonista deste filme, interpretado vocalmente por Selton Mello, repete este lema, a fim de despertar o interesse na platéia pelo válido resgate histórico que o filme propõe.
Alegando ter mais de seiscentos anos de idade, este personagem destaca o quanto a sua paixão pela musa Janaína (Camila Pitanga), ao longo dos séculos, contribuiu para que ele se mantivesse vivo e ativo (não obstante apresentar-se como um jornalista fatigado num dado momento), mas quatro núcleos cronológicos serão de importância capital para o entendimento desta paixão tão encrudescida quanto constantemente interrompida: o primeiro deles remonta ao ano de 1565, quando o protagonista assumia a alcunha de Abeguar, índio da tribo dos tupinambás, que, no primeiro instante em cena, perseguia uma onça, animal cuja caçada propicia um rito iniciático de hombridade para o seu ceifador.
Apesar da discrição com que ele se locomove pela floresta, o índio é surpreendido pela apaixonada Janaína, despida sob o couro de um felino. Eles se abraçam, mas logo percebem que estão sendo seguidos por uma arisca pantera, até que pulam de um desfiladeiro e constatam que Abeguar consegue voar. Enfatizando que tal dom volante está atrelado a uma responsabilidade crescente em relação à segurança de sua tribo, ele tem uma previsão assustadora acerca de seu futuro, onde assiste ao assassinato de sua amada e à escravização de seu povo pelos portugueses e reencarna noutras épocas, sempre envolvido nalguma luta política de resistência que o afasta de Janaína. Se isto é um clichê espiritualista de superação romântica? Oficialmente sim, mas o diretor Luiz Bolognesi, estreando na condução de um enredo ficcional (depois de ter roteirizado quase todas as obras de sua esposa Laís Bodanzky) consegue sustentar o interesse tramático nas evoluções narrativas da saga de Abeguar.
Por mais relevantes que sejam os eventos acontecidos durante o período colonial brasileiro e aqueles relacionados à revolta conhecida como Balaiada (em 1838), estes são tecnicamente prejudicados pelo estilo modernoso da direção, que imprime estratagemas semelhantes aos dos ‘animes’ japoneses nas cenas de derramamento de sangue e justapõe, de forma anacrônica, a eficiente trilha sonora de Rica Amabis, Tejo Damasceno e Pupillo à reconstituição desenhada dos eventos históricos supracitados. A incursão narrativa pelo período ditatorial militar brasileiro e a trama futurista embasada nas atividades guerrilheiras do Comando Água para Todos são superiores porque permitem maior fluidez elementar, além de acrescentarem aspectos pertinentes à composição atormentada do protagonista, como, por exemplo, a delação de seus companheiros revolucionários no final da década de 1960 e a conclusão desiludida de que “viver é travar uma luta a cada dia”, o que afasta o filme da previsibilidade de um final feliz namorativo incondizente com o seu substrato realista, malgrado o personagem ser diegeticamente merecedor da felicidade ao lado da mulher que ama...
As contribuições de Lucas Santtana, Lenine, Nação Zumbi e 3 na Massa (cuja canção “Morada Boa” é oportunamente regravada por Camila Pitanga) na banda musical são proveitosas, bem como os elaborados traços gráficos do diretor de animação Bruno Celegão Monteiro, mas a montagem excessivamente picotada de Helena Maura na primeira estória e a curta duração do filme (apenas 75 minutos) não permitem que os elementos circundantes à trama romântica sejam internamente desenvolvidos e redundem em momentos discutíveis de afirmação enraivecida, como, por exemplo, quando o militante aprisionado Cao chuta violentamente um rato contra a parede de sua cela ou quando um presidiário apreende, a partir de uma leitura de “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, que o referido livro é uma incitação à luta armada, o que justifica a sua configuração oitentista como “cangaceiro das favelas cariocas”. Apesar disso, a iniciativa ousada e intencionalmente contestatória do roteirista em relação a uma “História oficial” que suprime ideologicamente a importância dos mártires nacionais deve ser elogiada, tamanha a independência produtiva depositada sobre a feitura de um projeto tão pessoal, levando-se em consideração que são exíguas as experiências brasileiras em animação que não sejam de caráter infantil, principalmente no formato de longa-metragem.
Se, por um lado, comemora-se que “Uma História de Amor e Fúria” não seja um filme ruim, por outro, deve-se também admitir que ele não consegue fazer jus aos sentimentos poderosos contidos em seu título: ainda que o amor seja emulado do início ao fim, a fúria é eventualmente forçada em suas manifestações conclamatórias (exceção louvável em reação ao estupro no episódio da Balaiada), e, por isso, nem sempre se mostra credível – principalmente no que tange ao viés anticonformista de seu entrecho, que leva o protagonista a concluir que, infelizmente, os seus heróis nunca foram eternizados em estátuas, não obstante os seus inimigos terem sido. Neste aspecto, a representação desmitificada do militar Luís Alves de Lima, futuro Duque de Caxias, enquanto personagem nefando que suprime fatalmente a revolta iniciada por Manoel Balaio foi certeira.
As situações envolvendo o desvio de água pelo presidente da companhia corrupta Aquabrás na última estória também são muito boas, inclusive em sua crítica sutil e velada aos delírios desenvolvimentistas que podem se instalar a partir da sediação de importantes eventos esportivos no Brasil hodierno e no diálogo sarcástico que Janaína trava diante de um aquário cujo estoque de água (recurso mineral cuja dose é muito mais cara que uísque em 2096!) poderia saciar a sede de milhares de famílias.
Se a interpretação de Selton Mello está aquém do mérito demonstrado em outros filmes e Rodrigo Santoro está pouco perceptível em suas aparições vocais, as personagens dubladas por Camila Pitanga se destacam pela sensualidade decalcada a partir de sua figura humana, merecendo realce a seqüência novamente anacrônica (mas nem por isso menos formosa) em que, num futuro tecnocrático, Janaína aparece cantarolando uma suave cantiga de MPB. Tal como o personagem principal, o filme soçobra em suas práticas amantes, mas não em seu elã enfrentador. Oxalá o tempo lhe retribua a ousadia e o pioneirismo setorial num gênero cinematográfico bastante subestimado e/ou desacreditado no Brasil!
Wesley Pereira de Castro.
Alegando ter mais de seiscentos anos de idade, este personagem destaca o quanto a sua paixão pela musa Janaína (Camila Pitanga), ao longo dos séculos, contribuiu para que ele se mantivesse vivo e ativo (não obstante apresentar-se como um jornalista fatigado num dado momento), mas quatro núcleos cronológicos serão de importância capital para o entendimento desta paixão tão encrudescida quanto constantemente interrompida: o primeiro deles remonta ao ano de 1565, quando o protagonista assumia a alcunha de Abeguar, índio da tribo dos tupinambás, que, no primeiro instante em cena, perseguia uma onça, animal cuja caçada propicia um rito iniciático de hombridade para o seu ceifador.
Apesar da discrição com que ele se locomove pela floresta, o índio é surpreendido pela apaixonada Janaína, despida sob o couro de um felino. Eles se abraçam, mas logo percebem que estão sendo seguidos por uma arisca pantera, até que pulam de um desfiladeiro e constatam que Abeguar consegue voar. Enfatizando que tal dom volante está atrelado a uma responsabilidade crescente em relação à segurança de sua tribo, ele tem uma previsão assustadora acerca de seu futuro, onde assiste ao assassinato de sua amada e à escravização de seu povo pelos portugueses e reencarna noutras épocas, sempre envolvido nalguma luta política de resistência que o afasta de Janaína. Se isto é um clichê espiritualista de superação romântica? Oficialmente sim, mas o diretor Luiz Bolognesi, estreando na condução de um enredo ficcional (depois de ter roteirizado quase todas as obras de sua esposa Laís Bodanzky) consegue sustentar o interesse tramático nas evoluções narrativas da saga de Abeguar.
Por mais relevantes que sejam os eventos acontecidos durante o período colonial brasileiro e aqueles relacionados à revolta conhecida como Balaiada (em 1838), estes são tecnicamente prejudicados pelo estilo modernoso da direção, que imprime estratagemas semelhantes aos dos ‘animes’ japoneses nas cenas de derramamento de sangue e justapõe, de forma anacrônica, a eficiente trilha sonora de Rica Amabis, Tejo Damasceno e Pupillo à reconstituição desenhada dos eventos históricos supracitados. A incursão narrativa pelo período ditatorial militar brasileiro e a trama futurista embasada nas atividades guerrilheiras do Comando Água para Todos são superiores porque permitem maior fluidez elementar, além de acrescentarem aspectos pertinentes à composição atormentada do protagonista, como, por exemplo, a delação de seus companheiros revolucionários no final da década de 1960 e a conclusão desiludida de que “viver é travar uma luta a cada dia”, o que afasta o filme da previsibilidade de um final feliz namorativo incondizente com o seu substrato realista, malgrado o personagem ser diegeticamente merecedor da felicidade ao lado da mulher que ama...
As contribuições de Lucas Santtana, Lenine, Nação Zumbi e 3 na Massa (cuja canção “Morada Boa” é oportunamente regravada por Camila Pitanga) na banda musical são proveitosas, bem como os elaborados traços gráficos do diretor de animação Bruno Celegão Monteiro, mas a montagem excessivamente picotada de Helena Maura na primeira estória e a curta duração do filme (apenas 75 minutos) não permitem que os elementos circundantes à trama romântica sejam internamente desenvolvidos e redundem em momentos discutíveis de afirmação enraivecida, como, por exemplo, quando o militante aprisionado Cao chuta violentamente um rato contra a parede de sua cela ou quando um presidiário apreende, a partir de uma leitura de “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, que o referido livro é uma incitação à luta armada, o que justifica a sua configuração oitentista como “cangaceiro das favelas cariocas”. Apesar disso, a iniciativa ousada e intencionalmente contestatória do roteirista em relação a uma “História oficial” que suprime ideologicamente a importância dos mártires nacionais deve ser elogiada, tamanha a independência produtiva depositada sobre a feitura de um projeto tão pessoal, levando-se em consideração que são exíguas as experiências brasileiras em animação que não sejam de caráter infantil, principalmente no formato de longa-metragem.
Se, por um lado, comemora-se que “Uma História de Amor e Fúria” não seja um filme ruim, por outro, deve-se também admitir que ele não consegue fazer jus aos sentimentos poderosos contidos em seu título: ainda que o amor seja emulado do início ao fim, a fúria é eventualmente forçada em suas manifestações conclamatórias (exceção louvável em reação ao estupro no episódio da Balaiada), e, por isso, nem sempre se mostra credível – principalmente no que tange ao viés anticonformista de seu entrecho, que leva o protagonista a concluir que, infelizmente, os seus heróis nunca foram eternizados em estátuas, não obstante os seus inimigos terem sido. Neste aspecto, a representação desmitificada do militar Luís Alves de Lima, futuro Duque de Caxias, enquanto personagem nefando que suprime fatalmente a revolta iniciada por Manoel Balaio foi certeira.
As situações envolvendo o desvio de água pelo presidente da companhia corrupta Aquabrás na última estória também são muito boas, inclusive em sua crítica sutil e velada aos delírios desenvolvimentistas que podem se instalar a partir da sediação de importantes eventos esportivos no Brasil hodierno e no diálogo sarcástico que Janaína trava diante de um aquário cujo estoque de água (recurso mineral cuja dose é muito mais cara que uísque em 2096!) poderia saciar a sede de milhares de famílias.
Se a interpretação de Selton Mello está aquém do mérito demonstrado em outros filmes e Rodrigo Santoro está pouco perceptível em suas aparições vocais, as personagens dubladas por Camila Pitanga se destacam pela sensualidade decalcada a partir de sua figura humana, merecendo realce a seqüência novamente anacrônica (mas nem por isso menos formosa) em que, num futuro tecnocrático, Janaína aparece cantarolando uma suave cantiga de MPB. Tal como o personagem principal, o filme soçobra em suas práticas amantes, mas não em seu elã enfrentador. Oxalá o tempo lhe retribua a ousadia e o pioneirismo setorial num gênero cinematográfico bastante subestimado e/ou desacreditado no Brasil!
Wesley Pereira de Castro.
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